As presentes linhas pretendem fazer uma primeira análise acerca da (im)possibilidade de se aplicar a técnica de julgamento do art. 942 da Lei nº 13.105/2015 – novidade trazida ao ordenamento jurídico pátrio pelo (ainda) recente CPC/2015 – aos casos que envolvam julgamento de apelações e agravos de instrumento que discutam questões relativas à apuração de atos infracionais (apelações) e à execução de medidas socioeducativas (apelações e agravos de instrumento).
Como é de sabença geral, o art. 198, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente determina ser aplicável aos “procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os relativos à execução de medidas socioeducativas” o sistema recursal do Código de Processo Civil.
O referido dispositivo tem sua atual redação dada pela Lei nº 12.594/2012 (anterior, portanto, ao CPC/2015), motivo pelo qual ainda faz menção à revogada Lei nº 5.869/1973. Contudo, com fulcro no princípio da continuidade normativa, tendo a Lei nº 13.105/2015 surgido como substituta do Codex Processual Civil de 1973, fato é que, doravante, deve ser entendida a referência do CPC revogado como feita ao CPC ora em vigor.
Contudo, não há que se falar em aplicação indistinta das disposições recursais do Código de Processo Civil aos feitos que tramitem perante a Justiça da Infância e da Juventude. Os dispositivos legais que se mostrarem incompatíveis com as regras e os princípios peculiares que informam o Estatuto da Criança e do Adolescente não podem ser aplicadas aos procedimentos previstos neste diploma legal.
É o que nos ensina a autorizada doutrina de Galdino Augusto Coelho Bordallo[1], em lições que datam de antes da vigência do atual Código de Processo Civil, mas não perderam a sua extrema atualidade:
“Com a regra em estudo, qualquer que seja a matéria referente ao direito da infância e juventude que esteja em discussão em determinado processo, o recurso que acaso venha a ser interposto seguirá as regras estabelecidas no Título II do Livro III do Código de Processo Civil, naquilo em que não confrontarem com as regras da Lei n 8069/90.” (grifos nossos).
Entender possível que, após um julgado favorável ao adolescente, em sede de apelação ou agravo de instrumento, o Ministério Público requeira – ou o Tribunal, de ofício, realize – o julgamento de acordo com a técnica do art. 942 do CPC/15, equivale a assegurar à acusação a interposição de verdadeiro recurso de embargos infringentes, quando tal possibilidade lhe é negada no próprio Processo Penal, em razão dos princípios do in dubio pro reo e favor rei.
Não se pretende, nestas linhas, negar o caráter punitivo das medidas socioeducativas, que são as respostas estatais aos atos infracionais – condutas definidas como crime ou contravenção, quando praticadas por criança ou adolescente (art. 103 da Lei 8.069/90) –, destinando-se à responsabilização do adolescente, bem como à desaprovação da conduta infracional (art. 1º, § 2º, I e III da Lei 12.594). Nesse sentido:
CRIANÇA E ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. DEFESA TÉCNICA. PRESCINDIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO. RECONHECIMENTO.
1. A remissão, nos moldes dos arts. 126 e ss. do ECA, implica a submissão a medida sócio educativa sem processo. Tal providência, com significativos efeitos na esfera pessoal do adolescente, deve ser imantada pelo devido processo legal. Dada a carga sancionatória da medida possivelmente assumida, é imperioso que o adolescente se faça acompanhar por advogado, visto que a defesa técnica, apanágio da ampla defesa, é irrenunciável.
2. Ordem concedida para anular o processo e, via de consequência, reconhecer a prescrição do ato infracional imputado à paciente.
(HC 67.826/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2009, DJe 01/07/2009)
Exatamente em razão desta lógica sancionatória intrínseca às medidas socioeducativas é que exsurge a necessidade de se interpretar toda a sistemática procedimental de apuração das medidas socioeducativas à luz do processo penal e dos princípios a ele inerentes, tais quais o favor rei e o in dubio pro reo – ainda que, por determinação legal, devamos seguir a legislação processual civil em sede recursal.
Dito isso, importante realizar pequena digressão em relação ao recurso de Embargos Infringentes e de Nulidade – extinto na lei processual civil, substituído exatamente pela técnica de julgamento centro da análise deste artigo, mas ainda existente no sistema processual penal adulto.
De fato, o parágrafo único do art. 609 do Código de Processo Penal só admite o cabimento do recurso de Embargos Infringentes e de Nulidade contra decisões de cunho prolatadas em sede de recurso criminal (ou de execução penal) não unânime, prolatado por órgão de grau recursal, quando desfavoráveis ao réu.
Dessa forma, a aplicação da sistemática processual civil neste ponto, de modo a permitir a interposição de “embargos infringentes” contra os interesses dos adolescentes, na seara infracional, é contrária aos princípios basilares do processo penal, notadamente os citados in dubio pro reo e favor rei, cuja previsão está na norma fundamental (art. 5º, LVII, da Constituição da República de 1988).
Não foi diferente a conclusão a que chegou o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao examinar a possibilidade de interposição de recurso adesivo – previsto na legislação processual civil pátria –, pelo Ministério Público, no curso de ação socioeducativa:
“O Superior Tribunal de Justiça, seguindo o entendimento firmado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, não tem admitido a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso próprio, prestigiando o sistema recursal, ao tempo em que preserva a importância e a utilidade do habeas corpus, visto permitir a concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. Nesse sentido, a título de exemplo, confiram-se os seguintes precedentes: STF, HC n. 113890, Relatora Ministra ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 3/12/2013, publicado em 28/2/2014; STJ, HC n. 287.417/MS, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Quarta Turma, julgado em 20/3/2014, DJe 10/4/2014; e STJ, HC n. 283.802/SP, Relatora Ministra LAURITA VAZ, Quinta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe 4/9/2014. Na espécie, embora a impetrante não tenha adotado a via processual adequada, para que não haja prejuízo à defesa, passo à análise do pleito a fim de verificar a existência de eventual constrangimento ilegal. No caso dos autos, verifico manifesta ilegalidade apta a justificar a concessão da ordem de ofício. Com efeito, o recurso adesivo não pode ser admitido como forma de impugnação de decisões de natureza penal quando, a despeito do trânsito em julgado da sentença para a acusação, a defesa recorre e a situação do réu é agravada pelo Tribunal revisor no recurso adesivo do Ministério Público. Como é cediço, O recurso exclusivo da defesa impede qualquer alteração do disposto na sentença em prejuízo do réu, motivo pelo qual não se admite a complementação, pelo Tribunal a quo, de fundamentação para manutenção do regime inicial fechado para cumprimento de pena, sob pena de indevida reformatio in pejus.
(HC n. 173.262/SP, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgado em 7/5/2013, DJe)
Sobre a matéria, outrossim, trazemos a decisão proferida pela C. Sexta Câmara Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no bojo do recurso de apelação nº 0001557-91.2015.8.19.0066, relatado pelo Des. Luiz Noronha Dantas, ao apreciar “pedido de reconsideração” feito pelo Parquet fluminense:
“INDEFIRO o pedido de reconsideração formulado pela douta Procuradoria de Justiça, mediante o qual pretende a aplicação à espécie da técnica de julgamento preconizada pelo art. 942 do novo C.P.C., porque, concessa maxima venia, esta não se afigura como a via impugnativa adequada em face de uma Decisão de caráter definitivo, e ainda, colegiada, independentemente de se perfilar como iniciativa que, se admitida, importaria na imprópria e oblíqua utilização de um expediente recursal, que, mesmo em sede menorista e a despeito do teor do disposto pelo art. 198 do E.C.A., mas indisfarçavelmente em matéria sujeita ao critério valorativo de caráter processual penal, buscaria reverter um resultado alcançado mais favorável ao adolescente, a partir do teor de um Voto Vencido que lhe é mais gravoso, consagrando, na prática, verdadeira aplicação analógica de Embargos Infringentes e de Nulidade pro societate, o que não pode ser chancelado, inclusive porque, quando existia no revogado C.P.C. o Recurso de Embargos Infringentes, este não costumava ser utilizado para tal fim, inexistindo razoabilidade de que agora que ele desapareceu, venha a ser indiretamente manejado, com tais características.”
À guisa de conclusão, diante de todo o exposto, é que não se afigura cabível a aplicação da técnica de julgamento disposta no art. 942, do CPC, em sede infracional recursal, em especial quando a decisão colegiada não unânime de segunda instância for favorável ao adolescente representado, sob pena de, ao contrário disso, conferir-se um tratamento mais gravoso ao adolescente que ao adulto, o que fere as regras protetivas do Estatuto da Criança e do Adolescente e, em especial, a expressa dicção do art. 35, I, da Lei nº 12.594/12, que exprime o sentido legal do princípio da legalidade: “(...) não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.
[1] Neste sentido é a opinião do renomado autor, consubstanciada na seguinte obra: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 1039.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Pedro Ramos Lyra da. Da (in)aplicabilidade da técnica de julgamento do art. 942 do CPC/2015 em sede infracional recursal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50337/da-in-aplicabilidade-da-tecnica-de-julgamento-do-art-942-do-cpc-2015-em-sede-infracional-recursal. Acesso em: 23 dez 2024.
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