RESUMO: Tendo em vista a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas (Decreto nº 27.784/1950) e a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Agências Especializadas das Nações Unidas (Decreto nº 52.288/1963) não restam dúvidas de que os respectivos tratados assinados e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro ratificam a aplicabilidade do art. 5º, parágrafo segundo, da Constituição Federal. Sendo assim, imprescindível a necessidade de observar a imunidade executiva dos organismos internacionais, principalmente no que tange aos atos de constrição dos bens afetos às suas missões.
Palavras Chaves: Direito Internacional Público. Imunidade executiva dos Organismos Internacionais. Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas (Decreto nº 27.784/1950). Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Agências Especializadas das Nações Unidas (Decreto nº 52.288/1963). Impossibilidade de execução de bens afetos às atividades/missões.
1 – INTRODUÇÃO
Este estudo tem o intuito de demonstrar a validade dos Decretos 27.784/1950 e 52.288/1963 que ratificaram e incorporaram ao ordenamento jurídico brasileiro todas as cláusulas contidas nas Convenções sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas e sobre Privilégios e Imunidades das Agências Especializadas das Nações Unidas, especialmente aquela que trata da imunidade executiva dos bens afetos às missões das diversas Agências Especializadas da ONU no Estado Brasileiro.
Portanto, observada a ratificação de ambos tratados internacionais pelo ordenamento jurídico brasileiro, entende-se que a interpretação da imunidade executiva dos entes internacionais há que ser interpretada restritivamente, à luz da jurisprudência, devendo ser considerados como objeto de eventual execução/constrição somente aqueles bens que não integram o acervo material do organismo internacional em missão, não cabendo ampla interpretação aos casos concretos.
Segundo Paulo Henrique Gonçalves Portela[1]:
“Em princípio, as regras relativas às imunidades das organizações internacionais encontram-se estabelecidas dentro de seus atos constitutivos ou em tratados específicos, celebrados com o Estado com os quais o organismo internacional mantenha relações.
Dessa forma, o tema das imunidades das organizações internacionais tem como ponto de partida o Direito convencional, ao contrário da imunidade de jurisdição estatal, ainda frequentemente fundamentada em normas costumeiras. ”
Importante ressaltar que estamos a tratar somente da imunidade executiva, imunidade de jurisdição não será abordada neste ensaio. Tal estudo possui pertinência lógica, posto que, não raro, nos deparamos com decisões judiciais, em sua maioria, oriunda da Justiça do Trabalho, que simplesmente desconsideram a natureza e o regramento jurídico aplicável às organizações internacionais, fazendo incidir atos executivos/constritivos de bens afetos as missões.
Assim o fazem porque o assunto passa pelo campo da proteção e promoção dos direitos humanos, envolvendo pagamento de verbas trabalhistas a ex-funcionários dessas entidades. Tais feitos tem caráter alimentar e se encontram, diretamente vinculados à garantia da dignidade humana, ou seja, temos de fato uma espécie de tensão dialética entre normas/valores de índole igualmente constitucionais.
Cito como exemplo o Recurso de Revista (RR - 824-39.2006.5.10.0003 - Data de Julgamento: 21/05/2014)[2]. Em tal julgado, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho, em sede de execução, apreciou recurso de revista interposto pela Organização das Nações Unidas, dando provimento ao apelo, para afastar medidas executivas, oriundas das instâncias ordinárias, que recaiam sobre bens afetos a missão da Organização em solo nacional, tal situação estava a impedir substancialmente o desempenho das atividades.
2 – DESENVOLVIMENTO:
Extrai-se do texto disposto em ambas as Convenções Internacionais tratadas neste estudo que as organizações internacionais possuem regras escritas garantindo de forma inequívoca a imunidade de execução dos bens afetos às suas missões, senão vejamos:
“Decreto nº 27.784/1950
(...)
Artigo 2º
Seção 2 - A Organização das Nações Unidas, seus bens e haveres, qualquer que seja sua sede ou o seu detentor, gozarão de imunidade de jurisdição, salvo na medida em que a Organização a ela tiver renunciado em determinado caso. fica entendido, porém, que a renúncia não pode compreender medidas executivas.
(...)
Seção 3 - As instalações da organização são invioláveis. Os seus bens e patrimônio, onde quer que estejam situados e independentemente do seu detentor, estão a salvo de buscas, requisições, confiscos, expropriações ou qualquer outra medida de constrangimento executiva, administrativa, judicial ou legislativa.” (...)
“ Decreto nº 52.288/1963
(...)
2ª Seção - Cada país parte nesta Convenção a respeito de qualquer agência especializada à qual esta Convenção se tenha tornado aplicável de acordo com a 37ª seção, concederá a essa agência, ou ao que com ela tenha ligação, os privilégios e imunidades prescritos nas cláusulas-padrão, nas condições ali especificadas, observada qualquer modificação das cláusulas contidas nas disposições do anexo final (ou revisto) relativo a essa agência e transmitido de acordo, com as seções 36 e 38.
(...)
Artigo 3º - Bens, Fundos e Ativo
(...)
4ª Seção - As agências especializadas, seus bens e ativo, onde estiverem localizados e qualquer que seja o seu depositário, gozarão de imunidade de todas as formas de processo legal, exceto na medida em que, em qualquer caso determinado houverem expressamente renunciado à sua imunidade. Fica entendido, porém, que nenhuma renúncia de imunidade se estenderá a qualquer medida de execução.”(...)
Assim, muito embora o texto das supracitadas Convenções Internacionais assuma uma ampla interpretação no sentido de se admitir que a imunidade executiva dos organismos internacionais seja absoluta, o debate jurisprudencial foi necessário acerca do tema com fins de esclarecer a extensão e efeitos desta respectiva imunidade.
Desta forma, a jurisprudência revelou que as medidas executivas/expropriatórias somente poderão ocorrer se efetivamente o bem estiver desafeto às atividades do Organismo Internacional, reinterpretando a norma e a extensão de eventuais medidas executivas diante da peculiaridade do executado.
Exemplo deste debate foi a decisão do Tribunal Superior do Trabalho, em situação semelhante, na qual houve penhora sobre bem afeto a missão diplomática do Estados Unidos da América decidiu:
(...) Muito embora não seja correto falar em imunidade absoluta de execução quando a controvérsia concernir a créditos decorrentes de contrato de trabalho, como na espécie, o exercício da jurisdição executiva sofre limitação, tal como sucede com a impossibilidade de execução dos bens diplomáticos ou consulares, reputados invioláveis nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, ratificadas pelo Brasil por meio dos Decretos 56.435/65 e 61.078/67.
A penhora incidente sobre o imóvel de propriedade dos Estados Unidos da América foi ordenada com base em alegações da trabalhadora exequente, acompanhadas de documentos (contratos de compra e venda, registros cartoriais, fotos, escrituras etc), em relação às quais o Estado estrangeiro permaneceu silente (fl. 146).
Não me parece, com todas as vênias, que o silêncio do Estado estrangeiro possa significar a admissão de que o imóvel apreendido não está afetado à missão diplomática ou consular.
De fato, nem mesmo a inércia do devedor, segundo me parece, tem o condão de autorizar a ilação de que o bem gravado não está afetado ao exercício das atividades de representação diplomática ou consular dos Estados Unidos da América (...)
Nessas circunstâncias, faz-se presente a plausibilidade jurídica da tese invocada na petição inicial, assim como o periculum in mora, requisitos autorizadores da medida requerida.” (grifou-se)
Também neste sentido, o Ministro Dias Toffoli deixou assentado a impossibilidade de eventual execução recair sobre bens afetos a representação diplomática:
“I. REMESSA -EX OFFICIO- E RECURSOS ORDINÁRIOS EM MANDADO DE SEGURANÇA. ESTADO ESTRANGEIRO. CONSULADO GERAL DO JAPÃO. IMUNIDADE RELATIVA DE JURISDIÇÃO E EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE RECAIR PENHORA SOBRE BENS AFETOS À REPRESENTAÇÃO DIPLOMÁTICA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. (STF - Recurso Extraordinário Com Agravo 678.785 São Paulo - Relator :Min. Dias Toffoli - Brasília, 26 de fevereiro de 2013).
Noutro giro, não se poderia permitir que Convenções Internacionais devidamente assinadas pela Presidência da República, legalmente promulgadas por Decretos, ausentes de qualquer vício de constitucionalidade e fiéis ao devido processo legislativo não fossem aplicadas aos casos concretos. Tal situação afrontaria o princípio da separação dos poderes e ainda colocaria a República Federativa do Brasil inadimplente perante a comunidade internacional. Sem contar, por óbvio, que a responsabilização internacional do Brasil pela inaplicabilidade das normas internacionalmente convencionadas, inevitavelmente, lhe garantiria grande insegurança jurídica entre a comunidade internacional.
Portanto, em observância ao art. 49, I da Constituição Federal Brasileira, somente o Congresso Nacional é competente para “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, não cabendo ao Poder Judiciário alterar regra internacional promulgada e incorporada ao direito brasileiro pelos Poderes Executivo e Legislativo.
Ante o exposto, podemos concluir que se admite a interpretação restritiva sobre a imunidade dos bens afetos às atividades diplomáticas dos organismos internacionais, conforme estabelecido nas Convenções sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas e sobre Privilégios e Imunidades das Agências Especializadas das Nações Unidas, não sendo possível ato constritivo ou executório em face dos Organismos Internacionais em missão diplomática.
3 - CONCLUSÃO
O presente estudo demonstrou situações em que há impossibilidade de execução dos bens afetos às missões dos entes e organismos internacionais. Contudo, resta a dúvida: quem seria então o responsável pelo cumprimento da obrigação constitucional de garantir e ressarcir o cidadão pelo seu direito lesado ou ameaçado, em especial o trabalhador?
Como exposto, foi necessário um grande debate da comunidade jurídica para estabelecer parâmetros sobre a aplicação da imunidade absoluta dos entes e organismos internacionais. Referida interpretação negaria ao cidadão não só o devido acesso à jurisdição, mas também a possibilidade de ver seu direito satisfeito em virtude da expropriação de bens dos organismos internacionais. Em virtude disso foi estabelecida pela comunidade jurídica interpretação restritiva à norma que, por sua vez, entendeu que a expropriação executiva somente não atingiria bens afetos à atividade diplomática ou consular do organismo internacional, a fim de evitar a impossibilidade de atuação da organização, posto que normalmente os trabalhos realizados possuem fins humanitários.
Porém, a admitida imunidade relativa do ente de direito público externo quando confrontada com o direito líquido e certo do cidadão torna-se conflituosa, problemática que acabou criando uma corrente doutrinária que tentou imputar a responsabilidade ao Estado Brasileiro, notadamente, à União, em sua forma objetiva, por ser ela a responsável por todas as relações internacionais. Nessa visão, entendeu-se que o dano suportado pelo cidadão haveria de ser distribuído entre toda a sociedade, sob pena de ofensa ao princípio da igualdade.
Contudo, a tentativa de que essa obrigação fosse imposta à União, sem considerar sequer as hipóteses da teoria do risco, pilar que fundamenta a responsabilidade objetiva do Estado, não prevalece, visto que o Estado brasileiro não pode figurar como segurador universal.
4 – REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Manual de direito internacional público. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
Carvalho, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Editora Jus Podivm, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12ª Ed. São Paulo: Atlas 2000.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado - Incluindo Noções de Direitos Humanos e Direito Comunitário. 6.ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 178-180
BRASIL. Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9494.htm. Acesso em: 17 de maio 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 16 de maio de 2017.
TST. Jurisprudência Unificada. Disponível em http://www.tst.jus.br. Acesso em 16 de maio de 2017.
[1] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado - Incluindo Noções de Direitos Humanos e Direito Comunitário. 6.ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
[2] RECURSO DE REVISTA. FASE DE EXECUÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. AGÊNCIAS ESPECIALIZADAS DAS NAÇÕES UNIDAS. IMUNIDADE DE EXECUÇÃO
1. A imunidade de execução das Agências Especializadas vinculadas à Organização das Nações Unidas -- ONU está amparada em normas de cunho internacional, incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro mediante a promulgação dos Decretos nos 27.784/50, 52.288/63 e 59.308/66.
2. Decisão regional em que se relativiza a imunidade de execução da UNESCO -- Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura resulta em violação do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. 3. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento.
Processo: RR - 824-39.2006.5.10.0003 Data de Julgamento: 21/05/2014, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 30/05/2014.
Graduado em direito pelo Centro Universitário de Belo Horizonte - UNI/BH -, pós-graduado em Direito Previdenciário e em Direito Ambiental pela Universidade Estácio de Sá, Membro da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Aloyzio Alves da Costa. A imunidade executiva dos bens afetos às missões dos organismos interncionais em solo nacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50431/a-imunidade-executiva-dos-bens-afetos-as-missoes-dos-organismos-interncionais-em-solo-nacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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