Resumo: O presente trabalho abordará a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de serviços públicos, a partir da classificação apresentada pela doutrina entre serviços uti universi, fornecidos pelo Poder Público a grupos indeterminado e serviços uti singuli com destinatários determinados ou determináveis e uso específico e mensurável.
Palavras – chave: Direito do consumidor.Contratos. Serviço público. Serviços uti singuli. Serviços uti universi.
Sumário: 1.Introdução . 2.A Aplicação do CDC aos Serviços Públicos. 3.Conclusão. 4.Referências Bibliográficas
1.Introdução
O Código de Defesa do Consumidor é uma lei principiológica, de matriz constitucional (CF, arts. 5º, inciso XXXII e 170, inciso V), regido pela Lei 8.078/90, que cuida das relações de consumo, levando-se em consideração a vulnerabilidade (técnica, fática e jurídica) do consumidor em face do fornecedor, sendo este o policitante ostensivo.
Enquanto o Código Civil é uma lei geral, aplicável às relações jurídicas entre iguais, o CDC é uma lei de ordem pública, especial, aplicável às relações entre desiguais, quer seja em relação ao objeto – produtos e serviços (ratione materiae) – quer seja em relação aos sujeitos (ratione personae), isto é, aos consumidores e fornecedores e suas relações jurídicas.
O CDC é um microssistema jurídico que rege uma parte do Direito Privado, além do que, à luz do magistério de Gustavo Tepedino, um dos baluartes do Direito Civil Constitucional, também deve ser interpretado e aplicado à luz da Constituição Federal, tal qual do Direito Civil.
Outrossim, o Código de Defesa do Consumidor é repleto de cláusulas abertas, entendidas essas como sendo uma técnica legislativa que guarnecem um conteúdo normativo vário, impreciso, múltiplo, permitindo ao Estado Juiz valer-se até de valores axiológicos externos ou meta-jurídicos na solução do caso concreto, apenas com uma ressalva da necessidade de maior densidade argumentativa por parte do Juiz ao aplicar tais normas abertas, de conteúdo jurídico indeterminado, conforme preleciona Felipe Peixoto Braga Netto[1].
Também em sede de doutrina, o insigne Sergio Cavalieri Filho[2] sustenta que o CDC criou uma “sobrestrutura jurídica multidisciplinar, normas de sobredireito”, aplicável em todos os ramos do Direito onde ocorram relações de consumo, quer dizer, aplicável por todas as áreas do Direito – público e privado, civil e empresarial, contratual e extracontratual, material e processual, enfim, onde ocorram relações de consumo.
Nesse alinhamento, induvidoso é que os contratos civis ou empresariais, por exemplo, continuam regidos pelas leis e princípios que lhe são pertinentes – mas sempre que gerarem relação de consumo ficarão também sujeitos à disciplina do CDC, em razão dos princípios consumeristas da boa fé objetiva, informação, transparência, inversão do ônus da prova, reparação integral, etc.
O CDC é aplicável para todo contrato de consumo, isto é, todo contrato que contenha uma relação de consumo, ainda que seja um contrato civil ou empresarial.
2.A Aplicação do CDC aos Serviços Públicos
O tema dos serviços públicos está previsto no art. 22 do CDC, sendo também regido pelo Direito Público, mas que, nessa hipótese, de regra são operacionalizados pelas empresas privadas, mediante outorga da concessão, conforme art. 175 da Constituição Federal c/c Lei Federal nº 8.987/95.
Há uma forte divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicação do CDC aos serviços públicos em geral, conforme assim registra Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa[3], in verbis: “Não há, portanto, dúvida a respeito da possibilidade de incidência do CDC aos serviços públicos. As polêmicas dizem respeito à necessidade de a atividade ser remunerada diretamente (tarifa, preço público ou taxa) ou a suficiência de que a remuneração seja indireta e remota (impostos)”.
Conceitualmente, há serviços chamados de UTI UNIVERSI, fornecidos pelo Poder Público a grupos indeterminado, sem possibilidade de identificação dos destinatários e que são financiados pelos impostos, como, por exemplo, os serviços de segurança pública, saúde e outros.
Mas há também os serviços fornecidos a destinatários individuais, usuários determináveis, passíveis de aferição do quantum utilizado por cada consumidor, como é o caso dos serviços de telefonia, água, energia elétrica, também chamados de UTI SINGULI.
Doutrinariamente, diz-se que os primeiros são serviços públicos próprios e gerais, os chamados UTI UNIVERSI, custeados por impostos, taxas e contribuições de melhoria (tributos em geral) e decorrem do poder de império do Estado (jus imperii), não se aplicando, pois, o CDC. Já os segundos, os chamados UTI SINGULI, são serviços impróprios e individuais e são remunerados por tarifa ou preço público, com destinatários determinados ou determináveis e têm uso específico e mensurável, com predomínio da facultatividade na sua contratação, regida pelo Direito Privado.
De referência à execução de tais serviços, os chamados “serviços UTI SINGULI podem ser prestados pelo próprio Estado, ou por delegação, tendo-se como traço de identificação a remuneração”, segundo magistério de Sergio Cavalieri Filho[4] ,sendo que, em caso de serviços UTI UNIVERSI, há uma relação administrativa-tributária entre o Poder Público e o contribuinte, disciplinada pelo Direito Administrativo, decorrente do próprio poder de império estatal.
Nesse contexto, informa a doutrina especializada, segundo magistério de Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves[5], de que são considerados serviços UTI SINGULI e, portanto, passíveis de aplicação do CDC, os serviços de transporte público para destinatários finais; prestação de serviços rodoviários, por meio de empresas concessionárias; serviços públicos de educação; serviços de telefonia fixa ou móvel; serviços públicos de fornecimento de água e esgoto, luz e gás, trazendo à colação, nesse sentido, vários julgados dos tribunais superiores.
Assim, não há dúvida de que a prestação de serviço público é uma função pública primacial, regrada pelo Direito Público, não sendo a concessionária/permissionária/delegatária a senhora ou dona da concessão. De igual modo, há limitações impostas ao usuário e que são justificadas pelo interesse público, fundamento maior da prestação do serviço público.
Objetivamente, o art. 22 do CDC se reporta a serviços públicos essenciais, fazendo alusão aos princípios da adequação e da continuidade, sendo que a Lei 8.987/95 prevê duas hipóteses em que pode haver a descontinuidades da prestação do serviço público (art. 6º, § 3º, incisos I e II), ou seja, em caso de emergência e após aviso prévio.
Assim, nesse contexto, a jurisprudência dominante entende lícita a interrupção do fornecimento da prestação do serviço público, quando, após prévio aviso, o usuário do serviço permanece inadimplente no pagamento da respectiva conta.
Todavia, em caso de débito pretérito, ou seja, débito antigo, confessado e consolidado, é descabido o corte do fornecimento do serviço, devendo a concessionária reivindicá-los judicialmente, via ação de cobrança.
Ressalte-se, ainda, que em caso de inadimplemento por parte de um usuário pessoa jurídica de direito público, o corte do fornecimento do serviço pode também ser feito, desde que tenha havido prévio aviso, a fim de não violar o princípio do equilíbrio contratual, ensejando enriquecimento sem causa do usuário, com a ressalva de que, todavia, o corte do fornecimento não pode atingir as unidades públicas cuja paralização é inadmissível, como, por exemplo, escolas, hospitais, penitenciárias, etc.
Por último, em reforço, digno de nota é a lição de Luiz Antonio Rizzatto Nunes[6] acerca da relevância do art. 22 do CDC, entendendo que, “por si só, é de fundamental importância para impedir que prestadores de serviços públicos pudessem construir “teorias” para tentar dizer que não estariam submetidas às normas do CDC. Aliás, mesmo com a expressa redação do art. 22, ainda assim há prestadores de serviços que lutam na Justiça ‘fundamentados’ no argumento de que não estão submetidos às regras da Lei 8.078/90”.
3.Conclusão
A meu juízo, concluo de que não há dúvida da importância do CDC em sede de serviços públicos em geral e, muito especialmente, na hipótese dos chamados serviços UTI SINGULI, haja vista que o consumidor passa a dispor de um microssistema jurídico eficaz e melhor favorável à sua condição de mero usuário vulnerável, inserido numa sociedade cada vez mais complexa, plural, consumista e desigual, frente a prestadores de serviços vorazes e de regra monopolizadores.
4.Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Antonio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. 3ª ed. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2010.
FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do Consumidor. 10ª ed. Bahia: Ed. JusPodivm. 2015.
TARTUCE, Flavio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. Direito Material e Processual. 6ª ed. São Paulo: Método, 2017
[1] NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do Consumidor. 10ª ed. Bahia: Ed. JusPodivm. 2015, p. 51.
[2] FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 13.
[3] BENJAMIN, Antonio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. 3ª ed. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2010, p. 203.
[4] FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 67.
[5] TARTUCE, Flavio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. Direito Material e Processual. 6ª ed. São Paulo: Método, 2017, p. 132.
[6] RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 302.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Pós-Graduada Lato Sensu em Direito do Estado pela Faculdade Guanambi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HORA, Maria Tereza Targino. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de serviços públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50340/a-aplicacao-do-codigo-de-defesa-do-consumidor-nos-contratos-de-servicos-publicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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