RESUMO: O presente trabalho discorre sobre as questões conflituosas relativas à seguridade LGBTI, bem como pondera as demandas referentes às medidas punitivas e as suas respectivas eficiências, haja vista a inobservância da constituição cultural do comportamento de aversão e recusa, presentes em larga escala na sociedade brasileira, direcionado à comunidade LGBTI. É também objetivo do trabalho a constituição teórica de um microssistema de proteção com características especiais, o qual reconhece a especificidade da comunidade LGBTI, bem como a sua posição social desfavorável, e propõe soluções também específicas. Por fim, o trabalho propõe a comparação de tal microssistema de proteção com um outro microssistema já criado: a Lei 11.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria Da Penha.
Palavras-chave: Medidas protetivas; Antropologia; LGBTI; Maria Da Penha.
1. INTRODUÇÃO
Muito se discute, nos dias atuais, sobre a necessidade de uma participação do Estado, através do Direito Penal, a fim de reprimir as constantes situações de violência contra a comunidade LGBTI. Pouco se pondera, todavia, sobre o melhor método e a real eficiência de tal interferência. Conforme a afirmação de Claus Roxin (2006, p.05), “a discriminação social pode ser pior que a estatal” e, seguindo o padrão social, é fácil deduzir que uma interferência social, destinada à proteção dos direitos materiais da segurança LGBTI, é deveras mais eficiente que uma intervenção estatal, quiçá penal.
É constantemente repetida a afirmação inverossímil de que o princípio da isonomia é, não apenas respeitado, como considerado pétreo no sistema constitucional vigente, contudo, parte do princípio do estudo o fomento de um diálogo entre o Direito e a Antropologia, a fim de desenvolver, de forma interdisciplinar, ideias cujo objetivo é a diminuição de conflitos. É importante ressaltar a ineficácia de um resultado puramente jurídico, sendo imprescindível a conexão entre o Direito e muitos outros pontos, sob os mais variados aspectos. Faz-se necessário também o estudo da construção social do “corpo como realidade sexuada e como depositório de princípios de visão e divisão sexualizantes”[1] e do funcionamento da ordem social “como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina[2] sobre a qual se alicerça” (BOURDIEU, 2010, p.18), pois todo o estudo referente ao grupo LGBTI está situado entre o corpo e o Estado, os quais são de extrema importância para a construção de uma teoria que verse sobre este grupo socialmente vulnerável.
O fundamento da perpetuação das citadas máquinas simbólicas de dominação é estabelecido através da ideologia da dissimulação do intelecto – destacando-se a perpetuação das formas intolerantes, tanto práticas quanto teóricas, da degeneração do diferente –, constituindo uma ideologia que, de forma brusca e agressiva, dilacera o outro ou a outra, afinal
esta [ideologia] é o meio de conservação dos indivíduos mais fracos e menos robustos, na medida em que lhes é impossível enfrentar uma luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais carnívoros (NIETZSCHE, 2001, p. 08).
Pode-se fomentar, portanto, um projeto de teoria para o porquê da existência da violência explícita propagada contra a comunidade LGBTI. Embora inegável o fato de haver mortes, lesões corporais, predominantemente graves e gravíssimas, injúrias e outras ameaças de natureza objetiva aos bens jurídicos LGBTI, constituiria aberração epistemológica acreditar que tais atitudes seriam instantaneamente resolvidas com mera incisão penal nesse corpo de cultura de aversão e ojeriza diariamente posta contra o grupo LGBTI. Fazendo a tão repetida analogia do iceberg, pode-se dizer que a violência física é apenas a ponta, enquanto toda as outras formas de violência, as quais constituem a maior parte da estrutura do iceberg, são violências culturais, violências do cotidiano, ou seja,
violência simbólica, violência suave, insensível [,na maioria das vezes,] a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2010, p. 07).
Essa violência específica, diferentemente da violência objetiva, a qual tende a variar de acordo com outras incógnitas, v. g. a personalidade, meio em que o agente está inserido et cetera, é transmitida de forma particular, pois é construída a partir de um algoritmo que tende à verdade absoluta – ainda que esta seja rigidamente criticada – ou até mesmo aos conceitos que são provenientes da “atribuição humana arbitrária, convencionados histórica e socialmente por grupos de poder”, fazendo com que “os enunciados, ao repetirem-se à exaustão, consolidem-se no tempo, neutralizando-se e tornando-se inquestionáveis (AGRA, 2013, p. 88)”. Portanto, a cultura de recusa LGBTI se transforma em violência e, de forma inquestionável, consolida-se no tempo.
Como se não bastasse a camuflagem da violência, a cultura brasileira de rejeição LGBTI tem a sua transmissão feita de forma equivalente à transmissão da cultura essencial, ou seja, pode ser classificada como códigos dados previamente e não escolhidos livremente por cada um (TODOROV, 2010, p.68-69), os quais assombram, há várias gerações, aqueles que não se encaixam na hegemonia heteronormativa – as pessoas são orientadas em casa a, primeiramente, achar estranho e, nos casos mais extremos, incentivadas a “corrigir” qualquer violação da heteronormatividade[3] –, cuja efígie é o “homem varão heterossexual futuro pai de família, temente a deus, monogâmico e bem-sucedido financeiramente” (LÉON, 2007, p. 86), o qual acredita que o “padrão homem-mulher é natural e divino. Quaisquer formas de corrompê-lo, subvertê-lo, diz respeito a uma ação demoníaca de cunho pervertido (Idem, p. 95)”.
Tal litígio cultural se apropria, sucessivamente, das instituições mais notórias, começando pela família, pois “poucas famílias dão conta de administrar os conflitos que surgem quando um de seus membros esboça uma orientação sexual e de gênero divergente das estabelecidas pelos ditames da heterossexualidade compulsória (AGNOLETI; MELO NETO, 2009, p. 04)” e perpassando, de forma incoerente, tal pensamento familiar ao Estado, mesmo quando há a plena convicção que “o Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas (HOLANDA, 1995, p. 141)”. CANOTILHO, em instigante afirmação, disse que “o direito, se quiser ser direito, tem que permanecer em diálogo com os problemas mais difíceis da filosofia prática (2010, p. 34)”, portanto, para resolver tal impasse e mitigar a ação do Estado, que “por meio de seus agentes, macula, diariamente, preceitos constitucionais tão caros à consecução de um Estado Democrático de Direito (KOLODY; ROSA; LUIZ, 2011, p. 35)”, é necessário exigir do poder público uma solução prática e eficiente, para que não se lute por um montante de letra morta, ou seja, para que não se lute por mudanças que nunca irão se efetivar.
O referencial de progresso, quando tratamos do jus puniendi é extremamente relativo, pois requer o ônus da observância da totalidade. De acordo com um provérbio alemão, “as árvores impedem de ver a floresta, ou a demasiada concentração nos detalhes de uma especificidade rouba a vista geral do todo e apaga o sentimento da unidade scientífica (sic) (BARRETO, 2004, p. 07)”, portanto, mesmo que o tempo esteja contra a comunidade LGBTI e seus bens jurídicos primordiais estejam sendo incessantemente lesionados, é necessária a observância da situação como um todo e a concentração do enfoque em uma árvore específica pode ser bastante perigosa.
Por se tratar de um caso de urgência, as mudanças são requeridas visando o ideal de um falso progresso, o qual segue o padrão brasileiro da utilização de métodos paliativos e momentâneos.
Nem sempre é fácil separar […] a nostalgia pelo passado da projeção para o futuro, a reprodução do antigo da formulação do novo, até porque a história, independente do que pensam seus atores–expectadores avança não em vias retas, mas em serpentina, como na subida das estradas, onde para avançar é preciso, em certos trechos, caminhar em sentido oposto (BOBBIO, 1995, p.20).
Essa retomada, a fim de progredir, é, portanto, essencial para que percebamos: (I) a origem do paradigma que pretendemos desconstruir, (II) o respectivo funcionamento e (III) a melhor forma de interferência. É necessária a observação da floresta de forma ampla para que as árvores, ou seja, os pequenos detalhes, não roubem a unificação das demandas, a qual é escassa ou quase inexistente.
A comunidade LGBTI, quando busca a criação de uma tipificação penal, desconsidera que “ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal (FOULCAULT, 1987, p.24)”, fazendo com que um problema que qualquer pessoa LGBTI encontrará, caso precise de uma intervenção do Estado em seu litígio, ganhe uma proporção bem maior, se for comparado ao mesmo problema enfrentado por uma pessoa heterossexual e/ou cis. O sistema penal brasileiro cheira a incenso (BARRETO, 2004, p.9) e o Estado, agindo ou omitindo, sempre pende a balança em favor da permanência da sexualidade considerada normal de acordo com o padrão cristão. Para a resolução dos conflitos, faz-se mister a observância, conforme salienta Foulcault, do desenvolvimento da ação processual e até mesmo da execução penal, sendo elas, a depender da perspectiva, mais importantes que a própria constituição ou qualificação do crime.
É inegável o fato de que o dia a dia de cada pessoa incluída na comunidade LGBTI pode ser considerado uma batalha, a qual se trava contra a família, contra a escola, contra o Estado ou, inclusive, contra a própria mente. Contudo, podemos perceber, por se tratar de uma questão cultural e, principalmente, por se tratar de uma cultura de fácil reprodução, que dificilmente uma medida simples de proteção solucionará tal litígio. É impossível crer que a criação de um tipo penal novo ou a qualificação de um já existente seja capaz de combater a intolerância e o preconceito que, há muito, estão enraizados na sociedade.
Eis, portanto, os principais erros relacionados às medidas contra a violência LGBTI: primeiramente, é impossível a criação de um tipo penal para a homofobia, pois, tomando como exemplo a teoria roxiniana da imputação objetiva, só deve existir uma tipificação proibitiva de uma conduta que crie um risco juridicamente desaprovado, logo, facilmente se deduz que, v. g., o Estado deve coibir o ato de matar alguém, mas é incoerente a criação de um tipo exclusivo às pessoas LGBTI que são mortas. Destarte, vale salientar que não existe uma lógica jurídica que permita a criação de um novo tipo penal para os casos que presenciamos, pois a tipicidade lida diretamente com o bem jurídico tutelado. Nos casos de violência, seja contra alguma pessoa LGBTI ou contra outra pessoa de diferente orientação sexual e/ou de gênero, a tipicidade assume uma característica conglobante, a fim de manter uma isonomia na seguridade do bem jurídico de forma geral – isolando e punindo as condutas que se opõem a norma jurídica, levando em consideração a relevância para o Direito.
Pode-se dizer, por conseguinte, que é um erro afirmar que “a homofobia é crime”, pois, embora a homofobia atue, muitas vezes, como suporte ideológico para a realização de uma conduta, o crime – isolado de forma epistemológica – não é a homofobia, mas sim o homicídio, o latrocínio, a lesão corporal, a injúria, a difamação et cetera. Surge como outra alternativa a qualificação do crime realizado por motivação homofóbica, bem como a equiparação ao crime de racismo, considerado hediondo. Estas são as demandas mais coerentes por parte dos grupos LGBTI, pois resolve o dilema teórico supracitado: o crime permanece o mesmo, mas é acrescentada, caso seja realizado por motivos de homofobia, uma condição qualificadora da conduta. Ainda que tal alternativa soe como um ditirambo, sozinha, não é suficiente para resguardar a segurança da comunidade LGBTI.
Como exemplo da ineficiência de uma mudança penal solitária, é possível citar o próprio crime de racismo, pois a discriminação racial é repudiada constitucionalmente[4], mas há uma grande diferença entre um direito constitucionalmente garantido e uma realidade correspondente, gerando um “mito que funciona como instrumento de dominação que tanto mais prospera quanto mais seja acreditado (ASSIS; KÜMPEL, 2011, p.42)”. O comportamento homofóbico, ainda que não seja igualmente penalizado, se assemelha ao comportamento racista em relação à dissimulação de sua ideologia de dominação, a qual levou
o Ocidente se colocar como superior ao Oriente, do mesmo modo que o branco sobre o negro, o homem sobre a mulher (e o gay),o erudito sobre o popular, etc. Assim, a ideologia [da dominação] é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação real, fazendo com que esta situação não seja percebida como tal pelos dominados. Em outras palavras, a ideologia [da dominação] é o processo pelo qual as ideias das classes e dos grupos dominantes se tornam ideias de todas as classes e grupos sociais, isto é, tornam-se ideias dominantes (REIS, 2010, p.73).
Portanto, se nem mesmo um repúdio constitucionalmente estabelecido faz com que seja extinta a ideologia de dominação racial, ? que, embora não se perpetue de forma tão explícita como em outros tempos, ganha novas facetas para permitir a continuidade do racismo na sociedade que acredita que o mesmo foi extinto ? de nada adiantaria a qualificação de um crime realizado por motivo de homofobia, pois, ainda que a ação penalmente reprovável do autor seja diretamente homofóbica, a dissimulação da ideologia de dominação fará com que ações penalmente aceitáveis, mesmo que sejam socialmente ignóbeis, criem uma perpetuação indireta da cultura homofóbica. A “sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, sejam eles fundamentados na desigualdade do exercício de poder ou simplesmente na desigualdade (DIAS, 2007, p. 15)”, portanto, é em vão crer que a mera qualificação de um crime de homicídio garantirá que um crime de homicídio praticado contra uma lésbica, por exemplo, seja, de fato, qualificado.
A cultura essencialmente heteronormativa, combinada com a ideologia de dominação, está inserida em todos e todas, em todo e qualquer nível ou função social, sendo poucos aqueles que conseguem romper com o tal padrão[5]. Desde o pai que expulsa o filho gay de casa, passando pelo delegado que não “acredita” que a homofobia foi o motivo do crime, bem como pelo promotor que deixa de argumentar a existência da condição qualificadora e finalizando com o juiz que julga improcedente tal qualificação do crime como homofóbico, é possível enxergar várias possíveis falhas que anulariam a especificidade da qualificação do crime por motivos de homofobia.
É necessário, então, um devido cuidado antes de exigir do Estado uma medida protetiva, pois, conforme foi anteriormente falado, corre-se o risco da inviabilidade ou da ineficiência. Os grupos de militância LGBTI focam no Código Penal, mas deixam de lado a possibilidade da impotência que uma alteração singular do diploma penal poderá sofrer em face do desdobramento de culturas e ideologias atuando em sentido oposto. Mudar, isoladamente, o Código Penal não soluciona os planos que abordam a parte preventiva e assistencial do conflito em questão e, conforme os casos hipotéticos supracitados, há a possibilidade de tal mudança ser insuficiente também no plano repressivo.
BOBBIO (1995, p.25), fazendo alusão aos sistemas econômicos, disse que “um ‘ismo’ não pode ser corrigido ou revisto senão através da contraposição de outro ‘ismo’” e esta lógica pode, perfeitamente, ser aplicada aos “sistemas” culturais. Só é possível controverter a cultura de recusa LGBTI por meio de uma cultura de aceitação. Estar inserido ou inserida na comunidade LGBTI é, portanto, estar inserido em um paradigma que é constantemente combatido e estigmatizado pelos grupos sociais majoritários, com exemplo no fato de se “tolerar ou até mesmo simpatizar com o grupo estigmatizado, considerando, no entanto, inaceitável qualquer política de igualdade que o beneficie (BORRILLO, 2009, p.19)”.
O principal dilema da seguridade LGBTI não é, simplesmente, a criação, ou qualificação, de medidas punitivas, mas sim uma efetivação de tais medidas no âmbito social, haja vista a natureza do problema também ser social. Faz-se necessária uma ação que aborde o plano repressivo, mas que também não se esqueça do plano preventivo e assistencial; uma ação que não se preocupe apenas em punir, mas que tenha também como escopo educar e proteger.
A efetivação da seguridade LGBTI só acontecerá quando a cultura de recusa for extinta, contudo, de acordo com a urgência dos movimentos, não é possível fazer com que cada LGBTI, agredido ou agredida diariamente, espere que as atuações socioeducativas e de caráter pedagógico gerem efeitos práticos – podendo-se citar, por exemplo, a mora excessiva em relação ao plano educacional, ainda que este seja, todavia, indispensável. A solução mais eficiente será, então, aquela que resolva, de um lado, a urgência protetiva e, de outro, a carência educacional, solução a qual possa atuar de forma dicotômica, constituindo, portanto, mais um sistema do que uma ação isolada.
Conforme o desenvolvimento deste trabalho vem mostrando, é impreterível que o arcabouço legislativo destinado à seguridade LGBTI seja hábil e preciso, impossibilitando que a cultura de rejeição se insira no ambiente jurídico e resulte em uma falha na aplicabilidade das medidas punitivas. Em outras palavras, não basta uma tipificação, qualificação de um crime, mas faz-se mister a criação de um sistema de proteção que postule as mais diversas ficções legislativas, tal como representa, por exemplo, a Lei 11.340/2006.
A lei supracitada, conhecida principalmente como Lei Maria da Penha, pode ser considerada um dos primeiros exemplos de solução criada pelo Direito para problemas culturais relacionados à violência doméstica, pois observou a raiz cultural de tais problemas. O legislador percebeu a insuficiência de agravar e qualificar as penas, haja vista o fato de que, mesmo sendo uma medida punitiva equitativa, com a qual o Estado protege as relações no âmbito doméstico, todo o peso cultural estava posto contra a mulher, portanto, investiu-se não apenas em “remendos” penais, mas na criação de um “microssistema visando coibir a violência doméstica (DIAS, 2007, p. 20)”.
É essencial, para a criação de um sistema de proteção da segurança LGBTI, coibir ações, indiretamente estatais, semelhantes às que aconteciam com as mulheres, nas mais variadas instâncias. O mesmo peso cultural que pendia sobre elas se encontra, atualmente, sobre a comunidade LGBTI, comunidade a qual é ignorada não explicitamente pelo Estado, mas pelos administradores e administradoras de suas ações. Portanto, é primordial a utilização da Lei Maria da Penha como uma referência para um paradigma protetivo que, de acordo com as suas peculiaridades, efetive a seguridade de cada LGBTI que resida no território nacional.
Tomada como referência protetiva, a Lei Maria Da Penha pode nortear um arcabouço legislativo destinado a qualquer outro grupo socialmente vulnerável, v. g., a comunidade LGBTI. Juridicamente falando, um microssistema de proteção pode ser interpretado como um estatuto, mas, através de uma característica teorética, é preferível a interpretação sistemática, pois um sistema, em sua finalidade, visa a própria estabilidade, a qual, em face da grande quantidade de conflitos, é a característica mais indispensável que um sistema de proteção pode ter.
Embora o objetivo principal do estudo não seja o detalhamento da Lei Maria Da Penha a fim de encontrar os impactos gerados nas outras searas normativas, em função da contingência de trabalhos que já trabalharam este tema, vale, todavia, destacar alguns pontos que são, filosoficamente, mais importantes, como, por exemplo, o exposto no décimo artigo e seu respectivo parágrafo único: eis um exemplo da abstração normativa sobre os conflitos sociais entre os grupos vulneráveis e a administração estatal. Diz o artigo que:
Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida.
De forma bastante prática, a Lei 11.340/2006 obriga a autoridade policial a cumprir as medidas protetivas. Pode-se dizer, analisando através de uma perspectiva jurídica, que tal artigo é redundante, pois não é necessária a criação de uma lei para que a autoridade policial realize seu trabalho, entretanto, de uma perspectiva social, como o peso está posto contra o grupo mais vulnerável, a autoridade policial necessita ser, ainda que de forma redundante, orientada a agir conforme a lei e não conforme as vontades ou valores de seus agentes, orientação a qual apresenta uma relevância que se aplica tanto à proteção das mulheres quanto à proteção de qualquer grupo socialmente vulnerável.
O microssistema protetivo destinado à comunidade LGBTI, portanto, deve considerar as características sociais de recusa e ser tão específico quanto a Lei Maria Da Penha, ou ainda mais específico – levando em consideração a maior segmentação que o grupo LGBTI apresenta, como, por exemplo, as lésbicas, os gays, as travestis, os bissexuais et cetera –, a fim de garantir a criação de um sistema eficiente que não seja moldado e nem maculado pela atuação dos agentes estatais.
Pode-se concluir a fundamentação da criação de um sistema de proteção LGBTI baseado na Lei 11.340/2006 a partir da análise e comparação dos seguintes aspectos: no sistema de proteção LGBTI o status de homofobia deve ser comparado ao status da violência doméstica, de modo que a homofobia possa definir o “cenário” dos atos antijurídicos praticados, tal como acontece nos casos de violência doméstica; o sistema de proteção LGBTI, analogamente, deve proibir as penas pecuniárias e permitir a decretação de prisões preventivas quando houver risco à integridade física ou psicológica de quem dele necessite, bem como deve incentivar a criação de juizados especiais destinados à violência LGBTI.
A Lei Maria Da Penha é caracterizada como um microssistema porque também aborda os planos educacionais e preventivos, portanto, o microssistema de proteção LGBTI deve, impreterivelmente, desenvolver trabalhos multidisciplinares de orientação e prevenção para que a assistência seja imediata, nos casos de violência, e também cultural, a fim de combater a recusa através de várias formas de abordagem.
A criação de um sistema de proteção não é uma tarefa fácil e a salvaguarda de bens jurídicos, em suas idas e vindas, é uma questão tão problemática quanto a constituição do próprio Estado. De uma forma pragmática, quando falamos em proteção dos vulneráveis, é possível estabelecer a dicotomia na qual há o grupo que quer ser protegido e o grupo que não quer ceder a proteção que detém, portanto, o litígio é inevitável.
Com a comunidade LGBTI, todavia, a criação de um sistema protetivo se torna ainda mais complexa, em função da presença de dilemas que, de forma interdisciplinar, orientam a sociedade a definir opiniões e julgamentos, ainda que estejam impregnados de teorias degenerativas as quais se opõem à evolução e ao desenvolvimento do Estado. Esta é uma situação semelhante à situação das mulheres antes da Lei Maria Da Penha, pois, com relação aos casos de violência doméstica, o fator cultural apresentava uma propriedade que prejudicava a isonomia do tratamento jurídico que elas recebiam. A alternativa para tal situação foi a criação de um microssistema que, de forma completa, sanasse a lesão que os bens jurídicos das mulheres sofriam e modificasse a cultura de violência que pendia contra elas.
A situação do grupo LGBTI é semelhante e, portanto, requer uma solução análoga, ou seja, a criação de um mesmo microssistema que impeça as manobras culturais que permitem a propagação da homofobia tanto no âmbito social quanto no âmbito administrativo/jurídico. Ainda que, sozinha, não apresente um risco juridicamente punível, a homofobia é um combustível cultural que pode inflamar ações, isoladas ou conjuntas, capazes de macular os bens jurídicos mais importantes da comunidade LGBTI. A homofobia, então, deve ser tratada como fobia – e não como crime –, fobia a qual caracteriza uma especificidade do ato ilícito, que deve ser punido com medidas também específicas.
As medidas protetivas abordadas por um microssistema de proteção LGBTI devem ser amplas e funcionais, as quais devem trabalhar os planos preventivos, repressivos e assistenciais. A repressão da violência LGBTI deve ser realizada através dos vários instrumentos que a sociedade dispõe, de modo que os atos antijurídicos sejam punidos e, simultaneamente, a cultura seja modificada; as pessoas devem ser educadas não apenas a preservar a segurança LGBTI, mas a reconhecer e respeitar a diversidade na qual a humanidade se encontra.
REFERÊNCIAS
AGNOLETI, Michele; MELO NETO, José Baptista de. Trabalho e emprego para as travestis: do estigma à realização pessoal e profissional. In: Anais do 5º Encontro anual da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação. Belém: ANDHEP, 2009b.
AGRA, Giscard Farias. O mito do direito romano: em busca de um discurso fundador para o direito brasileiro. In: [Anais do] V Congresso Brasileiro de História do direito: as formas de direito, ordem, razão, decisão: experiências jurídicas antes e depois da modernidade. FONSECA, Luís Fernando Lopes Pereira; FURMANN, Ivan (Org.). Curitiba: IBHD, 2013.
ASSIS, Olney Queiroz; KÜMPEL, Vítor Frederico. Manual de Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2011.
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
BRASIL. Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 20 de outubro de 2015.
BORRILLO, Daniel. A homofobia. In: Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Débora (Org.). Brasília: Letras Livres : EdUnB, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil, 2010.
CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito dos pobres no activismo judiciário. In: CANOTILHO, J. J. Gomes. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KOLODY, Andressa; ROSA, Carla Buhrer Salles; LUIZ, Danuta S. C.. Relações entre Estado e sociedade civil: Reflexões sobre perspectivas democráticas. AURORA, São Paulo, v. 5, n.8, p. 34-48, Agosto, 2011.
LEÓN, Adriano de. "E fez Deus homem e mulher e viu que era bom!": o discurso fundamentalista cristão e a segregação das subjetividades masculinas. In: MACHADO, Charlinton José dos Santos; NUNES, Maria Lúcia da Silva (org.). Gênero e sexualidade: perspectivas em debate. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.
NIETZSCHE, F. W.. Verdade e mentira no sentido extramoral. In: Revista Comum, Rio de Janeiro, v. 6, n. 17, p. 05-23, Jul./Dez. 2001.
REIS, Cláudio. Apontamentos sobre a relação entre a antropologia e o direito. Videre, Dourados, MS, ano 2, n. 3, p. 65-82, Jan./Jun. 2010.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.
[1] O corpo, por si só, é um depositório de princípios de visão sexualizante, como disse Bourdieu; entretanto, quando nos referimos ao corpo de um homossexual ou de uma transexual, por exemplo, devemos considerar que a sociedade, além da divisão sexualizante, aplica, nas entrelinhas, a divisão jurídica, portanto, a realidade jurídica, fundamentada e constituída através do corpo, deve ser bastante específica, evitando, portanto, o risco de exclusão criado através da generalização.
[2] Vale salientar que a dominação ratificada pela máquina simbólica da ordem social não é apenas masculina, mas dominante em relação ao outro, haja vista o fato de “o homossexual, assim como o negro, o judeu ou o estrangeiro, [ser] sempre o outro, o diferente, aquele com o qual qualquer identificação é impensável (BORRILLO, 2009, p.15)”.
[3] A ideia, ou até mesmo a cultura, de correção não se restringe à divergência da heteronormatividade, pois, de forma análoga, é transmitida, em algumas famílias, a cultura da correção de gênero, a cultura da correção religiosa et cetera.
[4] Artigo 3º, IV; Artigo 4º, VIII; Artigo 5º, XLII – CF/1988.
[5] “Romper com padrão heteronormativo” não significa romper com a heterossexualidade, mas sim romper tanto com a existência de uma verdade absoluta heterossexual quanto com a discriminação e segregação daqueles que desconsideram a heterossexualidade como tal verdade absoluta.
Universidade Federal da Paraíba. Graduando em Direito.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Victor Alexandre Costa de Holanda. A cultura de aversão e a criação de um microssistema de proteção LGBTI fundamentado na lei 11.340/06 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50659/a-cultura-de-aversao-e-a-criacao-de-um-microssistema-de-protecao-lgbti-fundamentado-na-lei-11-340-06. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.