RESUMO: A atuação probatória do Estado é limitada pela Constituição Federal especialmente no que tange à inviolabilidade do domicílio. O presente artigo visa pontuar a abrangência desta garantia, bem como as suas exceções. São destacadas a autorização do morador, o desastre ou prestação de socorro, a falsa representação da realidade, a determinação judicial e o flagrante delito. Estudam-se os elementos constitutivos de cada exceção, com destaque para a determinação judicial e a flagrância. É abordada, ainda, a consequência para a violação da citada garantia constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: Atuação Probatória do Estado. Inviolabilidade do Domicílio. Ilicitude das Provas.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Desenvolvimento 3. Conclusão 4. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece limitações à atuação probatória do Estado. Dentre elas, podem ser citadas a inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5º, XI, CRFB, o sigilo de dados e comunicações telefônicas e o sigilo de cartas, dispostos no Art. 5º, XII, CRBF, a garantia a não ser obrigado a produzir prova contra si próprio, prevista não apenas no Art. 5º LXIII da CRFB, mas também no art. 8º, parágrafo 2, g do Pacto São José da Costa Rica .
O presente estudo analisará a inviolabilidade do domicílio, as suas limitações e a implicância da sua violação no que tange às provas colhidas.
2. Desenvolvimento
A doutrina define que a expressão “domicílio” do dispositivo constitucional é utilizada no sentido vulgar. Em verdade, “casa” é uma simbiose entre propriedade privada e centro da vida privada, que se estende à laborativa. Isto está claro no próprio Código de Processo Penal, no seu artigo 246[1].
Assim, inclui-se neste conceito, ainda, o quarto de hotel não apenas quando servir de residência, mas também quando for mera hospedagem. No caso de bens móveis (carro, barco), estes seguem a mesma disciplina legal dispensada a pessoas (art. 244, CPP).
Um exemplo interessante de questão prática é o caso de um caminhoneiro que utiliza seu veículo para dormir em via pública. Neste caso, o caminhão não terá finalidade de residência. Porém, se ele utilizar um box no posto de gasolina, por exemplo, equivaleria a um quarto de hotel, agasalhado pelo art. 5º, XI, CRFB/88.
Este dispositivo alcança, inclusive, bens públicos de uso especial, como um gabinete, devendo haver autorização judicial.
Em que pese a regra geral ser a inviolabilidade do domicílio, o próprio texto constitucional traz algumas exceções que serão analisadas a seguir:
1) Autorização do morador:
Deve ser apontado que é necessária a autorização de apenas um dos moradores da casa. No entanto, tal autorização abrange apenas a área comum do imóvel caso a pessoa não tenha disposição sobre a intimidade dos outros moradores. Assim, se houver o quarto de um filho maior de idade, o consentimento dos pais não abrange o seu quarto.
Já no caso que houver o consentimento de um dos moradores, mas a dissidência de outro, deve prevalecer o dissenso, pois não se pode dispor da intimidade do outro, inclusive no caso de casal com filho maior.
Outro ponto importante é que o consentimento deve ser dado por pessoa que tenha poder de disposição no imóvel. Dessa forma, o consentimento do caseiro ou empregada doméstica não será válido.
Por sua vez, o morador do imóvel apenas pode autorizar a entrada no quarto da emprega doméstica e na casa do caseiro. Mas não pode autorizar o seu vasculhamento.
2) Desastre ou prestação de socorro:
Neste caso, entendeu o constituinte que deveria prevalecer, na ponderação entre o bem comum e a preservação da intimidade, a primeira.
3) Falsa representação da realidade:
Ocorre a falsa representação da realidade quando uma pessoa que não tem capacidade para consentir, mas ainda assim o faz, acarretando erro na autoridade. Isso ocorre, por exemplo, quando um morador menor de idade se apresenta como maior de idade ou quando a empregada doméstica se apresenta como a dona do imóvel.
Se o erro for absolutamente inescusável, a diligência será ilícita, apesar de o policial não responder por isso.
O mesmo ocorre se houver falsa representação de desastre ou prestação de socorro.
4) Determinação Jurisdicional:
A determinação judicial, instrumentalizada através do mandado, deve ser cumprida durante o dia. O Supremo Tribunal Federal não define um horário específico, mas entende que é dia enquanto houver luz solar.
Desse modo, de acordo com o entendimento do STF, em regra, se há o cumprimento do mandado à noite, qualquer morador pode se negar a permitir a sua execução, ocorrendo um exercício regular de direito na sua ação.
No entanto, há uma exigência relativa a esse respeito. Isso porque o Pleno do STF admite excepcionar a exigência diurna se a busca domiciliar estiver relacionada a uma medida cautelar probatória que seja imprescrindível a sua efetividade. Essa determinação parte do juiz, devendo constar na sua decisão, e a fundamentação consiste na demonstração de que seria impossível garantir o sigilo da diligência se realizada durante o dia.
O Código de Processo Penal estabelece os requisitos para o mandado de busca no seu artigo 243, incisos I e II[2]. Neste caso, o fumus boni juris se caracteriza como plausibilidade da condenação e periculum in mora na possibilidade de perecimento da prova.
Ademais, não pode haver mandado em branco ou que não determine o imóvel objeto da busca, indicando apenas casas em geral em determinada localidade. Tal impeditivo é de extrema importância no que tange aos mandados de busca e apreensão em branco referente a comunidades carentes, fundamentando-se no fato de que a carência de urbanização implica na necessidade de um mandado mais genérico.
Isso é insustentável em um Estado Democrático de Direito, já que o Estado viola garantias fundamentais duas vezes. A uma por não ter implementado a urbanização no local e a outra por se utilizar disso para violar os domicílios.
No caso de determinação jurisdicional expedida em desfavor de uma sociedade empresária, ela abrange todas as ramificações existentes desde que na mesma unidade imobiliária, sendo irrelevante que na ordem jurisdicional tenham se especificado apenas alguns andares. No entanto, tal orientação não abrange as filiais da sociedade empresária.
Outra premissa importante é a de que a inviolabilidade do domicílio será afastada proporcionalmente à finalidade do mandado. Ou seja, se há um mandado para apreensão de pássaros silvestres, não se pode vasculhar as gavetas do quarto do indiciado. A partir daí a diligência se mostra ilegal e todas as provas dali apreendidas seriam ilegais. Ocorre um verdadeiro dètournement du povoir.
Por sua vez, se no curso regular do cumprimento de medida cautelar probatória forem encontrados bens distintos da finalidade originária do mandado, tais provas serão igualmente lícitas, pois não houve burla a lei por parte do Estado, pois haverá na verdade um encontro fortuito de provas, também chamado de good faith exception.
5) Flagrante delito:
O flagrante delito tem suas hipótes no art. 302 do CPP[3]. Os incisos I e II se caracteriza como próprio; o inciso III trata do flagrante impróprio e o inciso IV, flagrante presumido.
Para fins de exceção à inviolabilidade do domicílio, no caso dos incisos III e IV do art. 302, CPP, o critério temporal é irrelevante, desde que a perseguição ou a investigação, respectivamente, sejam imediatas ao cometimento da infração e ininterruptas.
Há o questionamento a respeito de a inviolabilidade ao domicilio ser excepcionada por todas as prisões em flagrante ou se a interpretação do art. 5º, XI da CRFB/88 alcançaria apenas o flagrante próprio. Os Tribunais Superiores têm precedentes no sentido de que o constituinte elencou as hipóteses de flagrante delito, que estão definidas no art. 302, CPP, sem qualquer diferenciação.
Entretanto, importa ser pontuado que deve haver circunstâncias fáticas que indiquem previamente aos policiais a situação de flagrância no interior do imóvel.
De fato, a decisão do STF no RE 603.616 (em 5 de outubro de 2015), em sede de repercussão geral, definiu que o ingresso forçado em domicílios sem mandado judicial apenas se revela legítimo, em qualquer período do dia (inclusive durante a noite), quando tiver suporte em razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto e que indiquem estar ocorrendo situação de flagrante delito no interior da residência, sob pena de responsabilidade peal, cível e disciplinar do agente ou da autoridade, além da nulidade dos atos praticados[4].
3. Conclusão
Portanto, não se pode negar a importância no controle da atividade probatória estatal, consoante o disposto no art. 5º, XI da CRFB/88 que consagra a garantia da Inviolabilidade do domicílio, uma vez que a sua violação acarreta na nulidade das provas colhidas, por se considerarem ilícitas.
4. Referências Bibliográficas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 7ª ed., Coimbra, Edições Almedina, 2008.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal; São Paulo, RT, 2002.
KLOEPFER, Michael. Verfassungsrecht II. Band I, München: C.H. Beck, 2011, p. 377 apud SARLET, Ingo Wolfgang; NETO, Jayme Weingartner Neto. A Inviolabilidade do Domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, julho/dezembro de 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal/ Guilherme de Souza Nucci. – 10. Ed. Rev., atual. E ampli. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais 2013.
[1] Art. 246. Aplicar-se-á também o disposto no artigo anterior, quando se tiver de proceder a busca em compartimento habitado ou em aposento ocupado de habitação coletiva ou em compartimento não aberto ao público, onde alguém exercer profissão ou atividade.
[2] Art. 243. O mandado de busca deverá:
I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;
II - mencionar o motivo e os fins da diligência;
[3] Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
[4] Decisão do STF sobre violação do domicílio indica posição prudencial - Por Ingo Wolfgang Sarlet - Revista Consultor Jurídico, 13 de novembro de 2015.
Técnico Superior Jurídico da Defensoria Púlica do Estado do Rio de Janeiro. Graduação em Direito na UERJ. Pós Graduação em Direito Administrativo na UCAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BLANCO, Thais Cristina Muniz. Limitações Constitucionais à Atuação Probatória do Estado : A Inviolabilidade do Domicílio. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 ago 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50609/limitacoes-constitucionais-a-atuacao-probatoria-do-estado-a-inviolabilidade-do-domicilio. Acesso em: 23 dez 2024.
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