RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar instituto sempre controverso no estudo do direito da Criança e do Adolescente: a remissão. Diferenciaremos a remissão do perdão, apresentaremos as diversas formas de aplicação deste instituto, bem como a impossibilidade de aplicação de penalidades ao jovem que não cumpre as determinações a ele impostas em sede de remissão.
Palavras-chave: remissão, perdão, medida socioeducativa, internação-sanção, impossibilidade
1. Introdução:
A remissão é um instituto previsto no artigo 126 e ss. do Estatuto da Criança e do Adolescente e surgiu, principalmente com a ideia de agilização dos procedimentos de apuração de ato infracional e também como desjudicialização dos procedimentos afetos à área da infância e juventude.
Tem como origem o art. 11 das Regras Mínimas Uniformes das Nações Unidas para a administração da Justiça de menores, as Regras de Beijing.
O conceito de remissão, tal qual está presente no Estatuto, foi extraído do texto em espanhol das Regras de Beijing (remisión). Na versão inglesa do documento, a expressão foi referida como diversion, cuja tradução para o português pode ser “encaminhamento diferente do original”.[1]
Ao contrário do afirmado por muitos doutrinadores, remissão não é a mesma coisa que perdão. Perdoar alguém significa o reconhecimento de uma conduta errada e desculpar alguém por isso. Não é o que ocorre na remissão. Exatamente porque, nessa fase, não se discute se o adolescente efetivamente cometeu ou não o ato infracional. Na remissão não se discute autoria de ato infracional, daí ser equivocada a comparação com o perdão.
2. A remissão no Estatuto da Criança e do Adolescente
A remissão, prevista nos artigos 126 e 127 do ECA pode ocorrer em duas situações:
Primeira, quando oferecido pelo Ministério Público, antes do oferecimento da representação, durante a oitiva informal. Assim como o João Batista da Costa Saraiva[2], não apreciamos o termo conceder, uma vez que a remissão proposta pelo Ministério Público tem evidente caráter de transação. Após o oferecimento da remissão, os autos serão encaminhados ao juiz para Homologação. Caso homologado, os autos serão arquivados; se assim não entender o magistrado, devem os autos serem encaminhados ao Procurador Geral de Justiça (tal qual o artigo 28 do CPP), que determinará a manutenção da remissão ou ofertará a representação do jovem.
A segunda forma de concessão da remissão é aquela concedida pelo juiz após o oferecimento da representação pelo Promotor de Justiça.
Esta remissão pode ser suspensiva ou extintiva.
Será extintiva se, após o oferecimento da remissão, com a concordância do Defensor do adolescente e do Ministério Público, extinguir-se o processo socioeducativo.
Será suspensiva se, além da remissão tiver o adolescente que cumprir medida socioeducativa em meio aberto. Após o devido cumprimento, a ação é extinta. Importante salientar que medidas em meio fechado não podem ser aplicadas concomitantemente à remissão.
Em qualquer caso, aplicada a remissão, não há, como dito, o reconhecimento da responsabilidade pelo adolescente, bem como não prevalece para fins de antecedentes.
Cumpre destacar a posição desta autora quanto à inconstitucionalidade do artigo 127 do ECA, que permite a aplicação de MSE (medida socioeducativa) em conjunto com a remissão.
Tal entendimento ocorre porque a aplicação da medida socioeducativa apenas pode ocorrer, de acordo como Estatuto, após comprovadas a prova da autoria e da materialidade do ato infracional. Ora, se a remissão tem característica marcante o fato de não verificar a responsabilidade do jovem quanto ao cometimento do ato infracional, como justificar a aplicação da medida (que tem sim caráter sancionatório) a este adolescente? Abaixo analisaremos a posição do Supremo Tribunal Federal e perceberemos, que diversamente da autora, o STF não reconhece o caráter sancionatório da medida quando aplicada em sede de remissão.
Porém, infelizmente, há casos em que magistrados, contrariando doutrina, Lei e jurisprudência, em alguns casos aplicam a internação sanção em caso de descumprimento da MSE aplicada em sede de remissão.
O art. 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao dizer que não cabe, cumulativamente à remissão, a aplicação das medidas de semiliberdade e de internação, ou seja, descarta-se nesses casos qualquer medida que prive o adolescente de liberdade.
Tal previsão existe, não por outra razão, porque a remissão não implica, conforme exaustivamente relatado, reconhecimento de culpa, não sendo cabível, portanto, que sem a devida apuração da responsabilidade do adolescente seja ele privado de sua liberdade. [3]
3. Da impossibilidade de aplicação de medida restritiva de liberdade em caso de descumprimento
Considerando que não houve apuração do ato infracional supostamente praticado pelo adolescente, para “regredi-lo” à internação ou, até mesmo, para aplicar-lhe a internação sanção, se faz necessária a continuidade do processo socioeducativo, em caso de remissão aplicada como suspensão.
Já no caso de remissão com extinção do processo, nada mais é possível fazer, tendo em vista que o processo está encerrado e não houve comprovação da materialidade e da autoria para admitir a aplicação de medidas socioeducativas mais rígidas. Como dito, a remissão por expressa determinação legal (e nem podia ser diferente), não implica reconhecimento da responsabilidade pelo ato e depende de expressa aceitação de todos os envolvidos.
Na mesma direção desta autora caminhava a jurisprudência:
ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI - HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DE REMISSÃO PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA - INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. INADMISSIBILIDADE - JUÍZO DE RETRATAÇÃO NÃO EXERCIDO - AUSÊNCIA DE NULIDADE. 1-Sendo da competência exclusiva do Juiz a aplicação ao adolescente de medidas socioeducativas pela prática de ato infracional, impossível a sua cumulação com a remissão concedida pelo Ministério Público, visto que a imposição das referidas medidas exige procedimento próprio, para que sejam garantidos os princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório (arts. 5ª, LIV, CF e 111, ECA). 2- A finalidade precípua do juízo de retratação é a reforma mais célere da decisão, dando ao juiz a possibilidade de examinar também os argumentos aduzidos nas razões de recurso, não ocorrendo nulidade caso não seja exercido.” (1.0024.05.722070-9/001(1) - TJ MG – relator Sérgio Braga – julgado 19/12/2006).
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades reconheceu a constitucionalidade dessa norma admitindo a cumulação de medidas socioeducativas com a remissão, conforme acórdãos a seguir:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 127 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. REMISSÃO CONCEDIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. CUMULAÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA IMPOSTA PELA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. POSSIBILIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. PRECEDENTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O acórdão recorrido declarou a inconstitucionalidade do artigo 127, in fine, da Lei n° 8.089/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), por entender que não é possível cumular a remissão concedida pelo Ministério Público, antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, com a aplicação de medida sócio-educativa.
2. A medida sócio-educativa foi imposta pela autoridade judicial, logo, não fere o devido processo legal. A medida de advertência tem caráter pedagógico, de orientação ao menor e em tudo se harmoniza com o escopo que inspirou o sistema instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
3. A remissão pré-processual concedida pelo Ministério Público, antes mesmo de se iniciar o procedimento no qual seria apurada a responsabilidade, não é incompatível com a imposição de medida sócio-educativa de advertência, porquanto não possui esta caráter de penalidade. Ademais, a imposição de tal medida não prevalece para fins de antecedentes e não pressupõe a apuração de responsabilidade. Precedente.
4. Recurso Extraordinário conhecido e provido. (RE 248018 / SP; Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA; j. 06/05/2008; 2ª T.; DJ 20/06/2008)
EMENTA: Recurso extraordinário. Artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente. - Embora sem respeitar o disposto no artigo 97 da Constituição, o acórdão recorrido deu expressamente pela inconstitucionalidade parcial do artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente que autoriza a acumulação da remissão com a aplicação de medida sócio-educativa. - Constitucionalidade dessa norma, porquanto, em face das características especiais do sistema de proteção ao adolescente implantado pela Lei nº 8.069/90, que mesmo no procedimento judicial para a apuração do ato infracional, como o próprio aresto recorrido reconhece, não se tem em vista a imposição de pena criminal ao adolescente infrator, mas a aplicação de medida de caráter sócio-pedagógico para fins de orientação e de reeducação, sendo que, em se tratando de remissão com aplicação de uma dessas medidas, ela se despe de qualquer característica de pena, porque não exige o reconhecimento ou a comprovação da responsabilidade, não prevalece para efeito de antecedentes, e não se admite a de medida dessa natureza que implique privação parcial ou total da liberdade, razão por que pode o Juiz, no curso do procedimento judicial, aplicá-la, para suspendê-lo ou extingui-lo (artigo 188 do ECA), em qualquer momento antes da sentença, e, portanto, antes de ter necessariamente por comprovadas a apuração da autoria e a materialidade do ato infracional. Recurso extraordinário conhecido em parte e nela provido.” (RE 229382/SP; Rel. Min. MOREIRA ALVES; j. 26/06/2002, Tribunal Pleno, DJ 31-10-2002)
Nota-se que para afastar a inconstitucionalidade do referido dispositivo, o STF afirma que nos casos de remissão, as medidas aplicadas perdem totalmente seu caráter punitivo, transmudando-se para meras medidas de proteção ao adolescente.
A se valer deste entendimento, tratando-se de medida de proteção, como será possível penalizar o adolescente pelo seu descumprimento? Estamos sob a égide da doutrina da proteção integral que veda a colocação do adolescente como objeto de proteção, não sendo admissível que, com o pretexto de protegê-lo, restrinjam-se seus direitos, mormente sua liberdade. Medidas de caráter punitivo somente podem ser aplicadas após a devida apuração da responsabilidade por meio de procedimento que garanta a ampla defesa e o contraditório, nunca de outra forma, tendo em vista as graves consequências que podem decorrer disso. Ao abrir mão da apuração do ato infracional, abre-se mão, também, da punição (e nem se diga que as medidas socioeducativas não ostentam esse caráter).
Ainda que se faça um paralelo com a suspensão condicional do processo para os adultos – cujo beneficiado não se encontra sob a égide da proteção integral, mas sim punitivista, nota-se a descabimento da decisão.
Com efeito, no caso de ter suspenso o seu processo, um adulto não reconhece a responsabilidade pelo crime que lhe é imputado, apenas aceita as condições que lhe são impostas e, em caso de descumprimento, não se admite sua prisão, apenas a única consequência será o prosseguimento do processo suspenso.
É certo que é vedado dar tratamento mais severo ao adolescente do que aquele previsto para os adultos. Assim, se no caso dos imputáveis o descumprimento das condições impostas apenas enseja o reinício do processo, a mesma solução deveria ser adotada no caso de jovens que descumpram as medidas aplicadas no momento da remissão.
Como explicitado alhures, com a remissão as medidas aplicadas perderam seu caráter punitivo (não pode haver punição sem prévia responsabilização e esta só se dá com o respeito ao contraditório e à ampla defesa, o que não ocorre no caso da remissão), mantendo apenas seu viés protetivo, tornando impossível a aplicação da internação.
Em muitos casos, a internação se torna ainda mais descabida, tendo em vista que o ato infracional do qual o jovem pode ser acusado, não admitiria, ao final do processo, a aplicação da medida de internação, considerando a ausência de antecedentes infracionais e a inexistência de violência ou grave ameaça.
4. Conclusão
Por fim, mesmo que superada a impossibilidade de regressão da medida aplicada com a remissão, não é caso de determiná-la no momento em que o juiz reconhece o descumprimento das medidas aplicadas em sede de remissão, sendo imprescindível que se determine a busca e apreensão do adolescente para sua oitiva, e eventual justificativa para o descumprimento, e não para sua internação, da mesma forma que, ainda que afastada a remissão por descumprimento da medida imposta, não pode o adolescente, sem comprovação de sua responsabilidade, ser a ele aplicada medida socioeducativa restritiva de liberdade.
5. Bibliografia:
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias Processuais e o Direito Penal Juvenil como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90 comentado artigo por artigo. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.
SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional. 3ª ed., rev., ampl. Porto Alegre: Ed. do Advogado, 2006, p.135.
[1] SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional. 3ª ed., rev., ampl. Porto Alegre: Ed. do Advogado, 2006, p.135.
[2] Op. cit, f. 137
[3] ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente. 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2015, p.359
Defensora Pública. Mestranda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SPONTON, Leila Rocha. Da Ilegalidade da Internação-sanção nos casos de aplicação de remissão e a afronta ao devido processo legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50601/da-ilegalidade-da-internacao-sancao-nos-casos-de-aplicacao-de-remissao-e-a-afronta-ao-devido-processo-legal. Acesso em: 23 dez 2024.
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