RESUMO: O presente artigo trata, à luz da inegável vulnerabilidade do consumidor, da acentuada flexibilização que os direitos consumeristas vêm sofrendo no que concerne ao uso de serviços de transporte aéreo, analisando-se a recente resolução nº 400/2016 da ANAC, bem como as recentes decisões do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 636331 e no RE com Agravo (ARE) nº 766618.
Palavras-chave: Consumidor; transporte aéreo; vulnerabilidade; CDC; ANAC; STF; Convenção de Varsóvia; Convenção de Montreal.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Do Código de Defesa do Consumidor e da flexibilização das normas consumeristas no âmbito do transporte aéreo. 2. Da venda de assentos de emergência por preço diferenciado. 3. Da resolução nº 400/2016 da ANAC e da tese da captura. 4. Das decisões do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 636331 e no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 7666183. Conclusão.
Introdução
O objetivo do presente trabalho é tratar, à luz da inegável vulnerabilidade do consumidor, da acentuada flexibilização que os direitos consumeristas vêm sofrendo no que concerne ao uso de serviços de transporte aéreo, analisando-se a recente resolução nº 400/2016 da ANAC, bem como as recentes decisões do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 636331 e no RE com Agravo (ARE) nº 766618.
Inicialmente, serão abordadas, de forma breve, noções acerca do Código de Defesa do Consumidor, expondo de forma introdutória a flexibilização das normas consumeristas no âmbito do transporte aéreo.
Em seguida, será discutida a (i)legalidade da venda de assentos de emergência por preço diferenciado.
Ademais, será analisada a resolução nº 400/2016 da ANAC, abordando-se a tese da captura de agências reguladoras.
Posteriormente, de forma crítica, serão destacadas as decisões do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 636331 e no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 7666183.
1. Do Código de Defesa do Consumidor e da flexibilização das normas consumeristas no âmbito do transporte aéreo.
A Constituição Federal, em seus art. 5º, XXXII; art. 24, VIII; e art. 170, V, destinou especial proteção à defesa do consumidor. De igual modo, por força do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou-se a criação de código específico, voltado para os direitos consumeristas.
Em 1990, finalmente, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo que o consumidor possui vulnerabilidade que lhe é inerente dentro do mercado (art. 4º, I, CDC), sendo, frente ao fornecedor, certamente, a parte mais frágil da relação, merecendo, portanto, defesa especial, a fim de garantir a eficácia diagonal dos direitos fundamentais.
Nota-se que o CDC buscou ser o mais abrangente possível. Neste sentido, cabe observar, por exemplo, o conceito de consumidor, que já fora ampliado pelo STJ ao adotar a teoria finalista mitigada (arts. 2º, 17 e 19 do CDC) e de fornecedor (art. 3º do CDC).
Não há dúvidas de que, a priori, o transporte aéreo se enquadra com perfeição como serviço disponibilizado em relação de consumo. Assim sendo, a ele, deveriam ser aplicadas todas as normas protetivas do CDC.
Contudo, nota-se que, ao arrepio da doutrina, vem ocorrendo criticável flexibilização dos direitos consumeristas quanto aos serviços de transporte aéreo, tanto por parte da das empresas fornecedoras, quanto por parte da ANAC e ainda do próprio STF.
2. Da venda de assentos de emergência por preço diferenciado.
Há algum tempo, certas companhias aéreas brasileiras (a exemplo da Gol e da TAM[1]) passaram a vender assentos “especiais” por preços mais elevados. Inicialmente, ofereceram apenas assentos dianteiros, com um espaço um pouco maior entre as poltronas por um valor mais alto.
Posteriomente, ainda mais sedentas por lucro, as companhias aéreas passaram a comercializar também a marcação de assentos das fileiras referentes às saídas de emergência. Supostamente, tais assentos trariam um diferencial no que se refere ao conforto, seriam mais espaçosas e, por isso mesmo, haveria razão para serem vendidas nas categorias “Gol + Conforto”[2] ou “TAM Espaço +”[3].
Malgrado a argumentação de tais fornecedores do serviço aéreo, a imposição de preço elevado com relação aos assentos dispostos junto às saídas de emergência configura prática abusiva, nos termos do art. 39, X do CDC. Vejamos:
“ Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”.
Afinal, a ocupação de assento próximo à saída de emergência não expressa a utilização de qualquer serviço especialmente prestado ao consumidor. Na realidade, a existência de um espaço maior entre as poltronas nesta área não se trata de uma opção do fornecedor em busca do conforto do consumidor, mas sim de uma obrigação regulamentar e, como o próprio nome já indica, uma questão relativa à segurança de todos os passageiros e tripulantes dos voos operados naquela aeronave.
Assim, não há justa causa para a elevação do valor de marcação do assento da saída de emergência em relação aos demais assentos do avião, que, até o momento, têm sido disponibilizados de forma gratuita.
Note-se que a própria ocupação das poltronas mais próximas às saídas de emergência exige que os passageiros ali acomodados estejam aptos a operá-las, não podendo tratar-se, por exemplo, de pessoas menores de 15 anos ou maiores de 60. A disposição de tais assentos não se trata de um serviço voltado ao conforto, não é um “plus” dado ao consumidor, mas uma exigência legal, um dever relacionado à segurança não apenas do passageiro ali sentado, mas de todos os que ocupam a aeronave.
Deste modo, se a distância entre aquelas poltronas já é a regulamentar para fins de eventuais emergências, então, o que se está vendendo? A chance de sair primeiro de uma aeronave em caso de risco? Resta claro, portanto, tratar-se de prática ilegal e abusiva, além de imoral e reprovável.
3. Da resolução nº 400/2016 da ANAC e a tese da captura.
A ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) foi criada em 2005, por meio da lei nº 11.182, com o objetivo de regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária.
Como a sua própria lei instituidora determina, a ANAC tem natureza jurídica de agência reguladora, ou seja, se trata de autarquia federal especial, dotada de prerrogativas próprias, com poder de polícia, e caracterizada por sua desvinculação em relação não somente aos particulares, mas inclusive ao Poder Público. Daí porque apresenta autonomia independência administrativa, autonomia financeira, ausência de subordinação hierárquica e mandato fixo de seus dirigentes. Apesar disto, questiona-se se teria a ANAC se deixado capturar.
O fenômeno da captura das agências reguladoras traduz exatamente a situação em que a agência deixa de cumprir seu papel legal e passa a servir de instrumento para viabilizar e legitimar a consecução de interesses privados dos segmentos regulados (no caso em análise, mais especificamente, das empresas prestadoras de serviços de aviação civil).
A discussão acerca da captura da ANAC tornou-se ainda mais acalorada após a edição da Resolução nº 400/2016. Tal instrumento normativo fora apresentado como alternativa para possibilitar a redução do valor das passagens aéreas e a maior garantia dos direitos do consumidor.
Mas, na prática, até o momento, apesar de as principais companhias aéreas brasileiras já terem alterado sua política de serviços, cobrando pela bagagem despachada, ainda não houve significativa redução do valor dos bilhetes aéreos.
Ademais, malgrado a ANAC tenha enfatizado a norma que possibilita que o consumidor desista de sua compra em até 24 horas e desde que com pelo menos 7 dias de antecedência da viagem, é certo que esta tampouco traduz grande avanço em favor do consumidor, posto que a possibilidade de desistência dentro das primeiras 24 horas (no caso da Gol Linhas Aéreas, por exemplo) ou dentro do mesmo dia-calendário (no caso da Tam, por exemplo) já era prática comum e bem aceita.
No caso da Avianca, por exemplo, antes da resolução em questão, já se adotava o direito de desistência dentro do prazo de 7 dias após a compra, sem nenhum ônus ao consumidor, ou seja, em modelo mais benéfico que o regulamentado pela ANAC, homenageando-se o direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC. Assim, em suma, a resolução da ANAC trouxe, na verdade, nítido retrocesso.
4. Das decisões do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 636331 e no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 7666183.
Recentemente, julgando o (RE) nº 636331 e o (ARE) nº 7666183, o STF decidiu que os conflitos que envolvem extravios de bagagem e a consequente indenização, bem como os prazos prescricionais, desde que em transporte aéreo internacional de passageiros, devem ser resolvidos pelas regras estabelecidas pelas convenções internacionais sobre a matéria.
De um lado, com relação ao extravio de bagagem e sua consequente indenização, a Convenção de Montreal, sucessora da Convenção de Varsóvia firma o valor máximo de 1.200 (mil e duzentos) euros por mala despachada, enquanto do CDC e do CC/02 extrai-se que a indenização deve ser medida pela extensão do dano.
De outro, com relação à questão da prescrição, note-se que as supracitadas convenções internacionais estabelecem que o prazo prescricional referente à prestação de serviços aéreos é de apenas dois anos, enquanto o CDC afirma tratar-se de prazo quinquenal.
A posição do Supremo, que é notoriamente desfavorável ao consumidor, teve por base o artigo 178 da Constituição Federal, que preceitua que “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”.
Contudo, tal decisão merece críticas, visto que, conforme argumentaram os os ministros vencidos, Marco Aurélio e Celso de Mello, o tema envolve empresas de transporte aéreo internacional de passageiros, que realizam atividades qualificadas como prestação de serviços, havendo, de um lado, fornecedores e, de outro, consumidores vulneráveis, devendo-se, portanto, ser aplicado o CDC, norma especial e lei superveniente às Convenções de Varsóvia e Montreal.
Ademais, devemos acrescentar que, malgrado o STF tenha levantado a questão da supralegalidade de tais convenções, é a própria Constituição Federal, hierarquicamente superior, quem determina expressamente, através do art. 5º, XXXII; art. 24, VIII; e art. 170, V, que deve ser dada especial proteção aos direitos do consumidor.
Por fim, na esfera principiológica, salienta-se que a imposição de valor máximo de indenização por mala extraviada fere o dever do “restitutio ad integrum”, prejudicando o consumidor que sofreu o dano e beneficiando, indevidamente, o fornecedor que não arca com os riscos do seu negócio, nem assume suas responsabilidades.
Diante do exposto, verifica-se, também por parte da jurisprudência, a ocorrência de grave flexibilização dos direitos consumeristas no uso de serviços de transporte aéreo.
Conclusão
Apesar de as conclusões acerca do presente estudo já terem sido extraídas da leitura de cada um dos capítulos que compõem esse artigo, merecido se faz, neste momento, trazê-las à baila, de forma mais sucinta.
A Constituição Federal, em seus art. 5º, XXXII; art. 24, VIII; e art. 170, V, destinou especial proteção à defesa do consumidor. Analisando-se os conceitos de consumidor (arts. 2º, 17 e 19 do CDC) e de fornecedor (art. 3º do CDC), à luz da teoria finalista mitigada, não há dúvidas de que, a priori, o transporte aéreo se enquadra com perfeição como serviço disponibilizado em relação de consumo. Assim sendo, a ele, deveriam ser aplicadas todas as normas protetivas do CDC.
Contudo, nota-se que, ao arrepio da doutrina, vem ocorrendo criticável flexibilização dos direitos consumeristas quanto aos serviços de transporte aéreo, tanto por parte da das empresas fornecedoras, quanto por parte da ANAC e ainda do próprio STF.
Observada a venda de assentos de emergência por preço diferenciado, verificou-se tratar-se de prática abusiva, violadora do art. 39, X do CDC.
Analisados os pontos de maior relevância da resolução nº 400/2016 da ANAC, foi possível perceber que tal norma não representou qualquer avanço em favor dos direitos consumeristas. De um lado, foi permitida a cobrança de bagagens despachadas, não tendo ainda sido evidenciada redução significativa no preço dos bilhetes aéreos. De outro, regularizou-se direito de desistência em prazo de até 24 horas após a compra da passagem aérea, o que já era, na prática, observado pela grande maioria das empresas brasileiras. Assim, questionou-se eventual captura de tal agência regulamentadora.
Por fim, discutida a recente posição adotada pelo STF no julgamento do (RE) nº 636331 e do (ARE) nº 7666183, diante da adoção de tratados internacionais antigos em detrimento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, restou evidente a ocorrência de grave flexibilização dos direitos consumeristas no uso de serviços de transporte aéreo.
REFERÊNCIAS
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=344530
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11182.htm
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Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, Naira Ravena Andrade. Da criticável flexibilização dos direitos consumeristas no uso de serviços de transporte aéreo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50474/da-criticavel-flexibilizacao-dos-direitos-consumeristas-no-uso-de-servicos-de-transporte-aereo. Acesso em: 23 dez 2024.
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