RESUMO: O presente texto tem por objetivo analisar a Lei de Prisão Temporária. Inicia explicando a origem do referido diploma normativo e segue demonstrando que a liberdade da pessoa humana é gravemente vulnerada em nome da ineficiência da investigação. Por fim, expõe a incompatibilidade da lei com princípios e garantias constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: Lei 7.960/89, prisão temporária, dignidade da pessoa humana, devido processo legal, medida provisória 111/89, prisão cautelar, investigação, ineficiência do Estado.
SUMÁRIO: 1- Introdução; 2- O surgimento da Lei n° 7.960/89; 3- A ineficiência investigativa da época versus liberdade da pessoa humana; 4- “Imprescindível para as investigações”: conceito impreciso; 5- A Lei n° 7.960/89 diante da garantia do devido processo legal; 6- Considerações Finais.
1- INTRODUÇÃO:
A Lei de prisão temporária sempre foi criticada, sob o argumento de que é inconstitucional formal e materialmente. Por essa razão, é necessário estudá-la, confrontá-la com as garantias constitucionais e demonstrar que – em razão dessa lei – a liberdade da pessoa humana é gravemente vulnerada em nome da ineficiência investigativa, o que é inaceitável num Estado Democrático de Direito.
2- O SURGIMENTO DA LEI N° 7.960/89:
A Lei de Prisão Temporária (Lei n° 7.960/89) foi originada da Medida Provisória n° 111/89, editada no período Sarney. À época, a redação original do artigo 62 da Constituição Federal de 1988 estabelecia os requisitos “relevância” e “urgência” para edição de Medida Provisória, porém não fazia limitações quanto às matérias que poderiam ser tratadas pela referida medida. Segundo Freitas (2009), a não catalogação das matérias abordáveis por medida provisória, induvidosamente, encorajou a Presidência da República a editar a MP 111/89.
Para Távora, não houve sequer os requisitos relevância e urgência para a edição da Medida Provisória 111/89 (convertida na Lei de Prisão Temporária). Para o citado autor:
A temporária ingressou no ordenamento por iniciativa do executivo, dissociada não só do fator relevância e urgência, essencial às medidas provisórias, e o pior, instituiu-se restrição a um direito fundamental – liberdade ambulatorial –, sem lei no sentido estrito, como ato inerente ao Poder Legislativo (TÁVORA, 2014, p. 745).
Segundo Lopes Júnior (2017), essa Medida Provisória surgiu em atendimento aos pleitos da polícia judiciária brasileira (que se viu fragilizada com a nova ordem constitucional). Por conta desse apelo, surgiu a referida MP – convertida posteriormente em lei –, satisfazendo aos interesses da atividade policial, pois, sob a expressão literal da lei: “imprescindível para as investigações do inquérito”, a polícia poderia dispor do imputado como bem entendesse.
Embora tivesse força de lei, a Medida Provisória 111/89 não era lei formal e, por essa razão, tornou-se discutível a sua legitimidade justamente por seu vício de origem. À época, criticou-se esse ato do Executivo, sob a justificativa – em linhas gerais – de que a Presidência da República não poderia legislar, principalmente no que se refere a matérias que afetam às garantias individuais, como a liberdade. O Conselho Federal da OAB ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade – Medida Cautelar (ADIMC n° 162) contra o Presidente da República, objetivando a declaração da inconstitucionalidade da referida MP. O pleito foi rejeitado por oito votos a dois, e o Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela constitucionalidade da Medida Provisória em questão, a qual foi posteriormente convertida na Lei n° 7.960/89.
O voto vencido do Ministro José Celso de Mello Filho:
a privação, mesmo que cautelar, da liberdade individual, a tipificação de novas entidades delituosas e a cominação de penas não podem constituir objeto de medidas provisórias, em face, até, da irreversibilidade das situações geradas por essa espécie normativa [...] a indenização patrimonial dos agravos sofridos pela pessoa em seu status libertatis não pode ser vista e nem invocada como o expediente legitimador das medidas provisórias em sede penal e em tema de liberdade individual [...] (WALMER DE FREITAS, 2009, p. 9).
Posteriormente, com a Emenda Constitucional n° 32, de 2001, o artigo 62 da Constituição Federal sofreu alteração e finalmente excluiu a possibilidade de o Poder Executivo editar Medida Provisória que verse sobre matéria penal, processo penal, civil, entre outras.
Segundo Rangel (2013), o referido diploma legal traz um vício de iniciativa que não é corrigido pela conversão da medida em lei. Para o citado autor, a prisão temporária (prevista na Lei 7.960/89) lembra a prisão para averiguação, da época da ditadura, através do instituto da contravenção de vadiagem, em que o indivíduo era preso para se investigar um outro delito.
3- A INEFICIÊNCIA INVESTIGATIVA DA ÉPOCA VERSUS LIBERDADE DA PESSOA HUMANA:
A partir da análise da Lei de Prisão Temporária, pode-se perceber que o Estado, em face de sua ineficiência para investigar uma infração penal, sacrifica a liberdade do indiciado para tentar incriminá-lo. Ainda que os motivos invocados pelo legislador fossem o crescimento da violência e a necessidade de dar mais eficiência à polícia, o ato extremo de privação da liberdade de uma pessoa para, só após, investigá-la não se sustenta diante da ordem constitucional de 1988.
Para Rangel:
a prisão temporária é também inconstitucional por uma razão muito simples: no Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente é o autor do delito. Trata-se de medida de constrição da liberdade do suspeito que, não havendo elementos suficientes de sua conduta nos autos do inquérito policial, é preso para que esses elementos sejam encontrados (RANGEL, 2013, p. 832).
O artigo 1° da Constituição Federal de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático e tem como fundamento a soberania, cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Logo, o fundamento da dignidade da pessoa humana dever ser, assim como os outros fundamentos, a base sobre a qual deve estar constituída a República Federativa do Brasil. Conforme Silva (2006), faltando um dos referidos fundamentos, não se caracteriza como Estado Democrático de Direito.
No caso da prisão temporária, o Estado não pode justificar essa medida extrema pela eventual impotência da atividade investigativa, ou seja, a pessoa não pode pagar o preço de sua liberdade para que se iniciem as investigações. Há, nitidamente, uma inversão da ordem das coisas, e admitir tal possibilidade é vulnerar gravemente o princípio da dignidade da pessoa humana e consentir em atitudes típicas de Estados antidemocráticos.
Ademais, nos dias de hoje, os recursos tecnológicos postos à disposição para a atividade investigativa revelam a desnecessidade dessa medida (prisão).
4- “IMPRESCINDÍVEL PARA AS INVESTIGAÇÕES”: CONCEITO IMPRECISO.
A expressão “imprescindível para as investigações” não possui um conceito preciso, estando sujeita a toda sorte de interpretações, umas mais extensivas, outras mais restritivas. Nesse ponto é que a citada lei abre um leque de possibilidades para o cometimento de abusos por parte de delegados, promotores e juízes. Citando Gamil Föppel e Gisela Borges a respeito do tema: “o que se mostra imprescindível para alguém, pode revelar-se não só como desnecessário, mas inadmissível para outrem”.
Atualmente, segundo Lopes Júnior (2017), muitas prisões temporárias são ilegalmente decretadas com o objetivo de ouvir o suspeito ou para haver “agilização” da investigação, ou, ainda, para impedir que o suspeito possa destruir provas, mesmo sem base concreta para tanto.
Ora, o indivíduo que é preso em decorrência dessa lei está protegido pelo princípio do nemo tenetur se detegere, ou seja, ele não está obrigado a praticar nenhum ato probatório que lhe possa prejudicar. Logo, é ilegal a prisão que tem por objetivo ouvir o suspeito.
Igualmente, é ilegal a prisão que busca “agilizar” a investigação policial, pois a liberdade da pessoa não deve, nos Estados Democráticos, ser suprimida sob a justificativa de agilizar a atividade investigativa.
Desse modo, a prisão temporária viola o princípio da dignidade da pessoa humana porque faz da prisão a regra, com o objetivo de investigar uma infração penal, expondo o indiciado à tortura física, psicológica e maus-tratos de todo gênero.
5- A LEI 7.960/89 DIANTE DA GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL:
A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5°, inciso LIV, enuncia: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Para Moraes (2012), a garantia do devido processo legal significa proteção ao indivíduo, expressando-se na proteção ao direito de liberdade, na garantia de paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa.
Deve-se ressaltar que essa modalidade de prisão não foi criada para estar a serviço de processo judicial, e sim para promover a investigação. Portanto, estando essa espécie de prisão a serviço unicamente da atividade investigativa, temos que esse tipo de constrição de liberdade vai de encontro à garantia constitucional do devido processo legal, pois a finalidade da privação da liberdade reside na investigação, e não no processo. Na lição de Lopes Júnior:
A prisão temporária possui uma cautelaridade voltada para a investigação preliminar e não para o processo. Não cabe prisão temporária (ou sua permanência) quando já tiver sido concluído o inquérito policial. Então, se já houver processo ou apenas tiver sido oferecida a denúncia, não pode permanecer a prisão temporária. [...] Trata-se de uma prisão finalisticamente dirigida à investigação e que não sobrevive no curso do processo penal, por desaparecimento de seu fundamento. Encerrada e investigação preliminar, não se pode mais cogitar de prisão temporária (LOPES JÚNIOR, 2017, ps. 676 e 677).
Ainda segundo o autor:
as medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado. [...] pois só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de conhecimento). E somente o que for verdadeiramente cautelar é constitucional (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 645).
Dessa forma, a prisão temporária fere gravemente a garantia do devido processo legal porque essa modalidade de prisão não está a serviço do processo judicial; está, porém, a serviço da atividade investigativa, que, à época da edição da lei, era ineficiente. É, portanto, espécie de prisão que não pode ser taxada de cautelar, pois só é cautelar a medida que tem por finalidade servir ao processo de conhecimento, isto é: ser instrumento a serviço do processo. Nessa mesma linha, ensina Delmanto Júnior:
Acreditamos, igualmente, que a característica da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório (DELMANTO JÚNIOR, 2003, apud LOPES JÚNIOR, 2017, p. 645).
Além do mais, pode-se igualmente inferir que a Lei n° 7.960/89 vulnera o princípio da presunção de inocência, porque a privação da liberdade do indiciado com base nesse diploma normativo não se constitui nem em prisão pena nem em prisão cautelar. Desse modo, resta concluir que se trata de presunção de culpa.
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Portanto, a ineficiência investigativa da época serviu como pano de fundo para a edição da lei, pois sob a expressão “imprescindível para as investigações” a polícia poderia dispor do imputado como bem entendesse. No entanto, a liberdade da pessoa humana não pode ser vilipendiada em nome da ineficiência investigativa, primeiro porque fere princípios e garantias constitucionais; segundo porque, nos dias de hoje, os recursos tecnológicos a serviço da investigação acabam por revelar a desnecessidade dessa medida.
A prisão temporária introduziu uma ordem invertida no nosso sistema: primeiro prende para depois investigar. Essa inversão fere o princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo em ato típico de Estados antidemocráticos e, por isso mesmo, não deveria estar legitimada entre nós. Além disso, essa modalidade de prisão não está finalisticamente a serviço do processo judicial, e sim da investigação, o que acaba desnaturando a sua natureza cautelar e vulnerando a garantia do devido processo legal. Por consequência, é possível também inferir que esse tipo de prisão deságua na presunção de culpa, já que não consiste nem em prisão pena nem em prisão cautelar.
REFERÊNCIAS:
FREITAS, Jayme Walmer de. Prisão Temporária. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009;
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017;
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012;
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 21ª ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2013;
SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006;
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, R. R. Curso de Direito Processual Penal. 9ª ed. Salvador: jusPODIVM, 2014;
FÖPPEL, Gamil. BORGES, Gisela. Dromologia, prisão temporária e estigmatização: o processo penal como pena. Disponível em: Acesso em maio de 2016.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduado em Direito Processual Penal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: IVO ANDRADE SOUZA JúNIOR, . Análise crítica da prisão temporária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50162/analise-critica-da-prisao-temporaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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