Resumo. Este artigo tem o objetivo de fazer uma análise crítica e minuciosa da súmula nº 501 do Superior Tribunal de Justiça. Para tanto, inicialmente, examina os precedentes dos quais resultou; após isso, estuda os princípios penais relacionados ao tema, sobretudo o da irretroatividade da norma penal e o da retroatividade da norma penal benéfica. Finalmente, propõe uma concepção material desses princípios, além de um rearranjo terminológico, a fim de concluir pela necessidade de superação da referida súmula e pela legitimidade da combinação de leis penais para fins de retroação benéfica.
Palavras-chave: súmula 501 do STJ, irretroatividade da norma penal, retroatividade da lei benéfica, combinação de leis.
Abstract. Paper which deeply analyses the Number 501 Consolidated Precedent of the Bralizian Superior Tribunal of Justice, responsible for the integrity and unification of the federal law of Brasil. To achieve this objective, We firstly examine the cases that ware the base of the precedent. After that, it analyzes law´s principles related to the theme, developing them. Finally, this research proposes the overruling of that precedent.
Keywords. Brazilian federal law; precedent; overruling.
Sumário. 1 Introdução. 2. Do porquê da súmula e dos precedentes que a geraram. 3. Da necessidade de superação da súmula. 4 Conclusão. 5 Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
“Mas, se o pensamento pode corromper a linguagem, também a linguagem pode corromper o pensamento”, escrevia ORWELL (1946, p. 13), para ilustrar a influência das palavras na Ciência Política. Mas a essa constatação deve ser dada a devida amplitude, e assim dizer-se que, mais que influir no pensar, sobre a língua se constroem as Ciências Humanas, que criam enormes conjuntos de conceitos, princípios, constatações e regras sobre bases fáticas não tão apreensíveis quanto as das ciências exatas.
A linguagem jurídica, normativa por natureza, necessita de um veículo para se externar: uma constituição, uma lei, uma súmula. Tais difusores, no entanto, não podem ser confundidos com a própria matéria normativa que materializam, esta sim idealmente una e indivisível, a formar um todo maior, o sistema jurídico.
Possivelmente nisso resida a dificuldade de compreendê-la e também a de controlá-la – metodologicamente. A força que exerce a linguagem nessa seção do conhecimento torna-o inevitavelmente mutável e, às vezes, arbitrário; característica, e das mais marcantes, da própria linguagem.
Do mesmo modo, é no Direito que esse fato se torna especialmente perigoso, uma vez que há, nele, a junção do fascínio gerado pela língua concatenada em forma de discurso e daquele inerente à coerção, da força invencível do Estado. Afinal, para além de normatizar, destaca-se, como função essencial do direito, o controle do poder.
Sob esse ângulo, será feita uma análise do equívoco jurisprudencial perpetuado na Súmula nº 501 do Superior Tribunal de Justiça – “[é] cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis” –, especialmente da sua parte final.
2. DO PORQUÊ DA SÚMULA E DOS PRECEDENTES QUE A GERARAM
A Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas) revogou a Lei nº 6.863/76 de modo completo, visando a dar novo tratamento aos crimes relacionados com as drogas ilícitas no País, para superar a defasada disciplina legal do tema na época. Mais que simplesmente alterar os tipos penais e as penas relacionadas ao porte para consumo pessoal e ao tráfico ilícito, a Nova Lei de Drogas empreendeu uma cisão na disciplina do tema, a fim de abrandar o tratamento dado ao usuário e, em contrapartida, aumentar o rigor penal imposto aos crimes relacionados com o comércio ilegal de substâncias entorpecentes.
A mudança se fundamentava, por um lado, na doutrina da redução de dano (BRASILEIRO, 2015, p. 701), abordagem do fenômeno das drogas que se propõe a diminuir os danos sociais e à saúde relacionados tanto com o uso quanto com a sua repressão de entorpecentes, e, por outro, na política de guerra às drogas, notabilizada nos Estados Unidos da América a partir dos anos 1970, por meio do Presidente Richard Nixon, e com grande expansão por toda a América Latina. Por paradoxal que possa parecer, esse antagonismo axiológico refletia o discurso político hegemônico da sua época, que só atualmente parece se enfraquecer.
Nessa linha, quanto ao delito de porte de drogas para consumo pessoal, a Lei nº 11.343/06 excluiu a possibilidade de aplicação de penas privativas de liberdade, antes imponível no patamar de seis meses a dois anos de detenção[1]. A alteração, aliás, chamada pela doutrina de “despenalização”, gerou grande discussão sobre a descriminalização ou não do delito, formando-se três correntes sobre o tema: a que pregava a supressão da figura delituosa, a que defendia o surgimento de uma terceira espécie de infração penal e a que preconizava a manutenção pura e simples do caráter criminoso da conduta. A última, majoritária, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal[2].
Seguindo a linha oposta, o tratamento imprimido ao tráfico de drogas e a crimes correlatos foi duramente intensificado, o que mostrou franca adesão do Brasil à continuação da política criminal de controle das drogas por meio de penas privativas de liberdade, semelhantemente ao que ocorria nos EUA, e já em franca contradição ao que se dava na Europa Ocidental. A pena privativa de liberdade mínima para a modalidade principal de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Nova Lei) passou de três para cinco anos de reclusão.
Não se pode omitir, todavia, que o tratamento do comércio ilegal de drogas tornou-se mais complexo, a fim de mitigar o áspero tratamento legal que seria imposto ao pequeno traficante, ou seja, o primário e sem envolvimento com o crime organizado. Para tanto, criou-se uma causa de diminuição de pena de um a dois terços (art. 33, §4º) para o agente que ostente bons antecedentes e primariedade, além de não integrar organização criminosa nem se dedicar a atividades criminosas. Apesar de não se tratar de privilégio no sentido técnico-jurídico, o tráfico minorado ficou conhecido no mundo forense como “tráfico privilegiado”, o que denota que a atual consciência jurídica média distingue com clareza o traficante meramente eventual do que integra o crime organizado.
Para reforçar a ideia de que o pensar jurídico contemporâneo vem cindindo o tráfico minorado daquele em que não incide o §3º do art. 33, convém aludir à recente decisão do Supremo Tribunal Federal[3] que, de modo paradigmático, afastou a hediondez do tráfico “privilegiado”, fato que passa a conferir-lhe tratamento penal muito mais brando, sobretudo no campo da execução penal.
Não demorou, porém, para essa inevitável heterogeneização de tratamento instaurar uma intensa discussão doutrinária e jurisprudencial em torno da sua retroatividade, e reacender a antiga polêmica em torno da vedação à combinação de leis para fins de retroação benéfica da lei penal. Tal se deve à circunstância de que, embora tenha havido aumento da pena mínima relacionada ao crime, esta poderia se tornar ainda mais baixa do que à imposta pela antiga lei de drogas, quando fosse aplicada a causa de diminuição de pena do “tráfico privilegiado”.
As duas primeiras conclusões, amparadas no ensinamento de Nelson HUNGRIA (1949, p. 110), tomavam como premissa a vedação à combinação de leis para se encontrar a sanção penal mais favorável ao réu, argumentando que o juiz se alçava, ao combinar leis, à condição de legislador, criando uma terceira lei (lex tertia).
A primeira propunha, então, a aplicação da antiga pena – de três anos –, sem a possibilidade de incidência do privilégio, uma vez que este integrava a pena mais rigorosa e, portanto, irretroativa. Defendia-se que a retroatividade da lex mitior não implica a imperiosidade de uma pena em concreto menor que a aplicada por meio das regras da lex gravior, limitando-se a operar no plano abstrato. O expediente, contudo, não consegue superar o mais raso confronto com o princípio retroatividade da lei penal mais benéfica – afinal, admiti-lo seria o mesmo que negar a retroação da menor pena, para impor sanção maior a quem delinquisse sob o império da lei mais benéfica, em claro contrassenso.
A segunda, por sua vez, preconizava o oposto: na hipótese de aplicação da causa de diminuição de pena, o julgador deveria aplicar a nova pena, mais grave, como base para a diminuição, quando isso importasse em uma pena menor do que a aplicação da pena da Lei nº 6.368/76 sem a minorante. A norma deixaria de operar no plano abstrato, e a lei benéfica seria a que fosse, no plano concreto, a menor imposição, ao final da aplicação da pena.
A última solução foi a que prevaleceu, seja doutrinária, seja jurisprudencialmente, servindo de fundamento para a edição da Súmula 501 do STJ, objeto da análise e da crítica empreendidas neste artigo, como se pode ver dos precedentes a seguir[4]:
'' [...] A Lei nº 11.343/06, ao revogar a Lei nº 6.368/76, disciplinou por inteiro o sistema de repressão ao tráfico ilícito de drogas e, ao tempo em que conferiu tratamento mais rigoroso aos traficantes, aumentando a pena mínima cominada abstratamente ao delito de 3 (três) para 5 (cinco) anos, instituiu causa especial de diminuição de pena de 1/6 a 2/3, e ainda reduziu o menor patamar de exasperação pelas causas especiais de aumento de pena de 1/3 (um terço) para 1/6 (um sexto). 2. A concessão da minorante do parágrafo 4º do artigo 33 e a aplicação da majorante no patamar do artigo 40, ambos da Lei 11.343/06 sobre a pena fixada com base no preceito secundário do artigo 12 da Lei nº 6.368/76 não decorreria de mera retroatividade de lei nova mais benéfica, mas de verdadeira aplicação conjugada das normas revogada e revogadora, sendo de todo inviável, já que o sistema revogador instituiu causa de diminuição de pena e reduziu o menor patamar da exasperação pelas causas de aumento de pena justamente porque aumentara a pena mínima cominada abstratamente ao delito de 3 (três) para 5 (cinco) anos. 3. Conquanto se reconheça na lei revogadora as hipóteses de nova causa de diminuição da pena, bem como de aumento de pena em patamar menor, não se pode pinçar uma regra de uma lei e uma regra da outra lei para o fim de beneficiar o réu porque assim haveria a criação de uma terceira lei que, além de evidenciar atividade legiferante, vedada ao Poder Judiciário, deixa de considerar a norma como um sistema uno, coerente e harmônico.[...]'' (AgRg no REsp 1212535 PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 02/04/2013, DJe 11/04/2013)
'' [...] é descabida a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 à reprimenda cominada nos termos da Lei n. 6.368/1976. Na verdade, o condenado faz jus à aplicação integral da lei nova se esta lhe for benéfica. Em se tratando de tráfico de drogas, tal análise é feita caso a caso e consiste em verificar, essencialmente, se estariam preenchidos os requisitos previstos no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, de forma que, a partir da aplicação dessa causa de diminuição, a reprimenda final fosse menor do que aquela fixada nos termos da Lei n. 6.368/1976. [...]'' (AgRg no HC 199324/MS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 14/12/2012)
'' [...] A Constituição Federal reconhece, no art. 5º inciso XL, como garantia fundamental, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Desse modo, o advento de lei penal mais favorável ao acusado impõe sua imediata aplicação, mesmo após o trânsito em julgado da condenação. Todavia, a verificação da lex mitior, no confronto de leis, é feita in concreto, visto que a norma aparentemente mais benéfica, num determinado caso, pode não ser. Assim, pode haver, conforme a situação, retroatividade da regra nova ou ultra-atividade da norma antiga. II – A norma insculpida no art. 33, § 4º da Lei nº 11.343/06 inovou no ordenamento jurídico pátrio ao prever uma causa de diminuição de pena explicitamente vinculada ao novo apenamento previsto no caput do art. 33. III - Portanto, não há que se admitir sua aplicação em combinação ao conteúdo do preceito secundário do tipo referente ao tráfico na antiga lei (Art.12 da Lei nº 6.368/76) gerando daí uma terceira norma não elaborada e jamais prevista pelo legislador. IV - Dessa forma, a aplicação da referida minorante, inexoravelmente, deve incidir tão somente em relação à pena prevista no caput do artigo 33 da Lei nº 11.343/06. V - Em homenagem ao princípio da extra-atividade (retroatividade ou ultra-atividade) da lei penal mais benéfica deve-se, caso a caso, verificar qual a situação mais vantajosa ao condenado: se a aplicação das penas insertas na antiga lei - em que a pena mínima é mais baixa - ou a aplicação da nova lei na qual há a possibilidade de incidência da causa de diminuição, recaindo sobre quantum mais elevado. Contudo, jamais a combinação dos textos que levaria a uma regra inédita.[...]'' (EREsp 1094499 MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/05/2010, DJe 18/08/2010)
'' [...] A redução da pena de 1/6 até 2/3, prevista no art. 33, parág. 4º da Lei 11.343/06, objetivou suavizar a situação do acusado primário, de bons antecedentes, que não se dedica a atividades criminosas nem integra organização criminosa, proibida, de qualquer forma, a conversão em restritiva de direito. 2. Embora o referido parágrafo tenha a natureza de direito material, porquanto cuida de regra de aplicação da pena, tema regulado no Código Penal Brasileiro, mostra-se indevida e inadequada a sua aplicação retroativa à aquelas situações consumadas ainda na vigência da Lei 6.368/76, pois o Magistrado que assim procede está, em verdade, cindindo leis para criar uma terceira norma - uma lei de drogas que prevê pena mínima para o crime de tráfico de 3 anos, passível de redução de 1/6 até 2/3, para agentes primários e de bons antecedentes, possibilitando, em tese, a fixação da sanção em apenas 1 ano de reclusão; contudo, essa norma jamais existiu no ordenamento jurídico brasileiro, não podendo ser instituída por via de interpretação.[...] Na hipótese, o § 4o. faz referência expressa ao caput do art. 33 da nova Lei de Drogas, sendo parte integrante deste, que aumentou a pena mínima para o crime de tráfico de 3 para 5 anos. Sua razão de ser está nesse aumento, para afastar qualquer possível ofensa ao princípio da proporcionalidade, permitindo ao Magistrado que, diante da situação concreta, mitigue a sanção penal do traficante ocasional ou do réu primário, de bons antecedentes e não integrante de organização criminosa; assim, não há como interpretá-lo isoladamente do contexto da novel legislação.[...] A solução que atende ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica (art. 2o. do CPB e 5º., XL da CF/88), sem todavia, quebrar a unidade lógica do sistema jurídico, vedando que o intérprete da Lei possa extrair apenas os conteúdos das normas que julgue conveniente, é aquela que permite a aplicação, em sua integralidade, de uma ou de outra Lei, competindo ao Magistrado singular, ao Juiz da VEC ou ao Tribunal Estadual decidir, diante do caso concreto, aquilo que for melhor ao acusado ou sentenciado.[...]'' (HC 86797 SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 11/03/2008, DJe 07/04/2008)
''[...] inadmissível a combinação de leis, de modo a ser inviável a aplicação da causa de diminuição de pena prevista § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06 ao preceito secundário do art. 12 da Lei nº 6.368/76 (antiga lei de drogas). 6. Resultou consignado, entretanto, que não fica afastada a possibilidade de incidência da referida minorante à pena cominada no art. 33 da Lei nº 11.343/06, desde que tal operação seja mais favorável ao réu.[...]'' (HC 132634 PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 21/05/2013)
A despeito da posição dominante, a proposta deste artigo consiste em demonstrar o acerto de uma terceira posição, que rechaça a vedação à combinação de leis, para fazer retroagir o direito penal material ou o híbrido (normas processuais de ressonância material), independentemente do modo como foi materializado pelo legislador. Por consistir no tópico principal do presente estudo, será tratado em separado.
3. DA NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA SÚMULA
Para uma efetiva análise crítica da Súmula nº 501 do STJ, faz-se necessário, em primeiro lugar, a exposição do que se entende pelo princípio da irretroatividade da norma penal, à luz da sua principal exceção: a retroatividade da lei penal benéfica.
O referido princípio, cláusula pétrea no direito brasileiro (art. 5º, XL, da CRFB), impede que uma lei mais gravosa retroaja para alcançar situações fáticas anteriores, ainda que não julgadas definitivamente. Por outro lado, como exceção ou, mais propriamente, como um princípio à parte, está a retroatividade da lei penal mais benéfica, a impor a extra-atividade retroativa da lei penal que, de qualquer modo, beneficie o réu.
Pode-se dizer que tal definição representa uma compreensão superficial do princípio. Para adequá-la a moderna teoria da norma jurídica, torna-se imprescindível cogitar de um conceito material de retroatividade da lei mais benéfica, assim como da atualização do seu conceito, notadamente no que tange aos termos empregados.
Para isso, parte-se do fundamento que o inspirou: seria inconcebível em um Estado que se pretendesse de direito democrático, impor a alguém uma sanção penal, drástica por natureza, mais rigorosa do que aquela que o direito punitivo atual compreende necessária para alcançar a finalidade da punição. Neste ponto, aliás, não importa a concepção de finalidade da pena que se adote; se se chegou à conclusão de que não é imprescindível impô-la, não há legitimidade em assim proceder, afinal a sanção penal é a ultima ratio.
Voltando-se aos termos usados para conceituar os mencionados princípios, não é admissível manter o termo “lei” como vocábulo crucial para a sua definição. Isso porque “lei” atualmente representa tão somente um dos veículos por que se pode chegar a um preceito normativo, extraível, também, de outras fontes, a exemplo de princípios nem sequer veiculados, expressamente, por algum diploma legal ou constitucional (“princípios implícitos”). Dessa maneira, é forçoso empregar o termo “norma”, que no estado atual da ciência jurídica significa o comando normativo resultante da interpretação de todos os elementos do sistema jurídico.
Assentada essas premissas, chega-se ao citado conceito material de irretroatividade ou retroatividade benéfica penal, isto é, a norma penal mais grave é irretroativa, e a mais benéfica, ao contrário, aplica-se aos casos pretéritos, ainda que já julgados com trânsito em julgado.
Diante disso, parece ficar em evidência o desacerto da Súmula Vinculante em análise, assim como o da própria ideia de que o juiz estaria criando uma nova lei ao combinar preceitos mais favoráveis veiculados por mais de um diploma legal. Afinal, se o fundamento da retroatividade benéfica é o de aplicar a consciência jurídico-penal atual (se menos rigorosa), que influência poderia ter o simples modo como ela vem a ser expressa, o seu mero veículo de materialização – a lei.
Aceitar a tese do imortal penalista Nelson Hungria equivaleria a admitir que a forma deveria prevalecer sobre o conteúdo que ela concretiza. Como conceber que um câmbio de tratamento penal poderia ter diferentes amplitudes se estatuído por uma, duas ou três leis?
Consequentemente, tem-se que o que retroage ou tem aplicação ultrativa, quanto ao tráfico de drogas, não é o art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/06 ou o preceito secundário do art. 16 da Lei nº 6.368/76, respectivamente, mas sim o tratamento jurídico penal mais benéfico dado à matéria.
4. CONCLUSÃO
Em conclusão do que se vem de dizer, tem-se, então, que, em relação aos fatos anteriores à nova Lei de Drogas, a pena mínima de três anos imposta pela antiga Lei não pode ser aumentada por aquela – pois violaria a irretroatividade da norma penal mais gravosa –, mas a causa de diminuição de pena, por instituir verdadeira bifurcação na disciplina do tráfico de drogas, deve, sim, ser aplicada aos fatos delituosos pretéritos – sob pena de transgressão à retroatividade da norma penal mais benéfica.
Em suma, a única compreensão que se harmoniza com a retroatividade da norma mais benéfica é a aplicação da causa de diminuição de pena da nova Lei de Drogas sobre a pena da antiga Lei.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ORWELL, George, Politics and the English Language. Oxford: Oxford City Press, 2009
BRASILEIRO, Renato. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Ed. Juspodium, 2015
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978
NOTAS:
[1] - Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.
[2] - Julgados do Supremo Tribunal Federal. RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n.º 456/2007
[3] - Julgados do Supremo Tribunal Federal. HC 118.533/MS, rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, 24/06/2017. Informativo n.º 831/2016.
[4] - Fonte: website do STJ. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (graduação) e Universidad de Sevilla - Espanha. Bacharel em Direito pela Universidade de Federal da Minas Gerais (UFMG), em dezembro de 2013, com graduação "sanduíche", por meio de concurso público interno, na Universidade de Sevilha, na Espanha (1º semestre de 2013); advogado inscrito na OAB/MG sob o nº 151.788; formado pela Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, no curso de formação para a carreira de Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Rafael Drumond de. Crítica à Sumula nº 501 do Superior Tribunal de Justiça, à luz da Teoria da Linguagem Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jun 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50293/critica-a-sumula-no-501-do-superior-tribunal-de-justica-a-luz-da-teoria-da-linguagem. Acesso em: 22 dez 2024.
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