RESUMO: O presente artigo visa analisar a possibilidade de inversão dos atos instrutórios no procedimento infracional - apesar da inexistência de alteração legislativa na lei 8.069/90 - com base na mudança realizada no Código de Processo Penal em 2008, a qual privilegiou o interrogatório como meio de defesa, tendo como parâmetro a aplicação analógica da ratio decidendi do HC nº 127900/AM julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal e as normativas nacionais e internacionais que vedam tratamento mais gravoso ao adolescente do que ao adulto, inclusive no âmbito processual.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A inspiração Antidemocrática da Redação Originária do CPP e sua Releitura nos Arts. 184 e 186 do Estatuto da Criança e do Adolescente; 3. Da Aplicação Analógica do Entendimento Proferido pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 127900 - A Exigência de Realização do Interrogatório do Réu ao Final da Instrução Criminal no Processo Penal Militar; 4. Da Incidência Normativa das Diretrizes de Riad, das Regras de Beijing e da Lei 12. 594/12 (Sinase); 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A Lei n. 11.719/08 alterou uma série de dispositivos do Código de Processo Penal. Dentre as alterações, houve a modificação da ordem dos atos da instrução no procedimento comum; o interrogatório, que até então era o primeiro ato da instrução, passou a ser o último. A referida alteração faz parte de um esforço visando a democratização da legislação processual penal vigente e, quanto ao interrogatório, pretendeu consagrá-lo como meio de defesa do acusado, alocando-o em momento que privilegie e fortaleça o exercício do referido direito. No procedimento infracional, contudo, a audiência de apresentação – ato análogo ao interrogatório - é o primeiro ato de instrução. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a tratar da possibilidade de inversão dos atos do procedimento infracional por analogia das regras do processo penal alteradas pela Lei 11.719/08.
2. A INSPIRAÇÃO ANTIDEMOCRÁTICA DA REDAÇÃO ORIGINÁRIA DO CPP E SUA RELEITURA NOS ARTS. 184 E 186 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Como dito antes, a Lei n. 11.719 de de 20 de junho de 2008 alterou uma série de dispositivos do Código de Processo Penal (CPP), relativos à suspensão do processo, emendatio libeli, mutatio libeli e aos procedimentos. Dentre as alterações feitas, especificamente quanto aos procedimentos, houve a alteração da ordem dos atos da instrução processual; o interrogatório, que até então era o primeiro ato da instrução no procedimento comum, foi deslocado para o final, passando a ser o último ato.
A reforma operada pela Lei n. 11.719/08 se insere no esforço legislativo que vem sendo empreendido no sentido de democratizar o processo penal, já que o CPP vigente, decretado em 1941, tem matriz reconhecidamente fascista e, portanto, autoritária. Essa inspiração fascista e autoritária fica bastante clara para qualquer um que se preste à leitura da exposição de motivos do CPP, a qual faz menção expressa ao Código de Processo Penal Italiano de 1930 cujo arquiteto foi Alfredo Rocco, Ministro da Justiça de Mussolini entre 1925 e 1932.
Nesse contexto, a lógica que informou a redação originária do CPP era a de conceber o interrogatório do acusado como um meio de prova, bastante útil na cruzada pela verdade real. A mencionada alteração legislativa, a seu turno, buscando reconhecer o interrogatório como um meio de defesa do acusado, transferiu o mencionado ato para momento processual em que sua realização fortalece o exercício direito de defesa: o final da instrução da audiência de instrução, quando o acusado tem melhores condições de se posicionar estrategicamente.
No procedimento infracional, contudo, a audiência de apresentação – ato análogo ao interrogatório - é o primeiro ato de instrução processual. Nos termos do art. 184 da Lei n. 8.069/90, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “Oferecida da representação, a autoridade judiciaria designará audiência de apresentação do adolescente (...)”, para a qual o adolescente e seus pais ou responsável serão notificados a comparecer acompanhados por advogado (§1º do art. 184 do ECA) e, conforme o art. 186 do referido diploma legal, “Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado”.
Isso significa que o ECA, a despeito de ter sido legislativamente produzido em momento político bastante diverso daquele que originou o CPP (já nos anos 1990, em período de consolidação do regime democrático), é informado em alguns aspectos pontuais, porém de extrema importância, pela mesma lógica, como no caso da audiência de apresentação que não permite o exercício pleno e amplo do direito de defesa.
3. DA APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ENTENDIMENTO PROFERIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HC nº 127900 - A EXIGÊNCIA DE REALIZAÇÃO DO INTERROGATÓRIO DO RÉU AO FINAL DA INSTRUÇÃO CRIMINAL NO PROCESSO PENAL MILITAR
Em 3 de março de 2016, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que se aplica ao processo penal militar a exigência de realização do interrogatório do réu ao final da instrução criminal, conforme previsto no artigo 400 do Código de Processo Penal (CPP), com intuito de aferir máxima efetividade aos princípios fundamentais do contraditório e da ampla defesa:
“Habeas corpus. Penal e processual penal militar. Posse de substância entorpecente em local sujeito à administração militar (CPM, art. 290). Crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar. Competência da Justiça Castrense configurada (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). Pacientes que não integram mais as fileiras das Forças Armadas. Irrelevância para fins de fixação da competência. Interrogatório. Realização ao final da instrução (art. 400, CPP). Obrigatoriedade. Aplicação às ações penais em trâmite na Justiça Militar dessa alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes. Adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988. Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.” (STF – Habeas Corpus nº 127.900/AM, Plenário, Min. Rel. Dias Toffoli, j. 3/3/2016)(grifei).
Observa-se que não há fundamento jurídico para não aplicação das razões do referido julgado ao procedimento de apuração de ato infracional, uma vez que se a máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa se aplica ao processo castrense – de natureza hierárquica –, inegável que deverá incidir de igual modo no âmbito da justiça da infância, uma vez que, conforme expressamente disposto no art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Nesse sentido, Zapata e Frasseto:
“Mesmo que os adolescentes submetam-se a um procedimento de apuração de ato infracional previsto por legislação especial, com regramento próprio, como veremos adiante, fato é que possuem eles direitos ao devido processo legal e todas as garantias que lhe são inerentes”[1].
Ainda que alguns advoguem a licitude do interrogatório do adolescente como primeiro ato da instrução invocando o princípio da especialidade em razão da normativa do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 184, §1º, da Lei 8.069/90), conforme se extrai das razões do julgado acima colacionado, o princípio da especialidade não pode se sobrepor aos princípios constitucionais expressos do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
E nem se argumente que a aplicação de medida socioeducativa é um direito do adolescente para sua “pseudo-ressocialização”. Isso porque em que pese possuir uma dimensão pedagócia, é inegável que as medidas socioeducativas possuem também um viés punitivo.
Na lição de Barbosa “tal como ocorre com as penas, as medidas socioeducativas não configuram um bem em si, gerando restrição de direitos (inclusive liberdade) e tendo, por isso, aplicação excepcional, apenas diante de comprovada autoria e materialidade delitiva”[2].
4. DA INCIDÊNCIA NORMATIVA DAS DIRETRIZES DE RIAD, DAS REGRAS DE BEIJING E DA LEI 12.594/2012 (SINASE)
Em reforço do todo acima exposto, vale ressaltar que item 54 das Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de Riad, no item 54, contempla o princípio da vedação do tratamento mais gravoso ao adolescente do que ao adulto, princípio este também expresso no art. 35, I, da Lei 12. 594/21012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase):
“Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:
I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;”
Da mesma forma, o item 7.1. das Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e Juventude – Regras de Beijing dispõe que:
“7.1 Respeitar-se-ão as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito à confrontação com testemunhas e a interrogá-las e o direito de apelação ante uma autoridade superior.” (grifei).
E ainda, nos itens 14.1 e 14.2:
“14.1 Todo jovem infrator, cujo caso não tenha sido objeto de remissão (de acordo com a regra será apresentado à autoridade competente Juizado, tribunal, junta, conselho etc.), que decidirá de acordo com os princípios de um processo imparcial e justo.
14.2 Os procedimentos favorecerão os interesses do jovem e serão conduzidos numa atmosfera de compreensão, que lhe permita participar e se expressar livremente.” (grifei).
Importa observar que as Diretrizes de Riad e as Regras de Beijing da ONU são incorporadas em nosso ordenamento jurídico como normas, de caráter vinculante, levando-se em conta o disposto na Resolução nº 113, retificada pela Resolução nº 117 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que dispõe no seu art. 4º, III, que são considerados instrumentos normativos de promoção, defesa e controle da efetivação dos direitos humanos das crianças e adolescentes as normas internacionais não convencionais aprovadas como resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas em matéria de infância e juventude.
CONCLUSÃO
O Código de Processo Penal, inspirado em sua origem por um modelo facista, foi modificado pela Lei 11.719/2008 para adequá-lo à realidade democrática advinda com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse compasso, em que pese o ECA ter sido legislativamente produzido em momento político democrático (1990), trouxe em alguns artigos pontuais o ranço da ditadura que permeou a legislação processual anterior, não conferindo ao adolescente o exercício pleno e amplo do direito de defesa.
Contudo, não há fundamento jurídico suficiente que permita afastar a incidência da Lei 11.719/2008 no procedimento de apuração de ato infracional, uma vez que o princípio da especialidade não tem o condão de afastar as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, conforme já decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal no HC 127900/AM, no âmbito da justiça castrense.
Somado a isso, o art. 35, I, da Lei 12. 594/2012 veda tratamento mais gravoso ao adolescente do que ao adulto, seguindo a normativa já disposta no item 54 das Diretrizes de Riad, acrescentando-se que as Regras Mínimas de Beijing para Administração da Justiça da Infância impõem a aplicação de todas as regras processuais básicas para higidez do procedimento de apuração de ao infracional, além do favorecimento do interesse do jovem em conflito com lei.
Frisa-se que as resoluções não convencionais da ONU em matéria de direitos humanos de crianças e adolescentes são internalizadas como instrumentos normativos e portanto vinculantes, como expressa disposição da Resolução nº 113, retificada pela Resolução nº 117 do Conanda.
Dessa forma, conclui-se que os reflexos da Lei Processual Penal nº 11.719/2008 atingem o procedimento de apuração de ato infracional, devendo a Justiça da Infância primar pela observância das garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, com a inversão do interrogatório do adolescente para o último ato do processo, sem prejuízo, por óbvio, da concessão de remissão, sob pena de nulidade do ato e de ofensa à Constituição Federal, à Lei 12. 594/2012, às Diretrizes de Riad e as Regras de Beijing da ONU.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] ZAPATA, Fabiana Botelho; FRASSETO, Flávio Américo. Coleção Defensoria Pública Ponto a Ponto. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 91.
[2] BARBOSA, Danielle Rinaldi. Desafios da atuação do Defensor Público da Infância e Juventude: Divergência de Discursos entre a Teoria e Prática na Seara Infracional. In Temas Aprofundados Defensoria Pública Volume 2. Organizadores: Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré e Gustavo Augusto Soares dos Reis. Salvador:Juspodium, 2014, p. 913.
Assistente Judiciário de Magistrado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, formado pela Universidade Metropolitana de Santos, pós-graduando em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Magistratura - EPM, aprovado no IV Concurso Público para o cargo de Defensor Público do Estado do Espírito Santo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Renato Martins de. A inversão dos atos instrutórios no procedimento infracional: reflexos da Lei n. 11.719/08 no processo infracional e a plicação analógica da ratio decidendi do plenário do Supremo Tribunal Federal no HC nº 127900/am Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 ago 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50635/a-inversao-dos-atos-instrutorios-no-procedimento-infracional-reflexos-da-lei-n-11-719-08-no-processo-infracional-e-a-plicacao-analogica-da-ratio-decidendi-do-plenario-do-supremo-tribunal-federal-no-hc-no-127900-am. Acesso em: 23 dez 2024.
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