RESUMO: O presente trabalho teve como objetivo analisar os principais aspectos da Lei 11.340/06, também denominada Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica contra a mulher, bem como debater as considerações gerais sobre tal violência e a forma como é tratada pela lei em questão.
Foi realizada uma abordagem didática que buscou analisar a legislação de proteção à mulher; leis internacionais e nacionais, bem como a evolução legislativa brasileira que concede proteção estatal às mulheres. Foram elencadas as falhas e a eficácia da Lei Maria da Penha visando debater quais lacunas da lei ainda precisam ser efetivadas para que a violência contra a mulher não seja tratada apenas no âmbito punitivo, de forma que possa receber uma atenção panorâmica do contexto social como um todo.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER . 2. A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICABILIDADE . 2.1 Das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. 2.2 Da aplicabilidade da Lei Maria da Penha. 2.3 Da efetividade da Lei 11.340/2006: 10 anos após sua promulgação. 2.4 Da necessidade de políticas públicas no combate a violência de gênero. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Palavras-chave: Violência; Mulher; Lei Maria da Penha.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como diretriz demonstrar a efetividade da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, no combate a todos os tipos de violência contra a mulher. Diante dos elevados números de violência e homicídios registrados contra mulheres pelo Mapa da Violência no ano de 2015, nove anos após a Lei Maria da Penha ser sancionada, tal pesquisa busca compreender a violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino até os dias atuais.
A violência de gênero, termo utilizado atualmente para caracterizar a violência contra a mulher, demonstra que os papéis impostos a ambos os sexos, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado, induz a uma relação de poder entre homens e mulheres. Além do mais, indica que a prática deste tipo de violência deriva do processo de socialização das pessoas. Portanto, a violência não se trata de algo natural do ser humano, mas de um processo social e educacional aplicados durante a sua evolução.
A partir do momento em que foi sancionada a Lei 11.340/2006, várias foram as alterações realizadas no judiciário para buscar uma eficácia concreta em seus efeitos, que vão desde a criação de Juizados de Violência Doméstica até a prisão preventiva do agressor.
Se fez necessária uma desconstrução social a partir da extrema necessidade da criação de uma lei que visasse proteger e garantir os direitos das mulheres no seio familiar e doméstico, visto que que esse tipo de violência ainda hoje é vista como natural e, na maioria dos casos, não é levada a sério nem mesmo pela própria vítima.
Dessa forma, buscou-se relacionar as medidas judiciais paliativas utilizadas na tentativa de proteger o direito à vida com a necessidade de criação de políticas públicas que tenham eficácia no combate a este tipo de violência. Ademais, mister ressaltar a importância da intervenção estatal como meio de coibir e erradicar qualquer tipo de violência de gênero desde o seu contexto inicial, e também oferecer todo o suporte necessário, desde social a psicológico, para as vítimas desse tipo de violência.
Foi realizada uma abordagem didática que buscou analisar a legislação de proteção à mulher; leis internacionais e nacionais, bem como a evolução legislativa brasileira que concede proteção estatal às mulheres. Foram elencadas as falhas e a eficácia da Lei Maria da Penha visando debater quais lacunas da lei ainda precisam ser efetivadas para que a violência contra a mulher não seja tratada apenas no âmbito punitivo, de forma que possa receber uma atenção panorâmica do contexto social como um todo.
1. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A violência doméstica pode ser considerada a soma de um processo histórico que legitima a diminuição social da mulher, juntamente com a incapacidade masculina de adequar-se a uma nova esfera social na qual as mulheres detém o poder sobre si mesmas. É possível que boa parte da violência que os homens praticam hoje contra a mulher, não seja apenas a persistência do velho sistema, e, sim, uma incapacidade ou recusa de adaptar-se ao novo. Ou seja, não é apenas a continuação do patriarcado tradicional, mas também um modo de reagir contra a sua derrocada. (GIDDENS, 2000, p. 92)
Na análise de Maria Amélia de Almeida Teles,
a violência de gênero tem sua origem na discriminação histórica contra as mulheres, ou seja, num longo processo de construção e consolidação de medidas e ações explícitas e implícitas que visam a submissão da população feminina, que tem ocorrido durante o desenvolvimento da sociedade humana (TELES, p. 27).
Por meio da força bruta, inicialmente, forjou-se o controle masculino sobre as mulheres. Gradativamente, foram introduzidos novos métodos e novas formas de dominação masculina: as leis, a cultura, a religião, a filosofia, a ciência, a política.
Violência, portanto, exprime conflito, ideia de interesses em choque.
“De um lado, o interesse do dominador: o desejo de mando e a montagem de um sistema que permita que ele se efetive e se perpetue; de outro, o interesse da mulher, que não é claramente definido, uma vez que as mulheres estão sujeitas à uma violência simbólica que anula a possibilidade de definirem seu destino e interesses” (GREGORI, 1993, p. 126).
Essa violência simbólica equivale à ideologia machista, a qual constitui uma visão de mundo formulada pelo dominador com fins de produzir uma mistificação que garanta a complacência do dominado. Existe, portanto, uma intenção masculina de ferir a integridade física das mulheres, vontade essa que seria fruto de uma disposição individual apoiada na ideologia e no processo global de dominação de um sexo sobre o outro.
Segundo Marilena Chauí, a violência e a força são a ausência do poder. São conceitos nos quais a autonomia e a expressão do desejo da autonomia estão ausentes, e são operadas sob o domínio da heteronomia, o lugar em que cabe a relação entre o que sujeita e é sujeitado. Portanto, cabe dizer que as mulheres são constituídas com uma subjetividade em que falta algo essencial para serem consideradas como sujeito: autonomia do falar, do pensar e do agir (Chauí, 1985, p.46). Além do mais, essa subjetividade coloca a mulher em uma posição de dependência, constituindo um ser feito para os outros e não como seres com os outros.
Ademais, na visão de Maria José Arthur, o discurso social utilizado atualmente reforça a violência como algo natural e existente dentro do âmbito familiar, de modo que
[....] este fenômeno não se esgota com a ocorrência de episódios violentos, físicos ou psicológicos, mas tem também expressão discursiva, que vai no sentido de: I) legitimar a ordem patriarcal e as suas instituições; II) justificar a violência contra as mulheres como expressão legítima do poder masculino. Assim, estes discursos são também discursos sobre normas, que nos revelam um modelo de normalidade quanto ao funcionamento da família e das instituições e no que concerne aos papéis respectivos que cabem a homens e a mulheres. (ARTHUR, 2005)
Denota-se, portanto, que a violência de gênero consiste em uma afronta a todas as gerações de Direitos Humanos, pois visa tolher a liberdade, a igualdade e a solidariedade feminina. A liberdade é violada no momento em que o homem submete a mulher ao seu domínio, vindo a constrangê-la e impedi-la de manifestar a própria vontade.
Deste modo, a mulher vê seu direito de ir, vir e pensar a seu modo desaparecer, já que encontra-se submissa aos poderes e vontades de outrem. O direito à igualdade torna-se restrito a partir do momento em que, culturalmente, o poder físico, econômico, psicológico, social, e, sobretudo, emocional, centram-se a figura do homem.
Os espaços públicos e privados ainda hoje impem uma disputa de poder entre os sexos e marcam a inferioridade do feminino em relação ao masculino (ROCHA, 2012, p.185). Ademais, ao debater a questão gênero no âmbito social durante os tempos atuais, nitidamente enxerga-se uma afronta à terceira geração dos Direitos Humanos: a solidariedade, visto que a mulher, mesmo com todas as estatísticas atuais, nunca é vista socialmente como vítima e não recebe a devida atenção estatal da mesma maneira que o homem recebe e sempre recebeu.
A violência de gênero, portanto, atinge a cidadania das mulheres e suas liberdades essenciais, impedindo-as de tomar decisões de maneira autônoma e livre e restringindo direitos inerentes a qualquer ser humano.
2. A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICABILIDADE
2.1 Das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher
A Convenção de Belém do Pará, também invocada na ementa da Lei Maria da Penha, define a violência doméstica como sendo qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. Este conceito serviu de base norteadora para que a legislação buscasse criar mecanismos que visem coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como também criar mecanismos pedagógicos e inserir a entidade familiar ao falar não só em violência contra a mulher, mas também em violência doméstica.
Portanto, resta evidente a necessidade das instâncias públicas dotadas de poder resguardarem os direitos fundamentais dos membros da família, e não mais vislumbrar o ambiente doméstico como algo privado e intocável pelo poder público.
Para chegar ao conceito de violência doméstica, se faz necessária a análise do artigo 5º e do artigo 7º da Lei Maria da Penha, pois somente a partir desta análise conjugada de tais artigos se torna possível extrair o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher de maneira ampla.
Primeiramente, como é definida no artigo 5º, a violência doméstica abrange o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Essa conduta violenta só se torna existente em razão dessa unidade da qual a vítima faz parte. No entanto, a mulher agredida no âmbito da unidade doméstica deve fazer parte da relação familiar.
Já o artigo 7º da lei Maria da Penha descreve quais são essas ações consideradas violentas, ademais, incluiu-se a expressão “entre outras” para não restar dúvidas de que outras ações fora da nominata legal, bem como as que não se configuram como delitos em sede de Direito Penal podem ser reconhecidas como violência doméstica. Pode, portanto, haver o reconhecimento de outras ações que configurem violência doméstica e familiar contra a mulher.
Sendo assim, denota-se que a Lei Maria da Penha preocupou-se em primeiro definir o que é a violência doméstica. Conceito esse que é definido pelo art. 5ª da Lei, e logo após estabelece o campo de abrangência desse tipo de violência, que pode ser praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito familiar ou em qualquer relação íntima de afeto, independente da orientação sexual da vítima.
Ademais, para que se configure violência doméstica ou familiar, a ação ou omissão deve ocorrer na unidade familiar ou em razão de qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor tenha conviva ou tenha convivido com a ofendida, não necessariamente vivendo sob o mesmo teto, mas desde que mantenham ou tenham mantido um vínculo de natureza familiar.
Para que seja assegurada sua aplicação, a lei Maria da Penha define família em seu art. 5º, inciso II, como sendo a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. Como bem salienta Maria Berenice Dias,
pela primeira vez uma lei define o que é família, iniciativa que não teve o Código Civil. Além disso, o faz de forma corajosa. O conceito corresponde ao formato atual dos vínculos familiares que têm por elemento identificador o elemento afetivo de sua origem (2015, p. 52).
Em razão disso, a lei Maria da Penha se mostrou uma exceção ao conservadorismo velado diante da violência de gênero, reconhecendo a união homoafetiva como família ao dizer que sua orientação independe da orientação sexual.
Também inovou ao deixar expressa a ideia de que família não é constituída por imposição da lei, mas por vontade de seus próprios membros, bem como ao tratar homem e mulher como “indivíduos”, e não limitou o reconhecimento da família a algo que se constitui somente através do casamento. Desse modo, contempla todos os modelos familiares, visto que a própria Constituição Federal utiliza da expressão “entende-se também como entidade familiar” para evidenciar que todas as entidades familiares devem receber proteção estatal. Até mesmo a tutela e curatela enquadram-se no conceito de família, e, portanto, mesmo que o tutor ou curador não tenham vínculo de parentesco com a tutelada ou curatelada, a relação entre eles permite identificar um espaço de convivência.
Ademais, até mesmo os vínculos afetivos que não constituem o conceito de família ou entidade familiar possuem marcas de violência, portanto, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, na existência de violência, merece a mulher receber amparo da Lei Maria da Penha.
Também com relação às inovações trazidas pela Lei Maria da Penha quando se trata de avanços jurídicos, em seu art. 5º, inciso III, ela empresta proteção à violência perpetrada em razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Nota-se, diante do artigo em questão, tamanha abrangência da Lei, em razão de englobar uma nova concepção de família que se define pela presença do vínculo da afetividade.
Abandona-se, portanto, o modelo de família romana patriarcal e hierarquizada e passa-se a um modelo familiar de atuação conjunta, igualitária e solidária de todos os membros da família, possuindo como núcleo o afeto e tendo origem plural.
Em razão disso, para que se configure violência doméstica basta que a relação íntima de afeto seja a causa da violência, o que engloba também agressões cometidas por namorado ou ex-namorado, devendo ser, no entanto, analisada em face do caso concreto. Mas para qualquer caso, havendo nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade entre agressor e vítima, é situação apta a atrair a incidência da Lei 11.340/2006.
Os sujeitos da relação não precisam necessariamente ser marido e mulher para que se configure violência doméstica. O sujeito ativo pode ser tanto um homem como outra mulher, não importando o gênero do agressor. Agressores de ambos os sexos podem sujeitar-se aos efeitos da lei, desde que reste demonstrada a hipossuficiência física ou econômica entre as partes, característica essa que evidencia a violência sofrida em razão do gênero.
Podem, portanto, ser agentes ativos o filho, o pai, irmão, marido, namorado, companheiro, cunhado, também entre irmãs ou entre ascendentes e descendentes. Também o patrão e a patroa da empregada que presta serviço doméstico podem ser sujeitos ativos, visto que a empregada também está sujeita à violência doméstica, bem como companheiras de quarto ou coabitantes de república.
No que diz respeito ao sujeito passivo, ou seja, a vítima da violência, se exige preferencialmente que seja mulher. Portanto, lésbicas e transmulheres: transexuais, travestis e intersexuais que tenham a identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. Ademais, as amantes também enquadram-se como sujeito passivo de violência doméstica, bem como a filha, neta, mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente do sexo feminino com quem o agressor tenha um vínculo de natureza familiar.
Com relação a aplicação da Lei a favor do homem, houve enorme resistência em reconhecer a possibilidade de o sexo masculino ser vítima da violência doméstica. Já na união homoafetiva entre dois homens, foi reconhecido ser possível a concessão de medida protetiva, quando um dos parceiros é vítima de violência. Ademais, se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência, seja de que sexo for, a pena do seu agressor é dilatada.
As violências reconhecidas na Lei Maria da Penha são as seguintes: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. No entanto, como descreve o artigo 7º da Lei, “entre outras” ações podem ser reconhecidas que configurem violência doméstica e familiar contra a mulher. Portanto, como já preceitua Maria Berenice Dias,
ações fora da nominata legal, bem como as que, pela falta de tipicidade, não são delitos em sede de Direito Penal, podem ser reconhecidas como violência doméstica e gerar aumento de pena e a adoção de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (2015, p.70).
Ademais, mesmo que o crime possa ser reconhecido como de menor potencial ofensivo, a ação deve tramitar nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFMs. Caso não se tenha varas especializadas para isso, deve tramitar nas Varas Criminais e não mais nos Juizados Especiais, conforme decidiu o STF através da ADC 19-3/610 e da ADI 4.424. Além do mais, o réu não faz jus aos benefícios da Lei dos Juizados Especiais, como transação, sursis processual e transação do processo.
A violência física, como já preceitua o art. 7º, inciso I, da Lei Maria da Penha: é entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. “Ainda que a agressão não deixe marcas aparentes, o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde constitui vis corporalis, expressão que define a violência física”. (DIAS, 2015, p.71). Basta que a mulher alegue ser vítima de violência e seja usada força bruta para que se consume a violência física, ainda que não existam sinais aparentes da agressão. Cabe ao réu comprovar que não a agrediu. Não se faz necessária a existência de hematomas, arranhões ou fraturas, no entanto, quando a violência física deixa marcas ou sintomas, se torna mais fácil sua identificação.
Desde 2004, a violência doméstica já configurava forma qualificada de lesões corporais. Ainda que não tenha havido mudança na descrição do tipo penal, a Lei Maria da Penha garantiu a ampliação do seu âmbito de abrangência, visto que dilatou-se o conceito de família e englobou-se também as unidades domésticas e das relações de afeto.
A violência psicológica, descrita no artigo 7º , inciso II, da Lei Maria da Penha, é entendida como
qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Diante disso, a violência psicológica consiste na agressão emocional, sendo tão ou mais grave que a violência física. O comportamento típico do agressor se dá través de ameaças, rejeição, humilhação, manipulação ou discriminação da vítima, que acaba por sentir-se diminuída e inferiorizada.
Muitos companheiros se utilizam de xingamentos, palavras depreciativas para reduzir sua companheira a uma condição inferior, enquanto se coloca em posição de superioridade hierárquica em relação a ela. O principal intuito é fazer com que a vítima sinta-se diminuída diante da agressão, perca a autonomia e a capacidade de discordar, bem como de procurar ajuda.
De tal modo, está relacionada a todas as demais modalidades de violência doméstica, pois encontra alicerce no impedimento da mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao agressor.
A violência psicológica foi incorporada ao conceito de violência contra a mulher através da Convenção de Belém do Pará, pois tal violência encontra forte alicerce nas relações com desigualdade de poder entre os sexos.
É a violência mais frequente e talvez a menos denunciada, pois na maioria dos casos, a vítima sequer se dá conta das agressões verbais, tensões, manipulações e desejos que configuram violência e devem ser denunciados (DIAS, 2015, p. 48).
Para o reconhecimento de dano psicológico, não se faz necessária a elaboração de laudo técnico. Ademais, qualquer delito praticado sob violência psicológica impõe a majoração da pena, segundo consta no art. 61, II, alínea f do Código Penal.
Cabe salientar que a violência psicológica muitas vezes não é reconhecida pela própria vítima, que já se encontra em situação de violência ou abuso pelo agressor. No entanto, a manipulação e os modos como o agressor exerce essa violência fazem com que a vítima sujeite-se a isso sem sequer questionar ou buscar entender o que realmente está acontecendo.
Na maioria das vezes, o afeto pelo companheiro ou pelo familiar que desempenha o papel de agressor a impedem de enxergar a violência psicológica pelo viés lógico de que aquele tipo de tratamento não é correto dentro do relacionamento.
Portanto, na maioria das vezes a vítima submete-se por anos a esse tipo de violência, negando para si mesma um fato concreto e acreditando que aquele tipo de tratamento é um comportamento típico do agressor ou típico de sua personalidade, que este não possui a intenção de feri-la, pois as coisas que faz e fala são natas do seu ser, passando, portanto, a aceitar tal violência dentro de seu cotidiano e submeter-se a algo que, mesmo sabendo que não é correto, aceita por acreditar ser algo nato do agressor.
A partir dessa aceitação, começa a diminuir sua capacidade de autonomia dentro da relação, seja conjugal ou familiar, e, portanto, torna-se um alvo fácil de qualquer tipo de violência advinda da violência psicológica, já que seu psicológico e seu emocional já encontra-se desestruturados pela violência que já sofrera.
A violência sexual é descrita no artigo 7º, inciso III da Lei Maria da Penha, é entendida como
qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Tal violência, assim como a psicológica, só foi reconhecida na Convenção de Belém do Pará, e está tipificada no Código Penal nos artigos 213 à 234, que cuida dos crimes contra os costumes e contra a liberdade sexual.
A identificação tardia se deu devido à tendência de identificar, ainda hoje, o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, legitimando a insistência do homem, como se lhe fosse um direito assegurado. A violência sexual legitima a mulher a submeter-se ao desejo sexual do seu companheiro. Em razão disso, a prática do estupro sequer era reconhecida pelo marido, sob o argumento de que se tratava de exercício regular do direito inerente ao casamento. Assim, tal obrigação poderia ser exigida mesmo mediante violência.
Se trata de violência que traz consequências à saúde da mulher, tanto que a própria Lei assegura à vítima acesso aos serviços de contracepção de emergência, profilaxia de DSTs, da Síndrome da AIDS, entre outros. A vítima precisa ter acesso não só á pílula do dia seguinte, mas também ao aborto, quando a gravidez é fruto de estupro. Para a interrupção da gravidez decorrente de violência sexual não é necessária autorização judicial, no entanto, diante da negativa comum de médicos e hospitais para a realização de aborto, se faz necessária tal autorização.
A violência patrimonial descrita no artigo 7º, inciso IV da Lei Maria da Penha, é entendida como
qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Tal violência encontra definição no Código Penal entre os delitos contra o patrimônio, como por exemplo o furto, a apropriação indébita, etc. Reconhecido o ato de subtração de objetos da mulher como violência patrimonial, configura-se furto. Identifica-se portanto, como violência patrimonial, os atos de subtração de valores, direitos e recursos econômicos destinados a satisfazer as necessidades da mulher, bem como o não pagamento de alimentos quando dispõe de condições econômicas, sendo também tipificada como abandono material pelo Código Penal, sem seu artigo 244.
Por fim, a violência moral, no artigo 7º, inciso V da Lei Maria da Penha, é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Portanto, tal violência é recebida pelo Código Penal nos crimes contra a honra, os quais são denominados delitos que protegem a honra. No entanto, quando cometidos em detrimento do vínculo familiar ou afetivo, configura violência doméstica.
Na calúnia, o agressor imputa fato à vítima definido como crime, na injúria não há imputação de fato determinado e na difamação há atribuição de fato ofensivo à reputação da vítima. A violência moral configura grande afronta à autoestima e ao reconhecimento social, apresentando-se na forma de desqualificação, inferiorização ou ridicularização. Tal violência, dá ensejo, na seara cível, a ação indenizatória por dano material e moral, visto que denigrem a honra da mulher e prejudicando-a em diversos aspectos de vida.
2.2 Da aplicabilidade da Lei Maria da Penha
Denota-se, portanto, que a Lei Maria da Penha não possui tipos penais próprios, mas sim circunstâncias qualificadoras ou agravantes e alterando penas. Ademais, a fim de buscar uma penalidade menos branda aos agressores, a Lei não se olvidou de excluir os crimes cometidos em atos de violência doméstica da competência dos Juizados Especiais Criminais, como prevê expressamente o artigo 41, bem como de vetar as penas de natureza pecuniária como sanção aos agressores, a fim de manter o caráter punitivo e pedagógico da lei, conforme prevê o artigo 17 da referida lei.
De forma majoritária, considerou-se constitucional o artigo 41 pelo fato de existir um tratamento desigual entre homens e mulheres no mundo fático, portanto, devem ter o mesmo tratamento desigual perante a lei. Ademais, tratar os crimes de violência doméstica como crimes de menos potencial ofensivo atentam contra o bom senso a dignidade da pessoa humana.
Se tratando da representação, o artigo 16 da Lei Maria da Penha confere à vítima a possibilidade de renunciar à representação manifestada, antes que a denúncia seja recebida pelo juiz. A partir do registro da ocorrência, das declarações da vítima são levadas a termo pela autoridade policial, portanto, a posterior manifestação da vítima perante o juiz de não querer que a ação seja instaurada trata-se de retratação à representação.
Para que exista a retratação, deve o juiz estar ciente da vontade da vítima em renunciar, e portanto, designar audiência específica para que seja registrada e manifestada essa vontade da parte. Portanto, pode existir a retratação à representação após a denúncia, mas antes de ser recebida pelo juiz.
A ausência da vítima na audiência de retratação é interpretada como uma retratação tácita, demonstrando falta de interesse na ação. Denota-se, portanto, que a referida lei concedeu à vítima a possibilidade de retratar-se diante da queixa oferecida, quando existe ainda a vontade de reatar os laços afetivos com o agressor e exercer seu direito à convivência familiar.
No entanto, cabe salientar uma pequena falha existente ao garantir a desistência da ação penal, visto que se torna praticamente impossível a possibilidade de penalizar ao agressor pela violência cometida contra a vítima, possibilitando, no entanto, com que novas agressões voltem a existir e a vítima sujeite-se novamente a este tipo de violência.
Em relação às medidas protetivas, são medidas cautelares que visam proteger a mulher contra a violência doméstica e familiar assim que a vítima buscar amparo judicial, e estão elencadas nos artigos 11, 22, 23 e 24 da referida lei, no entanto, para a adoção de tais medidas deve existir a vontade da vítima. Para que concretizem, deve a autoridade policial encaminhar ao juiz o requerimento das medidas protetivas no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas, vide inciso I do artigo 12 da referida lei. É dispensada a oitiva da parte contrária, conforme expressa o artigo 19, parágrafo 1º.
Em linhas gerais, as medidas protetivas visam preservar a incolumidade da vítima, seus familiares e testemunhas, evitando a aproximação do agressor à vítima, seus familiares e testemunhas. Essas medidas estendem-se a outros locais além do domicílio da vítima, como o trabalho e alguns ambientes que a vítima frequenta com frequência. Mesmo que a ação esteja tramitando no juízo de família, nada impede que a vítima realize o registro de ocorrência perante a autoridade policial para a concessão de medida protetiva.
Tais medidas podem ser de caráter administrativo, como por exemplo, a garantia de proteção policial da ofendida, como elenca o artigo 11 da Lei Maria da Penha. No artigo 22 são descritas as medidas que obrigam o agressor, e consiste no afastamento do agente agressor da vítima, bem como tem por objetivo dificultar novas agressões, além de pressões e ameaças.
Essas medidas são definidas pelo juiz observando os critérios da razoabilidade, de forma que tais restrições venham a ocorrer dentro daquilo que seja imprescindível para manter a vítima e familiares em segurança.
Como medida cautelar, a lei também prevê a prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Também é possível, como expressa o artigo 23 da lei, as medidas de urgência, de modo a encaminhar a vítima ao programa oficial de proteção ou de atendimento, visando a tutela da vítima em caráter de urgência quando demonstrada a probabilidade de o agressor reiterar nova violência contra a vítima de maneira mais violenta.
Para que seja garantida a eficácia das medidas protetivas, a qualquer momento pode o juiz substituí-las ou conceder outras medidas, podendo o juiz requisitar força policial ou decretar a prisão preventiva do agressor.
Com relação a prisão em flagrante e a prisão preventiva, encontram-se elencada no artigo 20 da Lei 11.340/06. Quanto à prisão preventiva, cabe em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, decretada pelo juiz de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou mediante representação da autoridade policial.
Com a vigência da Lei Maria da Penha, mesmo os crimes punidos com detenção, como ameaça e a lesão corporal, encontram-se preenchidos os pressupostos para decretação da prisão preventiva, desde que seja para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
2.3 Da efetividade da Lei 11.340/2006: 10 anos após sua promulgação.
As mudanças efetivadas pela Lei Maria da Penha na legislação infraconstitucional foram pouco notáveis. No Código Penal, acrescentou mais uma circunstância agravante quando o agente se prevalecer de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade (art. 61, II, f, do CP). Também houve aumento de pena quando o delito de lesões corporais for cometido em razão do relacionamento familiar, vindo a tornar mais branda a lesão corporal leve.
Ademais, foi estabelecida uma majorante quando a vítima da violência doméstica é portadora de alguma deficiência, inovação que merece destaque no âmbito legislativo, sendo de suma importância para dar proteção às vítimas portadoras de deficiência que dependem exclusivamente da ajuda de seus companheiros, e, no entanto, acabam sendo agredidas pelos mesmos justamente pela incapacidade de defesa que possuem.
Ademais, cabe salientar que a Lei Maria da Penha não foi de todo modo eficaz, visto que não houve diminuição no índice de homicídios de mulheres. Para tanto, foi editada a Lei 13.104/2015, que acrescentou ao delito de homicídio (CP, art. 121) uma qualificadora e uma majorante. Portanto, o homicídio qualificado praticado contra a mulher em razão da condição de sexo feminino adotou o nome de feminicídio, cuja pena é de 12 a 30 anos de reclusão.
O objetivo da Lei Maria da Penha, desde que entrou em vigor, é resguardar e amparar a mulher contra todo e qualquer tipo de violência, seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. No entanto, após uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no ano de 2013, constatou que a Lei Maria da Penha não foi suficiente para a contribuir com a redução das taxas de mortalidade das mulheres, mesmo que tenha tornado mais rígida a punição dos crimes de violência contra a mulher.
No período de 2001 a 2006, a taxa constatou 5,28 homicídios contra as mulheres por cada grupo de 100 mil mulheres, e entre 2007 e 2011, a taxa alcançou o índice de 5,22 homicídios. Ademais, através da pesquisa realizada pelo Mapa da Violência no ano de 2015, denota-se que dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013 pelo SIM, 2.394, isso é, 50,3% do total nesse ano, foram perpetrados por um familiar da vítima. Portanto, isso representa perto de 7 feminicídios diários no ano de 2013, cujo autor foi um familiar. 1.583 dessas mulheres foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro, o que representa 33,2% do total de homicídios femininos nesse ano.
Também na pesquisa realizada pelo Mapa da Violência, utilizando dados de sistemas estaduais (boletins de ocorrência policial), dentre outras fontes, foi possível estimar um número de 4.918 homicídios de mulheres para o ano de 2014. Tal estimativa leva a crer que o ritmo de homicídio feminino se mantém acelerado, observado entre os anos 2007 a 2013.
Observando os dados que evidenciam os elevados índices de violência e homicídios contra as mulheres, cabe perguntar-se: mesmo com uma Lei que visa coibir a violência doméstica e punir seus agressores de forma mais branda, por qual motivo ainda se mantém altíssimo o índice de feminicídio e violência contra a mulher? Estaria a solução na punibilidade dos agressores, depois que a violência chegasse ao extremo, com a morte da vítima? É preciso que muitas mulheres morram para que só assim seus agressores venham a ser punidos?
Mesmo que a Lei Maria da Penha tenha institucionalizado na teoria uma forma de proteger a mulher de forma abrangente em relação a todos os tipos de violência, na prática a abrangência dessa lei ainda encontra algumas falhas.
“A normalidade da violência contra a mulher no horizonte cultural do patriarcalismo justifica, e mesmo “autoriza” que o homem pratique essa violência, com a finalidade de punir e corrigir comportamentos femininos que transgridem o papel esperado de mãe, de esposa e de dona de casa. Essa mesma “lógica justificadora” também acontece em casos onde a violência é exercida por desconhecidos contra mullheres consideradas “transgressoras” do papel ou comportamento culturalmente esperado e/ou imposto a elas. Em ambos os casos, culpa-se a vítima pela agressão sofrida, seja por não cumprir o papel doméstico que lhe foi atribuído, seja por “provocar” a agressão dos homens nas ruas ou nos meios de transporte, por exibir seu corpo ou “vestir-se como prostituta”. (Mapa da Violência, 2015, p.77)
Primeiramente, a mulher agredida possui diversos motivos concretos para não levar a agressão às autoridades policiais. Seja pela dependência financeira, pela possibilidade de desconstituição da família com a prisão do agressor, pelo afeto existente na relação que a impede de querer ver o companheiro ou familiar preso, pelo medo de que não tenha o retorno esperado das autoridades e nem a proteção de que precisa. E de fato, essas são coisas realmente existentes e para a sociedade em geral, são vistas de forma incompreendida. No entanto, para a vítima possuem grande peso ao se colocar na balança a prisão do agressor e a possibilidade de perdoá-lo.
Ademais, a possibilidade de renúncia da vítima desestabiliza o caráter corretivo da Lei, já que na maioria dos casos as mulheres agredidas arrependem-se de levarem até as autoridades policiais a queixa da violência sofrida no momento em que se deparam com as consequências que virão a ocorrer em suas vidas.
Também se deve salientar sobre as vítimas que, amedrontadas por ameaças, ou não levam a agressão sofrida até a delegacia ou levam e logo desistem da ação, já que estão agindo sob vontade alheia e receio de que o agressor venha a chegar ao limite da violência, podendo tirar-lhes a vida caso exteriorizem a violência sofrida.
Ademais, tratando-se do atendimento à vítima no ato da queixa, a Lei preconiza o atendimento especializado desde a delegacia de polícia, mas não aponta como será concretizado, deixando margem para que o despreparo e até mesmo o machismo arraigado na esfera institucional prevaleça durante o atendimento a essas mulheres vítimas de violência, dando certo descrédito ao caso relatado e diminuindo a esperança das vítimas de contarem com a proteção estatal.
São muitos os motivos que não permitem que, na prática, a Lei Maria da Penha seja realmente efetivada e garanta a proteção de todas as mulheres, em todos os lares. Teoricamente, é bem estruturada e, se tivesse os alicerces de que necessita, poderia sim prevenir a violência contra a mulher e também punir os agressores na intenção de corrigi-los.
No entanto, a falta de aparato estatal faz com que a Lei se mantenha bonita apenas no papel, pois na prática a realidade feminina não condiz com a facilidade de buscar e receber a proteção dos direitos humanos mínimos, na qual a Lei Maria da Penha fundamenta-se.
Esclarece Fernando Vernice dos Anjos (2006, p. 10) nesse sentido:
“O combate à violência contra a mulher depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundas mudanças estruturais da sociedade sobretudo extrapenais). Como afirmamos a nova lei acena nesta direção, o que já é um bom começo. Esperamos que o Poder Público e a própria sociedade concretizem as almejadas mudanças necessárias para que possamos edificar uma sociedade mais justa para todos, independentemente do gênero. Desta forma, o caráter simbólico das novas medidas penais da lei n. 11.340/06 não terá sido em vão, e sim terá incentivado ideologicamente medidas efetivas para solucionarmos o grave problema da discriminação contra a mulher”
Portanto, para que o combate à violência contra a mulher se concretize de forma ampla, abrangendo a todas as mulheres em situação de violência e vulnerabilidade, é preciso mais do que a punibilidade dos agressores. Faz-se necessária a efetividade de políticas públicas que visem contornar a padronização social dos papeis de gênero impostos.
2.4 Da necessidade de políticas públicas no combate à violência de gênero
Nítidos são os índices atuais de violência contra a mulher. Atualmente, mesmo com a existência da Lei Maria da Penha, as agressões contra as mulheres, vindas de companheiros ou familiares, ainda atinge níveis assustadores. De todo modo, fica evidente que só o caráter corretivo da Lei não basta para que seus objetivos sejam alcançados.
Mais do que isso, é necessário existir uma consciência social de que homens e mulheres não mais se enquadram em papeis até então ocupados alguns anos atrás. Os tempos são outros, e mais do que nunca, a mentalidade humana deve acompanhar as alterações existentes no contexto social, para que não se torne demasiada ultrapassada e entre em choque com o contexto atual em que vivemos. Assim, cabe ao Estado adotar medidas que visem conscientizar a sociedade de que regras até então estabelecidas em outros tempos não mais encaixam-se no sistema atual adotado pelo ser humano.
Através de medidas educativas e políticas públicas que visem abordar a equidade entre os sexos, é possível iniciar um processo de reformulação social de que homens e mulheres não devem obedecer o padrão patriarcal familiar, pois o contexto em que vivemos não condiz com as regras estabelecidas por esse padrão adotado em outras épocas.
Atualmente, as mulheres possuem autonomia, limitam seu modo de viver ao que condiz com a própria vontade e não precisam da autorização masculina para exercer o direito de ir e vir. Após muitas conquistas obtidas ao longo dos anos, as mulheres adquiriram o livre arbítrio para guiarem suas vidas, da maneira que pretendem e sem a necessidade de aprovação ou submissão ao sexo masculino.
No entanto, esse tipo de mudança social, pelo fato de não ter sido bem recebida de forma abrangente, acabou por gerar um conflito social entre a aceitação masculina da liberdade conquistada pelas mulheres e a capacidade das mulheres de exercerem essa liberdade conquistada. Fato esse que, gerado por uma divergência de interesses, ocasiona na maioria dos casos, a violência de gênero.
Para que a violência contra as mulheres seja enfrentada de forma a obter resultados satisfatórios, deve-se primeiramente enxergar a situação como sendo, de fato, um problema social. Para que sejam elaboradas políticas públicas que visem modificar a estrutura de gênero estabelecida, deve-se enxergar que o contexto atual clama pela desconstrução desse tema.
De igual modo, reconhece-se que o processo de elaboração de uma política inicia-se com a “percepção e definição de problemas”. No entanto, não basta apenas o reconhecimento de uma dificuldade ou situação problemática é preciso transformá-la em um problema político, para que se insira na agenda pública (SCHMIDT, 2008).
Não só no intuito de viabilizar os direitos femininos, a desconstrução dos papeis impostos a cada gênero também se faz necessária para garantir a efetividade de toda e qualquer questão na qual o gênero se faça presente, como por exemplo, direitos homossexuais, transexuais, entre outros. Denota-se que, mesmo com grandes avanços da ciência e do ser humano, o estigma construído acerca do padrão social ainda é visto como regra, reforçado pelo Estado e pela sociedade, o que acaba por dificultar a busca pela igualdade de gênero e consequentemente, evitar que a violência contra a mulher se perpetue ao longo dos anos.
Para que uma mudança social seja estabelecida de forma abrangente, é preciso que sejam criadas políticas públicas voltadas para a reeducação e desconstrução social acerca dos direitos femininos. Políticas que visem garantir a efetividade dos direitos das mulheres, sem que seja necessário fazê-las vítima do machismo até então arraigado no seio social e familiar. É preciso que o poder público tome consciência de que gênero precisa ser debatido sim, em todo e qualquer espaço, e que considera-lo um tabu, mesmo em pleno século XXI, caracteriza nosso Estado como ultrapassado e conservador e legitima ainda mais todo tipo de violência de gênero.
Cabe ressaltar que, mesmo que um problema social seja incluído na agenda governamental, isso não significará que ele será considerado prioritário. Isso só ocorre quando diversos fatores se juntam, tais como vontade política, mobilização popular e a percepção de que os custos de não resolver o problema serão maiores que os custos de resolvê-los (CALDAS, 2008).
Do ponto de vista econômico, o não investimento em ações de prevenção e erradicação da violência tem altos custos para o Estado e a sociedade. No entanto, são muitas as dificuldades para responder com políticas efetivas, dada a precariedade da estrutura dos órgãos governamentais.
Ademais, o atendimento dado às pessoas vítimas de violência tem se dado de modo fragmentado, pois não existe um serviço público voltado para o atendimento integral para esse tipo de violência e que realize todos os procedimentos necessários em todos os âmbitos: saúde, justiça, segurança, educação, social, etc. Por vezes, o desencontro desses serviços ou até mesmo a inexistência deles, faz com que o que deveria se tornar uma ajuda na vida da vítima se torne um sacrifício, já que existe uma estrutura desabando por trás de toda queixa, que necessita do aparato estatal para reerguer-se.
Todas as políticas públicas até então criadas voltam-se para o enfrentamento da violência e seu viés criminalístico, quando setores como a educação, saúde e assistência social, bem como a compreensão das relações desiguais de gênero de forma ampla, não recebem a devida atenção social necessária para desconstruir os estigmas já enraizados e assim iniciar um processo de igualdade entre homens e mulheres.
É de fundamental importância que os homens sejam vistos como aliados e considerados como protagonistas nesses esforços. Intervenções com mensagens alternativas de gênero voltadas para meninos, homens e jovens são fundamentais para uma mudança de comportamento. Por isso, o período da infância e da adolescência é fundamental para trabalhar com meninos e homens jovens questões voltadas a gênero e masculinidade.
Mesmo que haja uma Lei específica no combate à violência contra a mulher, se faz necessária uma conscientização social a respeito do tema e a adoção de políticas públicas capazes de suprir as necessidades das vítimas, sejam no âmbito social, físico e psicológico. Ademais, cumpre ressaltar que também é preciso existir meios de transformar as normas jurídicas em ações concretas.
Na análise da Lei Maria da Penha, nota-se que o legislador ao cria-la, usou os verbos será, determinará, assegurará e compreenderá no tempo futuro, salientando que o tipo de suporte necessário à vítima de violência doméstica ainda não se faz existir de forma satisfatória.
Portanto, a Lei Maria da Penha visou, além de definir a violência doméstica e impor mecanismos repressores, teve a cautela de determinar providências a serem adotadas pelos poderes públicos das esferas federal, estadual e municipal. (DIAS, 2015, p.190)
Portanto, mais do que criar uma lei que reprima os agressores e defina quais medidas devem ser criadas pelo Estado para a prevenção à violência doméstica, segundo a análise de Teles,
é preciso criar políticas de incentivo para o desenvolvimento de estratégias de reconhecimento da natureza complexa da violência contra a mulher, imbricada com as questões sociais e étnicas/raciais, para alcançar uma abordagem integral do fenômeno na aplicação de medidas resolutivas. (2012,p.116)
Outrossim, cabe trazer em comento que a implantação de uma lei que buscasse não só prevenir a violência de gênero, mas também punir os agressores, foi de fato um avanço no contexto social brasileiro, de forma que a violência de gênero ganhou visibilidade. Dessa forma, com a existência de uma lei protetiva, a propagação de uma consciência social tornou-se mais fácil, trazendo esclarecimento a uma grande parcela da população que sequer tinha conhecimento dos variados tipos de violência.
Em contrapartida à propagação de informações através da Lei Maria da Penha, bem como de suas medidas protetivas, denota-se que o número de mulheres em situação de violência ainda continua elevado, trazendo ao debate se a lei trouxe para a superfície o elevado número de casos ou, se mesmo com a existência de uma lei protetiva, os números continuam avançando.
Dessa forma, acima de qualquer planejamento estatal, deve existir a conscientização social de que a igualdade de gênero é algo concreto e que precisa ser trabalhada, cabendo ao Estado usar de seus meios para expandir essa conscientização. Ademais, deve buscar desconstruir em massa a ideia ainda existente de hierarquia entre os sexos, para que assim, a partir da base, possamos ter uma sociedade livre de padrões ultrapassados e consequentemente a igualdade finalmente deixe de ser uma utopia para se tornar uma realidade social.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do presente trabalho, conclui-se que, mesmo nos dias atuais e com diversas conquistas obtidas ao longo dos séculos por homens e mulheres, ainda assim vivemos em uma sociedade repleta de paradigmas e padrões que precisam ser desconstruídos, como por exemplo, a hierarquia ainda existente entre os sexos.
A falta de conscientização estatal de que é preciso conscientizar a sociedade sobre a importância da equidade entre gêneros faz com que apenas existam mais leis buscando reprimir agressores do que visando uma construção social de que homens e mulheres são iguais entre si em direitos e deveres.
A Lei Maria da Penha foi de importante avanço no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Pois estabeleceu meios de repressão dos agressores, bem como também estabeleceu medidas a serem adotadas socialmente para a erradicação desse tipo de agressão e formas de garantir proteção às vítimas.
No entanto, não foi suficiente. Os índices gerados pelo Mapa da Violência do ano de 2015 mostram o crescente aumento de violências e homicídios cometidos contra mulheres em razão do sexo feminino, o que deixa em dúvida a real eficácia da Lei que tem como intuito prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar. A necessidade de criar uma Lei específica para reprimir quem comete homicídios contra mulheres apenas evidenciou isso, deixando claro que o caráter preventivo da Lei falha em algum ponto.
Bem além do caráter repressivo, as políticas públicas estabelecidas pela Lei Maria da Penha devem ser colocadas em prática pelo Estado, de modo a buscar meios de conscientização social, através de um viés educacional, de que constitucionalmente não há hierarquia entre homens e mulheres. A própria Constituição Federal consagra essa igualdade, que deve ter o aparato estatal para que possa ser colocada em prática de modo eficaz.
Outrossim, a noção de que a família é algo a não ser tocado pelo Estado prejudica ainda mais a diminuição dos casos de violência, já que se trata de um dever estatal proteger todos os membros que constituem o ambiente familiar, principalmente a mulher e os filhos, as figuras mais vulneráveis desse ambiente.
Mais do que modos de repressão, é preciso que exista a desconstrução social de que gênero precisa ser debatido em qualquer lugar, sem que cause conflito de interesses entre as partes. Os papeis até então impostos em outras épocas devem desconstruir-se e dar lugar ao novo, à uma sociedade de igualdade e respeito mútuo entre os sexos, de modo que o poder público preocupe-se em conscientizar a sociedade da extrema importância dessa igualdade, para que assim seja possível a correlação social de maneira pacífica.
Não basta que mulheres precisem morrer para buscar uma solução, basta que todo e qualquer ser humano seja educado através de um viés igualitário e cresça sendo conscientizado de que todos ao seu redor possuem direitos iguais aos seus, sem a necessidade de estabelecer ordem ou poder ao seu próximo ou legitimar um papel estabelecido outrora e já ultrapassado.
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Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Aluna especial do Mestrado em Direito e Justiça Social - FURG e Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ESSY, Daniela Benevides. Da Lei Maria da Penha no combate à violência contra a mulher: até onde vai a sua eficácia? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50558/da-lei-maria-da-penha-no-combate-a-violencia-contra-a-mulher-ate-onde-vai-a-sua-eficacia. Acesso em: 23 dez 2024.
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