RESUMO: Contemporaneamente, os contratos administrativos são cada vez mais complexos e vultuosos, merecendo a atenção da doutrina e da jurisprudência pátrias. Dentre diversos outros temas polêmicos em sede de contratos administrativos, o presente trabalho se dedicará ao estudo hipóteses de inexecução sem culpa, quais sejam: a Teoria da imprevisão, o Fato do Príncipe e o caso fortuito ou força maior. Neste sentido, o presente trabalho abordará as principais polêmicas e soluções concernentes ao tema.
Palavras-chave: Inexecução sem culpa. Contratos Administrativos. Teoria da imprevisão. Fato do Príncipe. Caso fortuito e força maior. Polêmicas. Soluções. Revisão do contrato. Extinção do contrato. Lei 8.666/93
INTRODUÇÃO
A inexecução sem culpa relaciona-se à inexecução dos contratos administrativos em virtude de fatos inimputáveis às partes. O trabalho abordará as três teorias relacionadas à inexecução sem culpa: Teoria da imprevisão, Fato do Príncipe e Caso fortuito ou força maior.
Para tanto, o presente trabalho será dividido em quatro capítulos. Inicialmente, buscaremos dar uma visão geral do instituto. Os demais capítulos serão destinados à análise das hipóteses de inexecução sem culpa.
Em cada um desses capítulos, o trabalho destacará as principais divergências doutrinárias e os principais julgados.
I -Da inexecução sem culpa nos contratos administrativos
Como a própria expressão já indica, a inexecução sem culpa está ligada à inexecução contratual por conta de fatos alheios às partes. Tais casos de fatos não imputáveis às partes são solucionados pela aplicação dos artigos 478 e 479 do Código Civil, relativos à resolução de contratos por onerosidade excessiva.
O artigo 478 do CC estipula a possibilidade de resolução contratual de execução caso não haja possibilidade de prosseguimento no ajuste contratual. Já o artigo 479 prevê a possibilidade de continuidade do contrato desde que ocorra a modificação equitativa dos termos contratuais (reequilíbrio da equação econômico-financeira inicial).
É imperioso destacar que o princípio da manutenção da equação econômico-financeira dos contratos administrativos possui previsão constitucional. Tal princípio está insculpido no artigo 37, XXI, da CF.
As hipóteses mais comumente abordadas pela doutrina e pela jurisprudência de inexecução sem culpa são a teoria da imprevisão, o fato do príncipe e o caso fortuito e força maior. Apesar das especificidades de cada uma dessas hipóteses, a legislação trata de forma semelhante no tocante às conseqüências advindas da ocorrência de cada uma dessas hipóteses.
Na lei 8666/93, lei geral de licitações e contratos administrativos, a matéria está prevista no artigo 65, II, d que admite a alteração do acordo de vontades com o objetivo de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato.
Diante da interpretação dos dispositivos legais trazidos à baila, Rafael Oliveira[i]
conclui que:
‘‘Portanto, a distinção entre essa teoria possui fins didáticos, mas não apresenta maiores conseqüências concretas.’’
É fundamental frisar que o desequilíbrio contratual pode, por eventos extraordinários, se dar em favor do contratado. Imaginemos uma situação em que o Estado reduza alíquotas de tributos que incidem sobre as atividades desempenhadas por um determinado contratado. Nesse caso, o particular será claramente beneficiado com a redução da carga tributária e a Administração poderá reduzir o valor acordado no ajuste inicial, visando evitar o enriquecimento sem causa do contratado que teria sua margem de lucro aumentada sem ter realizado qualquer esforço.
Tal solução é a adotada pelo legislador no diploma geral sobre licitações e contratos (Art. 65, § 5º, da lei 8666/93).
II- TEORIA DA IMPREVISÃO
Também sinônimo de álea econômica extraordinária, a Teoria da Imprevisão é conceituada por Alexandre Aragão[ii] como:
‘‘(...) todo acontecimento externo ao contrato, estranho à vontade das partes, imprevisível e inevitável, que causa um desequilíbrio não desprezível, tornando a execução do contrato excessivamente onerosa para o contratado.’’
A lógica na Teoria da Imprevisão baseia-se no princípio da cláusula rebus sic stantibus. Segundo tal princípio, o contrato deve ser cumprido desde que presentes as mesmas condições existentes no momento da pactuação. Mudanças profundas que impactem de sobremaneira as condições contratuais provocarão um desequilíbrio contratual, que não poderá ser imputado a qualquer das partes.
Tal efeito leva a duas conseqüências possíveis.
Na primeira situação, se o contratado não tiver condições de cumprir, de nenhuma forma as obrigações do contrato caminha-se para a rescisão sem culpa. No entanto, se o cumprimento for viável, mas trouxer ônus consideravelmente maior, o contratado terá direito à revisão do preço com o objetivo de restabelecer o equilíbrio perdido.
É importante ressaltar que o acontecimento responsável pelo desequilíbrio deve ser extraordinário e imprevisível. A álea econômica ordinária não induz revisão do contrato, pois a mesma inclui-se no risco do empreendimento.
Quanto a aumentos de funcionários decorrentes de dissídios coletivos, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que:
‘‘1. O aumento salarial determinado por dissídio coletivo de categoria profissional é acontecimento previsível e deve ser suportado pela contratada, não havendo falar em aplicação da Teoria da Imprevisão para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Precedentes do STJ (...)’’[iii]
III- FATO DO PRÍNCIPE
A teoria do fato do príncipe pode ser compreendida como a teoria responsável por estudar, interpretar e solucionar os fatos extracontratuais de efeitos genéricos praticados pela Administração que repercutam no contrato administrativo, aumentando os custos do contrato administrativo. Um exemplo clássico é o do aumento da alíquota de um tributo incidente sobre o objeto contratual.
É fundamental diferenciar o fato da administração do fato do príncipe. O fato do príncipe é extracontratual, o fato da administração é um fato específico que incide diretamente sobre aquele contrato administrativo. O fato da administração induz a revisão do contrato ou até mesmo a rescisão amigável ou judicial por culpa da administração. Como exemplo de fatos da administração, podemos citar os atrasos no pagamento, na liberação de licenças e na desapropriação de imóveis.
Quanto aos casos de aumento de alíquota por parte do Poder concedente, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) faz uma importante distinção. A interpretação de tal órgão é no sentido de que o prejuízo causado deve atingir diretamente os custos de produção do contrato. No caso do aumento de alíquota de Imposto de Renda (IR), a tutela de revisão do contrato por desequilíbrio na equação econômico e financeira esbarraria na ausência de incidência direta da variação de carga fiscal sobre os custos de produção do contrato, pois o fato estaria incidindo sobre o resultado da exploração contratual e não sobre diretamente sobre os custos de produção do contratado.
Nesse sentido:
‘‘ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante as razões expostas pelo Relator, em:
9.1. orientar as unidades técnicas do Tribunal que, quando dos trabalhos de fiscalização em obras públicas, passem a utilizar como referenciais as seguintes premissas acerca dos componentes de Lucros e Despesas Indiretas - LDI:
9.1.1. os tributos IRPJ e CSLL não devem integrar o cálculo do LDI, nem tampouco a planilha de custo direto, por se constituírem em tributos de natureza direta e personalística, que oneram pessoalmente o contratado, não devendo ser repassado à contratante (...)’’ [iv]
A principal polêmica a ser abordada no presente trabalho diz respeito à delimitação do fato do príncipe. Há duas correntes doutrinárias em confronto.
A primeira delas entende que apenas o fato extracontratual praticado pela entidade administrativa contratante dará ensejo à aplicação da Teoria do fato do príncipe. Se o fato for oriundo de outro ente administrativo, ambas as partes estariam sendo surpreendidas. Nesse caso, tal corrente indica a aplicação da Teoria da imprevisão. Nesse sentido: Maria Sylvia Di Pietro[v] e Alexandre dos Santos Aragão[vi].
O outro entendimento considera que os fatos praticados por qualquer ente da Federação (ente contratante ou não) podem ser considerados fato do príncipe. Tal corrente é defendida por José dos Santos Carvalho Filho[vii]
Entendo que o primeiro entendimento esposado seja o mais adequado à luz da Federação. Apesar da celeuma doutrinária, a questão não possui efeitos práticos, pois os efeitos de tais interpretações serão os mesmos. (Art. 65, II, d Lei 8.66/93)
Após analisar tal polêmica é importante destacar a aplicação jurisprudencial da Teoria do Fato do Príncipe. Tal construção serviu de fundamento para o STJ reconhecer o direito das concessionárias de transporte aéreo a serem indenizadas pelo congelamento de tarifas no Plano Cruzado realizado pelo Poder Concedente (União).
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE AÉREO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONGELAMENTO DE TARIFAS. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FACULTATIVIDADE. INCLUSÃO DE NOVOS ELEMENTOS PERICIAIS. PERQUIRIÇÃO SOBRE LUCROS CESSANTES. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7, DO STJ. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REDUÇÃO. I - A ação indenizatória intentada contra o Estado, buscando reparação fundada no rompimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão de transportes aéreos, não requer, obrigatoriamente, a intervenção do Ministério Público, não se justificando a nulidade do processo em razão desta ausência (...)[viii]
IV- CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR
É famosa a celeuma doutrinária e jurisprudencial relativa à distinção entre caso fortuito e força maior. Uma primeira corrente entende que o caso fortuito estaria ligado a algum evento imprevisível da natureza, como catástrofes, ciclones, tsunamis. Enquanto isso, a força maior estaria ligada a eventos humanos, como a greve.
A outra corrente defende justamente o contrário. Com a devida vênia aos ilustres autores que se digladiam no presente tema, a meu entender, a discussão não possui qualquer relevância prática, visto que o código civil classifica ambas as situações como inevitáveis. Além disso, as consequências, do ponto de vista legislativo, são as mesmas para ambas as hipóteses.
Diante da magnitude e clareza, o dispositivo legal merece transcrição:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
A parte final do artigo possui enorme relevância prática, pois ele prevê uma exceção importante. Ele prevê que uma das partes pode assumir previamente a responsabilidade em caso de ocorrência de tais fatos. Nessa hipótese, o caso fortuito e a força maior não poderão aduzidos por tal parte com o objetivo de extinguir o contrato ou revisá-lo com base no desequilíbrio contratual.
Quanto aos requisitos necessários para a ocorrência de caso fortuito ou força maior, Sérgio Cavalieiri Filho defende que:
‘‘A imprevisibilidade , portanto, é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto a inevitabilidade o é da força maior. Entende-se por imprevisibilidade, conforme já assinalado (item 8.8), a imprevisibilidade específica, relativa a um fato concreto, e não a genérica ou a abstrata de que poderão ocorrer assaltos acidentes, atropelamentos, etc., porque se assim não for tudo passará a ser previsível. A inevitabilidade, por sua vez, deve ser considerada dentro de uma certa relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigir-se. Assim, por exemplo, tratando-se de roubo de cofres mantidos por um banco , é de presumir-se sejam tomadas especiais providências visando á segurança, pois a garanti-la se destinam seus serviços. O mesmo não se sucede se o asslato foi praticado em um simples estacionamento (RSTJ 132/313, Min. Eudardo Ribeiro). É preciso, destarte, apreciar caso por caso as condições em que o evento ocorreu, verificando se nessas condições o fato era imprevisível ou invitável em função do que seria razoável exigir-se.’’[ix]
CONCLUSÃO
O presente trabalho abordou as três teorias relacionadas à inexecução sem culpa: Teoria da imprevisão, Fato do Príncipe e Caso fortuito ou força maior.
Em cada um dos capítulos, o trabalho abordou as principais polêmicas relativas ao tema, destacando as correntes jurisprudenciais e doutrinárias aplicáveis às hipóteses em estudo.
A conclusão a qual chegamos é a de que há uma unidade no tratamento das hipóteses de inexecução sem culpa nos contratos administrativos. Na hipótese de impossibilidade do cumprimento da obrigação, os contratantes poderão rescindir o contrato. Nas situações nas quais a execução continuar possível, mesmo com um desequilíbrio, a revisão contratual será necessária com o objetivo de manter a equação econômico-financeira dos contratos administrativos.
BIBLIOGRAFIA
Livros:
Aragão, Alexandre Santos de- Curso de Direito Administrativo- Rio de Janeiro: Forense 2012
Carvalho Filho, José dos Santos Manual de direito- 23. ed. rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. – Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2010
Cavalieiri Filho, Sergio Programa de Responsabilidade Civil / Sergio Cavalieiri Filho. 8ª ed. – 3. reimpr. – São Paulo : Atlas, 2009
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª edição São Paulo: Atlas, 2009
Gasparini, Diógenes. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva , 2007 .
Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos / Rafael Carvalho Rezende Oliveira. –Rio de Janeiro: Forense: MÉTODO, 2012
Jurisprudência:
RESP 628806/DF- Rel. Min. Francisco Falcão. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 1ª Turma, julgado em 14.12.2004 DJU 21.02.2005
RESP 417989/PR, Rel. Min. Herman Benjamim, Julgamento monocrático, julgado em 24.11.2008 DJU 16.12.2008
ÁCORDÃO 325/2007, Rel. Min. Guilherme Palmeira. Tribunal de Contas da União, Plenário, Data de sessão 14.03.2007
[i] Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos / Rafael Carvalho Rezende Oliveira. –Rio de Janeiro: Forense: MÉTODO, 2012, p. 226
[ii] Aragão, Alexandre Santos de- Curso de Direito Administrativo- Rio de Janeiro: Forense, p. 345
[iii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 417989-PR Relator: Herman Benjamin. Disponível em Acesso em: 04 de setembro de 2013
[iv] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Ácordão nº: 325/2007 Processo: 3468/2006-8 Plenário Ministro Relator: Guilherme Palmeira Disponível em: https://contas.tcu.gov.br/juris/SvlHighLight?key=ACORDAO-LEGADO-62549&texto=2b2532384e554d41434f5244414f2533413332352b4f522b4e554d52454c4143414f2533413332352532392b414e442b2b2532384e554d414e4f41434f5244414f253341323030372b4f522b4e554d414e4f52454c4143414f25334132303037253239&sort=DTRELEVANCIA&ordem=DESC&bases=ACORDAO-LEGADO;DECISAO-LEGADO;RELACAO-LEGADO;ACORDAO-RELACAO-LEGADO;&highlight=&posicaoDocumento=0 Acesso em : 05 de junho de 2017
[v] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª edição São Paulo: Atlas, 2009, p. 279;
Gasparini, Diógenes. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva , 2007 . p. 686;
[vi] Aragão, Alexandre Santos de- Curso de Direito Administrativo.- Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 345
[vii] Carvalho Filho, José dos Santos Manual de direito- 23. ed. rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. – Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2010, p. 231
[viii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 628806-DF Relator: Francisco Falcão. Disponível em Acesso em: 04 de setembro de 2013
[ix] Cavalieiri Filho, Sergio Programa de Responsabilidade Civil / Sergio Cavalieiri Filho. 8ª ed. – 3. reimpr. – São Paulo : Atlas, 2009, p. 66
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC-Rio, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Artur Lara. Inexecução sem culpa nos contratos administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50425/inexecucao-sem-culpa-nos-contratos-administrativos. Acesso em: 23 dez 2024.
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