RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo examinar a aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, com ênfase na desnecessidade de socorro ao Poder Judiciário para aplicação de tal medida, através de uma análise acerca da licitação pública, dos contratos administrativos e da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para tanto, procedeu-se a um estudo sistemático da legislação vigente que resultou em algumas conclusões, dentre estas a que, malgrado não conste no ordenamento jurídico pátrio amparo legal para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica sem a interveniência do Judiciário, tal aplicação pela Administração Pública faz-se imperiosa em respeito aos princípios da moralidade administrativa, supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade do interesse público. Nesse passo, abster-se de punir sociedades empresárias fraudulentas e que agem com abuso de forma é prestigiar condutas afrontadoras da ordem jurídica, e propiciar que cada vez mais o rol de maus prestadores de serviços ao Poder Público seja ampliado. Assim, o trabalho em tela visa demonstrar a possibilidade de extensão das penalidades aplicadas quando do procedimento licitatório e contratações administrativas, por ato do Poder Público sem a necessidade de interpelação judicial.
Palavras-chave: personalidade; desconsideração; licitações.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo examinar a aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, com ênfase na desnecessidade de socorro ao Poder Judiciário para aplicação de tal medida.
O artigo em tela foi dividido em três capítulos. No primeiro, procura-se estabelecer premissas básicas sobre as prerrogativas de direito público da administração contratante, com atenção especial a possibilidade aplicação direta de sanções. No segundo capítulo, passa-se a declinar acerca da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações sem a interveniência do judiciário, trazendo questões jurisprudenciais e doutrinárias, bem como, a tímida positivação de tal medida no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, no último capítulo, apresenta-se a conclusão do trabalho, trazendo um arremate final sintetizado de ideias que dão contam da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica por obra da própria Administração.
Desta feita, a Administração Pública no exercício do seu mister de atendimento do interesse da coletividade necessita contratar particulares para auxiliá-la em tal atuação. A escolha destes particulares, em regra, se dá através do procedimento licitatório, o qual visa garantir a escolha da melhor e mais vantajosa proposta para a administração.
É sabido que existem casos que fogem à regra do procedimento licitatório, casos estes de dispensa ou inexigibilidade de licitação. De efeito, independentemente do procedimento licitatório, em todos os casos teremos a figura do contrato administrativo, que por sua vez prescreve as regras a serem cumpridas pelas partes que compuseram a avença.
O Poder Público é dotado de prerrogativas próprias que se fazem necessárias para a devida observância dos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado, regedores de toda atividade administrativa. Dentre estas prerrogativas, está a possibilidade de aplicação direta de sanções ao contratado inadimplente total ou parcialmente.
O Estatuto Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 8.666/93) prevê, dentre as penalidades aplicáveis ao contratado, a suspensão temporária do direito de contratar com a administração e a declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública.
Hodiernamente a aplicação destas penalidades não tem conseguido extirpar do rol de contratados da Administração Pública empresas fraudulentas e com abuso de forma, pois os sócios de tais sociedades empresárias dão continuidade às suas atividades a partir de novas composições, e não encontram nenhum óbice a tal procedimento.
E é nesse contexto que se insere a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, como sendo a maneira mais célere e eficaz de garantir a eficácia das sanções aplicadas aos particulares contratados, sendo plenamente viável a sua aplicação sem a interveniência do Judiciário, desde que observado o devido processo legal, e assegurado o contraditório e a ampla defesa.
1. PRERROGATIVAS DE DIREITO PÚBLICO DA ADMINISTRAÇÃO CONTRATANTE
As cláusulas exorbitantes, também conhecidas como cláusulas de privilégio, são prerrogativas conferidas à Administração em razão da supremacia exercida em relação a parte contratada.
Na correta lição de Caio Tácito (apud CARVALHO FILHO, 2011, p. 209), “o princípio da igualdade entre as partes, que importa a regra da imutabilidade dos contratos, cede passo ao da desigualdade, ao predomínio da vontade da Administração sobre o outro contratante”.
O efeito dessa desigualdade são as cláusulas exorbitantes, chamadas assim por exorbitarem as cláusulas comuns do direito privado, e que são conferidas por lei à Administração. Tamanha é a importância destas que o texto legal as trata sob a nomenclatura de prerrogativas, conforme previsto no art. 58 da Lei 8.666/93.
Assim, tais cláusulas constituem verdadeiros princípios de direito público, formadores da estrutura do regime jurídico de direito público, aplicável basicamente aos contratos administrativos (CARVALHO FILHO, 2011, p. 209).
Cumpre ressaltar que os contratos administrativos são regidos predominantemente pelo direito público, de forma que se aplicam, subsidiariamente, as normas e princípios de direito privado, consoante extrai-se da inteligência do art. 54 da Lei 8.666/93.
Todos os contratos, sejam eles regidos pelo direito público ou pelo direito privado, trazem a previsão de sanções para o caso de inadimplemento contratual. Os contratos administrativos, além de preverem sanções no seu bojo, se submetem a sanções previamente estabelecidas pela lei.
O art. 58,VI, da lei 8.666/93 dispõe que é prerrogativa da Administração aplicar sanções ao particular inadimplente. In casu, tem-se em vista a possibilidade de a Administração aplicar sanções não previstas no instrumento contratual, mas sim na própria lei.
Vale ressaltar, também, que deverá ser sempre assegurado ao contratado o contraditório e a ampla defesa (art. 87, caput e § 2o), em conformidade com os imperativos constitucionais previstos no art. 5°, LV.
Conforme preceito contido no art. 88 da Lei 8.666/93, as sanções de suspensão temporária e declaração de idoneidade podem ser aplicadas a empresas ou profissionais que, dentre outros, tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação, bem como demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.
2. A APLICAÇÃO DA DISREGARD DOCTRINE ANTE A AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL
O ordenamento jurídico pátrio estabelece que a Administração Pública deve total obediência aos princípios encontrados explícita ou implicitamente no texto da Constituição de 1988. Dentre eles o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Nesse diapasão, o princípio da legalidade é o postulado basilar de todos os Estados de Direito, e como bem acentua Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 527), tal princípio:
Representa a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida conforme a lei, sendo a atividade administrativa, por conseguinte, sublegal ou infralegal, devendo restringir-se à expedição de comandos que assegurem a execução da lei.
A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações, e, consequentemente, nos contratos administrativos, encontra como impeditivo a ausência de norma autorizadora de tal medida. Contudo, quando uma empresa frauda um procedimento licitatório, evidencia-se uma grave ofensa ao princípio da moralidade, bem como outros correlatos, e não menos importantes, como a indisponibilidade do interesse público e a supremacia do interesse público sobre o privado.
Nesse passo, a doutrina é pacífica quanto à inexistência de hierarquia entre os princípios norteadores da atuação administrativa. Tão logo, para solucionarmos tal quizila, decorrente do aparente conflito de princípios, devemos, em busca da maior efetividade do poder de império da Administração Pública, ponderar tais dogmas, sem que a aplicação de um deles oportunize o sacrifício dos demais.
A legalidade não pode servir de subterfujo para atitudes fraudulentas que visam somente o benefício do particular contratado, e desmerece o interesse coletivo. Ipso facto, é que a legalidade deve caminhar junto com o Direito, em busca da promoção da paz social e da justiça. Como bem observa Edilson Pereira Nobre Júnior (2002, p. 18):
O princípio da legalidade, cujo objetivo primacial é, ainda hoje, o de proporcionar a garantia dos direitos dos cidadãos contra possíveis abusos dos órgãos estatais. Alberga um sentido amplo, qual seja, como bem sumariou Sabino Cassese, o da submissão da Administração ao Direito. Aquele não se resume – e é de bom alvitre frisar – à observância do teor literal de leis e regulamentos. Antes radica-se no respeito à Constituição, considerada a sua força normativa, e nos princípios gerais do direito que, mesmo quando não logram revestimento em normas escritas, inserem-se no ordenamento.
Marçal Justen Filho (2001, p.476), comentando o princípio da moralidade ensina que:
Em hipótese alguma, porém, a conduta adotada pela Administração ou pelo particular poderá ofender os valores fundamentais consagrados pelo sistema jurídico. Sob esse enfoque é que se interpretam os princípios da moralidade e da probidade. A ausência de disciplina legal não autoriza o administrador ou o particular a uma conduta ofensiva à ética e à moral. Moralidade soma-se a legalidade. Assim, uma conduta compatível com a lei, mas imoral será inválida.
Por seu turno, Alexandre de Moraes (2009, p.235) aduz que:
Pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constituiu, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de todo ato da administração pública.
Nada obstante, importante se destacar o ensinamento de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2010, p. 196):
É importante compreender que o fato de a Constituição haver erigido a moral administrativa em princípio jurídico expresso permite afirmar que ela é um requisito de validade do ato administrativo, e não de aspecto atinente ao mérito. Vale dizer, um ato contrário à moral administrativa não está sujeito a uma análise de oportunidade e conveniência, mas a uma análise de legitimidade, isto é, um ato contrário à moral administrativa é nulo, e não meramente inoportuno ou inconveniente. Em consequência, o ato contrário à moral administrativa não deve ser revogado, e sim declarado nulo. Mais importante, como se trata de controle de legalidade ou legitimidade, este pode ser efetuado pela Administração e, também pelo Poder Judiciário.
A importância do princípio da moralidade administrativa já foi ressaltada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (apud GASPARINI, 2009, p.10), ao afirmar que a moralidade administrativa e o interesse coletivo integram a legalidade do ato administrativo.
Logo, como acima explicitado, uma conduta compatível com a lei, mas imoral, será invalidada. E é nesse ínterim que reside o ponto fundamentador da nossa temática de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pela própria Administração Pública, tendo em vista que quando uma empresa constitui uma nova sociedade com o desiderato de se eximir da aplicação de penalidade anteriormente imposta, o fato de não aplicarmos a desconsideração da personalidade jurídica frente à ausência de positivação de tal conduta, leva, sem sombra de dúvidas, ao estímulo de atos atentatórios à moralidade administrativa.
Se assim procedêssemos, estaríamos respeitando a lei, e ao mesmo tempo desrespeitando outros princípios regedores das licitações e contratos administrativos.
Ademais, é sabido que o Direito condena condutas dissociadas dos valores jurídicos e morais. Por isso, mesmo não havendo norma legal a legitimar a desconsideração da personalidade jurídica, é vedado ao administrador conduzir-se de modo ofensivo à ética e à moral.
Dando prosseguimento, o que ocorre é que em atendimento ao princípio da autonomia da pessoa jurídica, a Administração Pública acaba sendo utilizada como instrumento para a realização de fraude ou mesmo abuso de direito. Na medida em que como é a sociedade o sujeito titular de direitos e obrigações, e não os seus sócios, não raramente, em face de manipulações na sua constituição, o interesse público é flagrantemente lesado.
A desconsideração da personalidade jurídica visa exatamente desprestigiar a autonomia das pessoas jurídicas licitantes e/ou contratantes, em hipóteses em que o ilícito cometido pelos sócios permanecerá oculto, anuviado pela licitude da conduta da pessoa jurídica.
Destarte, pretende-se, com espeque no art. 4° da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, aplicar a analogia ante a omissão legal do remédio jurídico aqui estudado.
O dispositivo supracitado refere-se ao magistrado como agente aplicador da norma, no entanto, na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica por ato administrativo, o sujeito legitimado será a autoridade superior do ente administrativo.
Na legislação consumerista e no direito civil, a desconsideração da personalidade jurídica exige a intervenção do Poder Judiciário, tendo em vista que a relação a baila, nestes casos, trata-se de relação horizontalizada, na qual as partes encontram-se em pé de igualdade.
Já no âmbito das licitações, a desconsideração não segue esta regra, sendo desnecessária a interpelação judicial. Isso ocorre graças ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que coloca a Administração em posição privilegiada, garantindo prerrogativas diversas quando do exercício da atividade administrativa.
Tal postulado encontra-se latente nas cláusulas exorbitantes integrantes dos contratos administrativos, e encontra-se manifesto, também, num atributo do ato administrativo, conforme se passa a explicar no tópico a seguir.
2.1. A AUTOEXECUTORIEDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS E O POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS NACIONAIS
Um dos atributos do ato administrativo é a autoexecutoriedade, consistente na possibilidade de sua execução pela própria Administração Pública, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
Nem todos os atos administrativos são dotados do atributo de autoexecutoriedade, conforme lição de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2010, p.461), ao dizerem que:
É fácil constatar que a autoexecutoriedade não é um atributo presente em todos os atos administrativos. Genericamente, afirma-se que a autoexecutoriedade é qualidade própria dos atos inerentes ao exercício de atividades típicas da administração, quando ela está atuando na condição de poder público. A necessidade de defesa frágil dos interesses da sociedade justifica essa possibilidade de a administração agir sem prévia intervenção do Poder Judiciário, especialmente no exercício do Poder de Polícia. A presteza requerida evidentemente faltaria se fosse necessário recorrer ao Poder Judiciário toda vez que o particular opusesse resistência às atividades administrativas contrárias a seus interesses.
Para Cretella Júnior (apud MEDAUAR, 1986, p. 517):
Fundamenta-se a executoriedade não só na natureza pública da atividade que por meio dos atos chamado executórios a Administração traduz sua vontade, como também na concretização rápida dos interesses coletivos, em benefício dos quais se editam os referidos atos.
Coadunando com os escólios supracitados, Jessé Torres Pereira Junior e Marinês Reslatto Dotti (2010, p. 61), trazem a tona as principais exceções à autoexecutoriedade dos atos administrativos, in verbis:
Os atos administrativos desprovidos de autoexecutoriedade referem-se aos direitos e garantias fundamentais que circulam na ordem constitucional e, por isso, somente se sujeitam à ordem administrativa em situações excepcionais. De ordinário, a autoexecutoriedade, porque qualidade do que é administrativo, não ultrapassa o limite traçado pelos direitos fundamentais garantidos pela ordem constitucional, o principal dos quais é o direito de propriedade. As principais exceções à autoexecutoriedade decorrem do confronto com o direito de propriedade, em que a vontade do proprietário pode validamente opor-se à execução do ato administrativo pela própria Administração, daí ser imperiosa a mediação da tutela jurisdicional, tais como:
a) na desapropriação (a natureza do decreto declaratório da utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, para fins de desapropriação; ato meramente declaratório, que implementa condição para que se venha a desapropriar; a fase executória da desapropriação somente se esgota na esfera administrativa se houver acordo com o proprietário quanto ao valor do preço indenizatório; caso contrário, a fase de execução terá por sede ação especial, cujo processo judicial tem índole executória, objetivando a apuração daquele valor);
b) na interdição de obra em curso, nos lindes da propriedade, em violação do projeto licenciado ou sem licença (CPC, art. 934, III – ação de nunciação de obra nova); a Administração, por seu órgão de polícia edilícia, pode impor embargo administrativo e multa, mas se, ainda assim, o proprietário prossegue na obra ilegal, o Município terá de propor a ação nunciatória, vedado que autoexecute o ato de impedi-lo manu militari;
c) o mesmo raciocínio cabe no desfazimento de obra concluída, em que à resistência do proprietário responderá o ente público com o ajuizamento de ação demolitória, defeso que invada a propriedade e ponha abaixo a edificação que entenda clandestina ou ilegal;
d) a cobrança da dívida ativa, constituída em processo administrativo, terá de ocorrer por meio do aforamento de executivo fiscal, incabível que a Fazenda credora autoexecute a dívida.
O ato administrativo que desconsidera a personalidade jurídica de empresa que age com abuso de direito e fraude contra a Administração não se enquadra nas exceções ao atributo da autoexecutoriedade, pois não visa atacar direitos e garantias fundamentais, em especial a garantia de propriedade prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 5°, inc. XXII). Pelo contrário, a Administração Pública, in casu, está agindo em conformidade com o ordenamento jurídico, no seu poder-dever de garantir a efetividade do seu poder de império face às condutas comprovadamente abusivas e fraudulentas, que em nada coadunam com o interesse público.
Dessarte, não podemos esquecer o primado do devido processo legal, de maneira que se faz necessário um processo administrativo para imposição da penalidade a essa nova sociedade empresária, garantindo, assim, o exercício da ampla defesa e do contraditório por parte dessa.
Logo, restando comprovado o nítido propósito de burla a penalidade anteriormente imposta, em nome do interesse público, deve a Administração desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, estendendo os efeitos das sanções de impedimento ou da declaração de inidoneidade para licitar com o Poder Público.
Nesse aspecto, vejamos a balizada doutrina de Marcus Juruena Villela Souto (apud FARIAS, 2011, p. 941) acerca da ausência de disposições normativas expressas que autorizem a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito administrativo, litteris:
Nem por isso fica a Administração à mercê do fraudador, de mãos atadas. Pode ela, após a devida apuração da fraude, declarar nulo o contrato, já que a simulação teria viciado a sua vontade. Neste caso, autoriza- se a utilização supletiva do direito privado para considerar-se viciado o contrato por erro quanto à pessoa.
(...)
Vê-se, pois, que, embora não havendo lei específica, é cabível, também no Direito Administrativo, a aplicação excepcional da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica para evitar prejuízo ao Erário ou à qualidade do serviço público, desde que caracterizados o elo e a intenção em fugir à pena previamente imposta.
Vale o escólio de Lamartine Correia de Oliveira (apud WATANABE, 2006):
[...] o desconhecimento da forma da pessoa jurídica em casos de fraude à lei não passa de aplicação específica do princípio geral segundo o qual o abuso de um instituto jurídico não pode jamais ser tutelado pelo ordenamento jurídico. [...]
Provado o intuito de fraude à norma legal, será perfeitamente defensável decisão que desconheça a pessoa jurídica.
O Superior Tribunal de Justiça asseverou a possibilidade de extensão dos efeitos da penalidade administrativa de declaração de inidoneidade para licitar à empresa constituída ulteriormente com propósito de fraudar a lei, conforme se depreende da ementa do julgado proferido no RMS n° 15.166-BA, verbis:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.
- Recurso a que se nega provimento.
(RMS 15.166/BA, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262)
Diverso não é o entendimento do Tribunal de Contas da União, no sentido de que os efeitos da declaração de inidoneidade devem ser aplicados às futuras sociedades constituídas pelos mesmos sócios cujo objeto social seja a prestação dos mesmos serviços que deram ensejo a aplicação da sanção, ut decisões da Corte de Contas, abaixo transcritas:
TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. FRAUDE À LICITACÃO. SUPERFATURAMENTEO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONTAS IRREGULARES. DÉBITO. MULTA. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE DE LICITANTE.
- A constatação de ocorrência de fraude à licitação, com configuração de dano ao Erário, enseja a condenação dos responsáveis em débito, julgamento pela irregularidade das contas e aplicação de multa.
- A existência de fraude em procedimento licitatório enseja a declaração de inidoneidade dos licitantes envolvidos para participarem de licitação na Administração Pública Federal
- Acolhida a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, respondem os sócios das empresas envolvidas pelo prejuízo causado ao erário.
[..]
3.10 Penso, porém, que esta Corte de Contas deva, na esteira do precedente trazido pela Secex/RN, estender a inidoneidade para licitar com a Administração Pública Federal às futuras sociedades que forem constituídas com o mesmo objeto social e composta pelo mesmo quadro societário daquelas fraudadoras do certame da UFRN. (acórdão 1209/2009-Plenário, de relatoria do Ministro José Jorge)
“Concluindo, não é de justiça e conforme o direito contemporâneo esquecer os fatos insertos nos autos para não aplicar ao verdadeiro culpado as penalidades cabíveis, principalmente porque, se não aplicada a regra da desconsideração da personalidade jurídica, poder-se-á estar inviabilizando a execução, não punindo o verdadeiro infrator, impossibilitando a aplicação de sanções outras que não o débito (multa por exemplo) àqueles que praticaram os ilícitos, usufruíram pessoalmente das verbas ilicitamente auferidas (já que não contabilizaram na empresa e sacaram diretamente no banco) e que não figurarão nos autos, dificultando a apuração da responsabilidade dos mesmos e consequente encaminhamento dos fatos ao Ministério Público Federal para as ações de direito, enfim, uma série de consequências jurídicas capazes de tornar este processo inefetivo e injusto” (trecho do acórdão n° 189/2001-Plenário, cuja relatoria coube ao Ministro Guilherme Palmeira).
“75. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo coibir o uso indevido da pessoa jurídica, levada a efeito mediante a utilização da pessoa jurídica contrária a sua função social e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico, afastando, assim, a autonomia patrimonial para chegar à responsabilização dos sócios da pessoa jurídica e/ou para coibir os efeitos de fraude ou ilicitude comprovada. (…).
76. A doutrina e a jurisprudência dos tribunais já consideram que um desdobramento dessa teoria é a possibilidade de estender os seus efeitos a outras empresas, diante das circunstâncias e provas do caso concreto específico. Trata-se da teoria da desconsideração expansiva da personalidade jurídica da sociedade, terminologia utilizada pelo Prof. Rafael Mônaco (…).
77. Com a teoria da desconsideração expansiva da personalidade jurídica, é possível estender os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica aos ‘sócios ocultos’ para responsabilizar aquele indivíduo que coloca sua empresa em nome de um terceiro ou para alcançar empresas de um mesmo
grupo econômico (…).
80. No âmbito administrativo, a doutrina e a jurisprudência vêm firmando entendimento de ser viável a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a extensão de seus efeitos para afastar a possibilidade de uma empresa que tenha sido suspensa ou impedida de participar de licitação ou contratar com a Administração Pública, ou ainda, declarada inidônea, possa ter seus sócios integrando, direta ou indiretamente, outra pessoa jurídica que participe de licitação com o Poder Público.” Acórdão nº 2593/2013, Rel. Min. WALTON ALENCAR RODRIGUES
No final do ano de 2013, em decisão liminar proferida em mandado de segurança impetrado contra ato de Tribunal de Contas da União que desconsiderou a personalidade jurídica de empresa participante de processo de licitação internacional, com relatoria do Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal assim se pronunciou:
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E DESCONSIDERAÇÃO EXPANSIVA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. “DISREGARD DOCTRINE” E RESERVA DE JURISDIÇÃO: EXAME DA POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, MEDIANTE ATO PRÓPRIO, AGINDO “PRO DOMO SUA”, DESCONSIDERAR A PERSONALIDADE CIVIL DA EMPRESA, EM ORDEM A COIBIR SITUAÇÕES CONFIGURADORAS DE ABUSO DE DIREITO OU DE FRAUDE. A COMPETÊNCIA INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E A DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. INDISPENSABILIDADE, OU NÃO, DE LEI QUE VIABILIZE A INCIDÊNCIA DA TÉCNICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM SEDE ADMINISTRATIVA. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: SUPERAÇÃO DE PARADIGMA TEÓRICO FUNDADO NA DOUTRINA TRADICIONAL. O PRINCÍPIO DA MORALIDAD ADMINISTRATIVA: VALOR CONSTITUCIONAL
REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO,CONDICIONANTE DA LEGITIMIDADE E DA VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. O ADVENTO DA LEI Nº 12.846/2013 (ART. 5º, IV, “e”, E ART. 14), AINDA EM PERÍODO DE “ VACATIO LEGIS”. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O POSTULADO DA INTRANSCENDÊNCIA DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. MAGISTÉRIO DA
DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA PRETENSÃO CAUTELAR E CONFIGURAÇÃO DO “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.
Assim, em busca da garantia de efetividade da penalidade administrativa e da exclusão de empresas fraudulentas do rol de contratados pelo Poder Público, e, mais, em nome dos princípios da moralidade, indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado, é que temos como medida inafastável a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo.
2.2. POSITIVAÇÃO DA TEORIA NA ESFERA ADMINISTRATIVA: LEI BAIANA DE LICITAÇÕES E LEI ANTICORRUPÇÃO
A ausência de previsão legal da medida excepcional e temporária de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo constitui o maior empecilho à sua aplicação reiterada. Tal barreira, conforme alhures demonstrado, com base nos princípios vetores da Administração Pública acaba sendo facilmente ultrapassada.
Nesse ínterim, eis a Lei de Licitações do Estado da Bahia (Lei n° 9.433/2005) que põe fim a qualquer dúvida acerca da possibilidade jurídica de aplicação de tal medida na seara administrativa.
Prescreve o art. 200 da citada Lei que fica impedido de participar de licitação e contratar com o Poder Público sociedade empresária cujo seus sócios anteriormente tenham participado de outra sociedade punida com suspensão do direito de licitar ou declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública.
É o que se traduz da literalidade do dispositivo aludido, in verbis:
Art. 200. Fica impedida de participar de licitação e de contratar com a Administração Pública a pessoa jurídica constituída por membros de sociedade que, em data anterior à sua criação, haja sofrido penalidade de suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração ou tenha sido declarada inidônea para licitar e contratar e que tenha objeto similar ao da empresa punida.
Assim fica a Administração Pública Estadual da Bahia expressamente autorizada a transladar os efeitos da penalidade anteriormente imposta, a partir das pessoas dos sócios, e desde que caracterizada a atuação em ramos similares das duas empresas.
Um ponto que merece destaque é saber em qual momento é possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Edite Hupsel e Leyla Costa (apud FARIAS, 2009, p. 946), asseveram que o marco inicial para aplicação da penalidade se dá com a instauração do processo administrativo, e não da aplicação da penalidade, como bem explicam os autores:
Aliás, se constituída a nova entidade quando já se encontrava instaurado o processo administrativo para apenação da outra pessoa jurídica, a presunção de fraude se faz presente e autoriza, no nosso sentir, a aplicação do impedimento. A data de instauração de processo administrativo, então, e não a da aplicação da penalidade deve ser entendida como marco a partir do qual se passa a presumir fraude na constituição da nova empresa sendo autorizada, neste caso, a extensão do impedimento à nova pessoa jurídica.
Logo, o ensinamento esposado vale também para a aplicação da disregard doctrine nas demais esferas administrativas, garantindo uma maior segurança quando da punição, pois, atitudes oportunistas de empresas fraudulentas, seriam inibidas desde a instauração do procedimento administrativo. O que, decerto, é extremamente válido, ante a prática reiterada de sociedades empresárias que a partir do momento da abertura de um processo administrativo, de pronto, constituem uma nova sociedade para que no caso de eventual punição, possam continuar desempenhando suas atividades.
Calha mencionar a previsão trazida no art. 14 da Lei 12.846/13, a Lei Anticorrupção, que prevê a possibilidade no curso de processo administrativo de responsabilização de pessoa jurídica pela prática de atos contra a administração pública, de desconsideração da personalidade jurídica, ex vi o citado dispositivo:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
Por fim, a Lei Baiana de Licitações e a Lei Anticorrupção nos mostram que a conduta aqui estudada, hoje exceção, em breve será regra no nosso ordenamento jurídico, em consonância com o indisponível interesse público norteador de todas as práticas administrativas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É sabido que a aplicação de penalidades pela Administração Pública ao particular contratado não tem conseguido extirpar do seu rol de contratados empresas fraudulentas e com abuso de forma, pois os sócios de tais sociedades empresárias dão continuidade às suas atividades a partir de novas composições, e não encontram nenhum óbice a tal procedimento. A solução encontrada para efetiva aplicação das penalidades administrativas é o uso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pela própria Administração Pública, sem a interveniência do Poder Judiciário. Mesmo inexistindo previsão legal para a aplicação da disregard doctrine no âmbito administrativo, com base no uso da analogia, aplica-se tal remédio jurídico em respeito aos princípios da moralidade administrativa, supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade do interesse público.
Finalmente, com arrimo no conteúdo deste trabalho de conclusão de curso, conclui-se que dúvidas não restam de que a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo é a maneira mais célere e eficaz de garantir a eficácia das sanções aplicadas aos particulares contratados, sendo plenamente viável a sua aplicação sem a interveniência do Judiciário, desde que observado o devido processo legal, e assegurado o contraditório e a ampla defesa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 18 ed. Rio de Janeiro: Método, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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: advogado, formado em Direito pela Universidade Tiradentes (2012), especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera (2015), e pós-graduando em Direito Público pelo Instituto Elpídio Donizetti (2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENESES, José Wilton Florêncio. A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das licitações sem a interveniência do Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50193/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-no-ambito-das-licitacoes-sem-a-interveniencia-do-poder-judiciario. Acesso em: 23 dez 2024.
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