1. Introdução
Desde a elaboração da Carta das Nações Unidas, em 1945, a comunidade internacional realiza esforços para garantir a proteção dos Direitos Humanos, baseados na dignidade do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres. Em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos afirmou que os direitos dos homens são inalienáveis, universais e que não reconhecem qualquer diferença de gênero.
Entretanto, ainda que os princípios de igualdade e não discriminação estejam presentes em diversos tratados internacionais e declarações desde a década de 40, é notável a violação sistemática dos mesmos. Logo, torna-se imprescindível a realização de conferências mundiais e leis específicas que estabeleçam e assegurem demandas relacionadas à igualdade de gênero e defesa dos direitos das mulheres.
2. Garantias governamentais quanto à defesa dos direitos da mulher
São dois os tipos de compromisso firmados pelo governo frente à comunidade internacional? os tratados e as convenções que geram obrigações jurídicas para o país, por isso, necessitam de ratificação. Tais acordos que lhes conferem o efeito jurídico e a força obrigatória aos direitos reconhecidos (FROSSARD, 2006). Por outro lado, existem as conferências internacionais, as quais têm natureza política, mas estas não criam obrigação jurídica.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) constituiu um marco na definição internacional dos direitos das mulheres, sendo considerado até hoje um dos documentos mais importante do movimento feminista. Dentre os principais objetivos da convenção, que foi adotada em 1979 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e ratificada pelo Brasil em 1994, estão a garantia a não discriminação da mulher e o respeito aos princípios da igualdade de direitos e da dignidade humana.
No campo da autonomia pessoal da mulher, destaca-se um avanço brasileiro: a Lei Maria da Penha, que completa 10 anos em 2016. A lei define “as linhas de uma política de prevenção e atenção ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como delimita o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar”. Segundo pesquisa do IBOPE/THEMIS 2008, cerca de 68% da população brasileira tem conhecimento da Lei Maria da Penha. No entanto, mesmo com o conhecimento da lei, os casos de violência não foram erradicados ou minimizados de maneira expressiva (CAMPOS, 2015).
3. Violência de Gênero: O que embasa sua permanência na atualidade?
Mesmo com as constantes transformações realizadas desde as últimas décadas, como a Lei Maria da Penha e a criação das delegacias da mulher, a violência doméstica persiste no Brasil. O país ocupa a sétima posição no ranking mundial dos países com mais crimes praticados contra mulheres. Dessa forma, é feito o seguinte questionamento: Quais os motivos para a permanência da violência de gênero? A desigualdade sociocultural e histórica entre homens e mulheres pode ser considerada uma das razões, estando dentre as principais causas responsáveis por desencadear uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens quanto por mulheres.
Outro motivo que corrobora com a cultura de violência de gênero no país é o quadro histórico de leis ordinárias que permitiam a impunidade dos homens por admitirem o crime de delito passional e em defesa da honra, acrescido muitas vezes pela alegação de provocação da vítima. Ainda que a tese da legítima defesa da honra tenha perdido seu prestígio ao longo das últimas décadas, é oportuno ressaltar que a ideia por trás da tese permanece em determinados segmentos da sociedade, inclusive no judiciário onde a tese ainda é acionada por juristas (ASSIS, 2003).
Em função disso, o termo honra como proposto no passado é reflexo essencial da desigualdade de gênero. A mulher honrosa tem seu marido como juiz de suas condutas. Pouco importa se a conjugue vive de maneira recatada e seja fiel. É necessário que o companheiro a veja dessa forma. Assim, sob esse constante julgamento que atinge todas as esferas de sua vida, a honra feminina, ou seja, a virtude da mulher é aquela da passibilidade, da docilidade e acima de tudo da submissão. A vítima do feminicídio tem sua sentença de morte não necessariamente no ato da traição em si, mas sim na quebra desse contrato que tem como cláusula principal a submissão (MACHADO, 2009).
Em oposição, a honra masculina existe como a marca da busca do objeto feminino. Essa é lesionada com a independência da vítima, ou seja, com a perda da total capacidade de controle sob a vida da mulher, não podendo mais dominar por completo a relação conjugal. Perante essa situação, o judiciário patriarcal funciona, não só na lógica do direito penal do autor, mas também em consonância com o marido juiz. Ao justificar as ações do agressor por meio de uma perspectiva de que o homem é um ser controlador e impulsivo, ratifica-se a visão de que a única reação possível é a de violência máxima. O que estava em jogo na corte não era ato conflituoso do réu, mas sim a vida da vítima que era julgada de acordo com os parâmetros da submissão do gênero feminino. As garantias penais ficam de lado e as categorias jurídicas existem apenas como modo de traduzir para o processo a glorificação da violência masculina.
4. Sobre a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06)
A situação de invisibilidade vivida pelas mulheres que sofriam violência doméstica era um cenário já há muito consolidado. No entanto, com a vigência da Lei nº 9.099/95, a Lei dos Juizados Especiais, que tinha como objetivo primário dar celeridade e gerar economia para a Justiça, a vulnerabilidade das vítimas se agravou. O juiz priorizava o rápido andamento dos trâmites em detrimento da preservação da vida e da garantia à integridade física e psicológica da mulher (DIAS, 2015). A lei permitia a aplicação da pena antes mesmo de oferecimento da denúncia e sem discussão da culpabilidade, além de outros condicionamentos peculiares (DIAS, 2015). Isso se deve pelo fato de que maioria dos delitos cometidos contra mulheres no ambiente familiar – como lesão corporal leve, ameaça, calúnia e injúria – se enquadraram na categoria de pequeno potencial ofensivo.
Além disso, ao deixar a representação à vítima, o Estado omitia-se na sua obrigação de punir, transferindo à mulher a tarefa de buscar apenação a seu agressor. Significando que a ação penal pública deixava de ser incondicionada para ser condicionada. O que não funciona nos casos de violência doméstica pelo simples fato que de existe uma relação hierarquizada de poder entre agressor e agredido, sendo inexigível que o desprotegido se levante contra seu agressor (DIAS, 2015).
Ainda que o Código Penal reconhecesse como agravante as agressões praticadas contra pais, filhos, irmãos ou cônjuges (CP, art. 61), tal texto não é suficiente para abarcar a complexidade da violência doméstica. Em 1985 surgiu em São Paulo a primeira Delegacia da Mulher, com a finalidade de atender a violência intrafamiliar de modo diferenciado quando já era evidente que a realidade da violência doméstica majoritariamente se tratava da prática delitiva contra a mulher (DIAS, 2015).
A Lei Maria da Penha surge justamente para resguardar de maneira formal e material o direito das mulheres, tendo por objetivo a concretização do princípio da igualdade substancial, que se impõe que sejam tratados desigualmente os desiguais. De acordo com Alexandre de Moraes, para as diferenças normativas não serem discriminatórias é indispensável justificativa objetiva e razoável (MORAES, 2012), sendo claras as justificativas para o tratamento diferenciado em relação a mulheres. Logo, são extremamente necessárias discriminações positivas que visem compensar e contrabalancear certas desvantagens históricas.
Quanto à representação a Lei Maria da Penha repudiou os Juizados Especiais, criando os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, propiciando acompanhamento apropriado, analisando de maneira mais cuidadosa os casos concretos. Quanto aos delitos de pequeno potencial ofensivo, a lei afastou a possibilidade de aplicação de penas não restritivas de liberdade. Este dispositivo devolveu à autoridade policial a prerrogativa investigatória, estabelecendo ainda nesse sentido que a vítima deve sempre estar acompanhada de advogado (LMP, art. 27) tanto na fase policial como em juízo, sendo ainda garantido acesso a serviços de Defensoria Pública e da Assistência Judiciária Gratuita (LMP, art. 28) (DIAS, 2015).
Após a edição da Lei, o número de Delegacias da Mulher (DEAMs),
Núcleos Especializados, casas-abrigo, Promotorias da mulher, Defensoria da Mulher, dentre outros, cresceram significativamente (CAMPOS, 2015). A criação de tais mecanismos foi essencial para a luta contra a violência doméstica. A denúncia foi facilitada e o apoio para a vítima foi instituído.
5. Feminicídio: Efeitos e implicações
Apesar da Lei Maria da Penha tratar com rigidez tais crimes, ela não foi suficiente para erradicar o problema, continuando a violência contra a mulher com níveis alarmantes (ABDALA, 2011). Uma das maneiras que a violência contra a mulher se configura é o feminicídio. Diferentemente de femicídio, que significa a morte de uma mulher, o termo trata do homicídio de uma mulher pela simples razão de ela ser do gênero feminino.
O feminicídio pode decorrer de diversas circunstâncias, como o estupro, o assédio sexual, o uso de mulheres na pornografia, a exploração sexual, etc. (GEBRIM et. al., 2014). O objetivo do termo, que no Brasil tornou-se Lei específica (Lei nº 13.104/2015), é retirar a morte de mulheres decorrente do simples fato de serem mulheres da definição geral do homicídio, uma vez que o feminicídio contém características específicas. Além disso, o termo afasta a tendência individualizante e natural de se culpar a vítima, tratando muitas vezes do fato como problema passional. O feminicídio vai além de ser uma violência realizada por homens contra as mulheres. O feminicídio deve se enquadrar como violência exercida por homens por conta de sua posição de supremacia, seja ela social, sexual ou econômica (GEBRIM et. al., 2014).
A Lei nº 13.104/2015 altera o artigo 121 do Código Penal, o qual trata sobre o homicídio e o artigo 1º da Lei nº 8.072/1990, que trata sobre os crimes hediondos. As alterações feitas são aditivas, sendo que no Código Penal a adição visa prever o feminicídio como circunstância qualificadora subjetiva do crime de homicídio, justamente porque violência de gênero não é uma forma de execução do crime, mas sim, seu motivo. Além disso, acrescentou-se uma majorante, podendo a pena aumentar de 1/3 até a metade se o crime for praticado dentro do previsto (CP, art. 121, § 2º-A). Já na Lei nº 8.072/1990, foi incluído o feminicídio no rol dos crimes hediondos (SIMIONATO et. al., 2015).
REFERÊNCIAS:
ABDALA, Cláudia; SILVEIRA, Kátia; MINAYO, Maria Cecília. Aplicação da Lei
Maria da Penha nas delegacias de mulheres: O caso do Rio de Janeiro.
CAMPOS, Carmen Hein de. A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha. Estudos Feministas, Universidade de Vila Velha Florianópolis, 2015. (CAMPOS, 2015)
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista dos Tribunais, 4ª Edição, São Paulo, 2015. (DIAS, 2015)
FROSSARD, Heloisa. 2006. Instrumentos internacionais de direitos das mulheres. Brasília, D.F.: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
GARCIA, Leila Posenato. FREITAS, Lúcia Rolim Santana de. SILVA, Gabriela Drummond Marques da. HOFELMANN, Doroteia Aparecida. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, 2013. (GARCIA et. al., 2013).
GEBRIM, Luciana Maibashi. BORGES, Paulo César Corrêa. Violência de gênero Tipificar ou não o femicídio/feminicídio? Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, Ano 51 Número 202 abr./jun. 2014. (GEBRIM et al, 2014).
MACHADO, Lia Zanotta. A Longa Duração da Violência de Gênero na América Latina. In: FERNANDES, Ana Maria, RANINCHESKI, Sonia (Orgs.) Américas Compartilhadas. 1ª Ed. São Paulo: Editora Francis, 2009, v.1, p. 57-83.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas. 2012.
Graduanda no curso de Direito da Universidade de Brasília - UNB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ABREU, Anna Beatriz Pinheiro de Souza. Lei Maria da Penha e feminicídio: análise da lei, seus efeitos e garantias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50213/lei-maria-da-penha-e-feminicidio-analise-da-lei-seus-efeitos-e-garantias. Acesso em: 23 dez 2024.
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