RESUMO: O presente artigo desenvolve um breve estudo sobre a prescrição aquisitiva ou usucapião indígena, partindo de pesquisas teóricas, calcadas na lei, na doutrina e na jurisprudência brasileira. Inicialmente, faz breves apontamentos sobre o instituto da usucapião, traçando as principais características do instituto, para, então, abordar a questão do direito do índio à terra, seus desafios históricos e conquistas no Brasil, com ênfase para a tutela protetiva consolidada a partir da Constituição Federal de 1988. Após consolidar diretrizes teóricas, trata do tema da usucapião indígena, ressaltando a sua importância e papel na preservação da cultura e tradições do povo autóctone brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de propriedade. Direito à terra. Usucapião indígena.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A usucapião como forma de aquisição da propriedade imóvel; 2. O ordenamento jurídico brasileiro e a questão das terras indígenas: da Carta Régia de 1611 à Constituição Federal de 1988; 3. Da usucapião indígena; 3.1. Linhas gerais acerca do instituto; 3.2. Posse ad usucapionem; 3.3. Usucapião indígena e demarcação de terras indígenas: a natureza da posse como principal distinção entre os institutos; 3.4. Relevância do instituto; 4. Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Os índios brasileiros constituem grupo profundamente ligado às terras que tradicionalmente ocuparam. Assim, apesar de todas as agressões historicamente sofridas por eles no que tange à ocupação territorial, notabilizaram-se instrumentos protetivos do direito dos grupos indígenas à terra.
Todo este processo ganhou realce com o Estatuto do Índio e com a Constituição Federal de 1988, recebendo destaque o instituto da usucapião indígena, que, em seus contornos e benefícios, será analisado no presente trabalho.
1. A usucapião como forma de aquisição da propriedade imóvel
Elencada pelo Direito Civil dentre os direitos reais, a propriedade ostenta as características peculiares a este grupo: é direito permanente, determinada numerus clausus, possui eficácia erga omnes e envolve necessariamente coisa determinada. Muitas definições há para ela, consistindo, em suma, no direito de usar, gozar e dispor da coisa, além reivindicá-la de quem injustamente a detenha[1].
Por ser o corolário de todo o arcabouço jurídico e social moderno, centrado no sistema capitalista, conta com amplo tratamento normativo e pode ser adquirida por diversas formas, valendo ressaltar, ainda, que, de maneira crescente, tem sido encarada em conformidade aos seus préstimos à sociedade.
Destacam-se várias modalidades aquisitivas, tais quais, no caso da propriedade imóvel, o registro, a acessão, a ocupação e a usucapião, instituto o qual, pautado nos direitos indígenas, será detalhado adiante.
A usucapião ou prescrição aquisitiva reporta-se ao direito romano. No ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves, designa modo originário de aquisição da propriedade e de alguns outros direitos reais[2] suscetíveis de exercício continuado em virtude da posse prolongada no tempo e de certos requisitos exigidos pela lei.
Trata-se de modo originário de aquisição do domínio, pois, a despeito de ser extinto o direito de propriedade do antigo titular, o usucapiente constitui direito à parte, independentemente de qualquer relação jurídica anterior[3].
Pode-se, ainda, perceber na prescrição aquisitiva um incentivo ao real uso da propriedade, conforme já há muito elucidava o notável Lafayette Rodrigues Pereira. Segundo ele, a negligência do antigo proprietário não seria razão determinante da usucapião, instituto, na verdade, direcionado pelo objetivo de efetivar o exercício do direito de propriedade[4].
Referido propósito repousa no princípio da utilidade social, na conveniência e na estabilidade da propriedade, bem como no interesse de se consolidarem as aquisições de domínio e de ser facilitada a sua prova[5]. Afinal, a função social gera deveres ao proprietário e também atribui direitos aos não-proprietários[6]. É nesta perspectiva que devem ser analisados os direitos reais e, no particular, a usucapião, enquanto modo originário de aquisição da propriedade, lecionando Cunha Gonçalves que,
‘’[...]a propriedade, embora seja perpétua, não pode conservar este caráter senão enquanto o proprietário manifestar a sua intenção de manter o seu domínio, exercendo uma permanente atividade sobre a coisa possuída; a sua inação perante a usurpação feita por outrem, durante 10, 20 ou 30 anos, constitui uma aparente e tácita renúncia ao seu direito. De outro lado, à sociedade interessa muito que as terras sejam cultivadas, que as casas sejam habitadas, que os móveis sejam utilizados; mas um indivíduo que, durante largos anos, exerceu esses direitos numa coisa alheia, pelo seu dono deixada ao abandono, é também digno de proteção. Finalmente, a lei faculta ao proprietário esbulhado o exercício da respectiva ação para reaver a sua posse; mas esta ação não pode ser de duração ilimitada, porque a paz social e a tranquilidade das famílias exigem que os litígios cessem, desde que não foram postos em juízo num determinado prazo’’[7]
Observa-se, pois, ser a usucapião modo aquisitivo da propriedade a envolver quatro principais requisitos, o tempo, a posse prolongada e pacífica, o objeto hábil[8] e o animus domini. Há diversas espécies no ordenamento jurídico brasileiro, despontando muitas do próprio Código Civil; de outro lado, a usucapião indígena, objeto do presente estudo, encontra previsão no art.33 da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio).
2. O ordenamento jurídico brasileiro e a questão das terras indígenas: da Carta Régia de 1611 à Constituição Federal de 1988.
São de amplo conhecimento, embora de restrita lembrança e divulgação, os abusos sofridos pelos indígenas brasileiros durante todo o processo de colonização até os dias atuais.
Conflitos decorrentes da ocupação da terra tornaram-se, naturalmente, uma realidade frequente. Desta maneira, expediram-se diversos instrumentos normativos para disciplinar a questão das terras indígenas, dos quais foi precursora a Carta Régia de 10 de setembro de 1611. Seguiram-se, daí, outras leis; somente em 1850, contudo, com o Brasil já independente do reino de Portugal, a promulgação da Lei 601 – a famosa “Lei das Terras do Império” - fez surgir a primeira legislação específica a respeito da distinção entre terras públicas e privadas, reservando para os índios uma parcela de terras ocupadas sem contestação e tidas como devolutas.
A partir da Constituição de 1891, tornou-se impossível considerar devolutas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e, com a Carta Constituinte de 1934, foi consagrado o pleno domínio da União sobre as tais áreas. Restou, desde o referido momento, impossibilitada a invocação, por particulares ou pelos governos locais, do princípio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, do direito de propriedade ou de qualquer outro consagrado no Direito Civil para a desconstituição dos direitos originários dos índios sobre as terras objeto de sua ocupação.
Posteriormente à Constituição de 1937, o Estatuto do Índio, Lei nº 6001/1973, veio como uma das principais legislações a abordar o tema da ocupação de terras por parte das comunidades indígenas, dispondo em seu art.17 quais seriam elas.
A Convenção nº 107 da OIT, em vigor no Brasil desde 20 de julho de 1966, já estabelecia em seu art.11 o direito das populações interessadas de terem a propriedade reconhecida sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas. Outro passo importante na salvaguarda dos direitos indígenas foi a Lei 5.371, de 1967, que criou a Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
Posteriormente, o ordenamento jurídico pátrio conferiu ainda maior ênfase aos direitos indígenas, com destaque para a relevante questão de suas terras, preocupação consagrada pela nova ordem constitucional.
Foi, todavia, com a Constituição Federal de 1988 e a nova ordem jurídica a partir daí instaurada, que se dispensou um novo tratamento aos nativos brasileiros, conforme elucida José Afonso da Silva,
‘’A questão da terra se transformara no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois, para eles, ela tem um valor de sobrevivência física e cultural. Não se ampararão seus direitos se não se lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas, pois, a disputa dessas terras e da sua riqueza, como lembra Manuela Carneiro da Cunha, constitui o núcleo da questão indígena hoje no Brasil. Por isso mesmo, esse foi um dos temas mais difíceis e controvertidos na elaboração da Constituição de 1988, que buscou cercar de todas as garantias esse direito fundamental dos índios. Da Constituição se extrai que, sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, incidem os direitos de propriedade e os direitos de usufruto, sujeitos a delimitações e vínculos que decorrem de suas normas’’[9].
A Constituição ora vigente declarou as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas como bens da União (art.20,XI, CF), definindo, também, quais seriam elas (art.231,p.1º,CF). Ainda no seu art.231, foi finalmente consagrado o princípio da inamovibilidade dos índios de suas terras.
Também foi previsto o término da demarcação das terras indígenas cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988 (Art.67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)[10]. Entretanto, importante lembrar que não se trata, consoante bem salienta José Afonso da Silva, de título de posse ou de ocupação das terras, mas apenas de mais um instrumento cujo desiderato volta-se à proteção dos direitos dos índios.
No entender de Dalmo de Abreu Dallari, outro mérito da vigente Carta Magna foi alçar à competência da Justiça Federal causas envolvendo os nativos brasileiros, pois isto assegurou a eles um tratamento mais distanciado dos interesses e poderes locais[11]. Acrescenta, ainda, o autor que, posteriormente à Constituição de 1988, a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual se tornou signatário o Brasil, consagrou vários direitos a estes povos e, para fins do presente estudo, atenta-se para a questão da posse e da propriedade das terras indígenas.
É, ainda, de se ressaltar a possibilidade de a União desapropriar terras para a ocupação indígena, como medida suplementar à demarcação e a outros meios de consagração da posse e da propriedade desses povos. Em tal caso, deverá a providência pautar-se no atendimento ao interesse público[12].
Em reforço à tutela protetiva inaugurada em 1988, a Convenção nº169, de 1989 dispôs, em seu art.14 a obrigatoriedade de reconhecimento aos indígenas do direito de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam[13].
3. Da usucapião indígena
3.1. Linhas gerais acerca do instituto
Versada no art.32 do Estatuto do Índio, Lei nº 6001 de 1973, a usucapião especial indígena recebe a seguinte disciplina:
‘’Art.32 Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal’’.
O instituto tem por alicerces três principais requisitos objetivos – o tempo, a posse pacífica e o objeto hábil - e um subjetivo, o ânimo de dono.
A lei exige o perfazimento de 10 anos consecutivos de posse ininterrupta sobre trecho de terra inferior a cinquenta hectares, de maneira a restar caracterizada a ocupação para os fins ora expostos uma vez exercida de forma incontestável, ininterrupta e contínua.
Todavia, na modalidade de usucapião em debate, mais um aspecto é preconizado, a saber, que se trate de índio, integrado ou não, conceito clareado pelo art.3º do Estatuto do Índio. No ponto, abre-se a crítica para a possibilidade de, em determinados casos, mesmo um índio já integrado encontrar-se apto a usucapir nos moldes da Lei 6.001/1973. Afinal, o propósito normativo, aparentemente, volta-se ao resguardo da cultura e da tradição indígena, em cuidadosa tutela aos direitos de tais povos.
Para os fins em debate, a área usucapienda é apenas a rural e particular, uma vez que a própria Constituição Federal proíbe a usucapião de bens públicos (art.191, parágrafo único, CF). Ademais, embora o trecho de terra não possa ultrapassar cinquenta hectares, inexiste previsão para um tamanho mínimo. O estabelecimento da referida dimensão encontra críticas na doutrina. Inclusive, há defensores de previsão legal para módulos de abrangência superior em locais como a Amazônia Legal, onde habita a maioria da população indígena e, na prática, o módulo ultrapassa cem hectares[14].
Necessária, ainda, a presença do elemento psicológico do agente, a posse com ânimo de dono, daí o emprego da expressão “como próprio’’, significando o exercício da ocupação, acompanhado do intento ou ânimo de ter o bem como seu, na condição de verdadeiro proprietário. Exige-se, destarte, haja a posse ad usucapionem, que será tratada com mais detalhes no próximo item.
Há de se destacar, também, que, caso o índio possua plena capacidade, poderá propor diretamente a ação de usucapião. Caso contrário, será representado pela FUNAI[15].
De conseguinte, a aquisição da propriedade por indígena ocorrerá caso sejam observados e cumpridos os requisitos enunciados no art.33 do Estatuto do Índio, condicionados à chancela judicial, a fim de se proceder ao registro junto ao cartório da circunscrição imobiliária competente, com validade erga omnes.
Ressalta-se, por derradeiro, que, consoante a classificação presente no art.17 da Lei n. 6.001/1973, as terras usucapidas, por integrarem a propriedade dos indígenas, não sendo bens públicos, enquadram-se na classificação do inciso III, na modalidade de terras de domínio das comunidades indígenas ou silvícolas.
3.2. Posse ad usucapionem
Para fins do presente estudo, faz-se imperioso elucidar a natureza da posse no caso específico da usucapião indígena. Conquanto seja escassa a bibliografia sobre o tema, seguem-se alguns apontamentos merecedores de particular ênfase.
O diploma civil pátrio de 2002, tal qual o seu precedente, adota a teoria objetivista de Jhering sobre a posse, que entende ser ela evidenciada pelo corpus, a exteriorização do domínio. Assim, seria, nas palavras daquele autor, o elemento externo manifestação inseparável da vontade do agente, como a palavra se encontra ligada ao pensamento[16]. Menciona, neste diapasão, o art. 1.196 do Código Civil que se considera possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Em doutrina, admitem-se diversas modalidades de posse, com destaque para a contraposição entre a posse ad interdicta e a ad usucapionem, pois, enquanto a primeira inclui toda posse passível de defesa através das ações possessórias, possibilitando a utilização dos interditos para repelir ameaça, mantê-la ou recuperá-la, esta última é a que possibilita a aquisição da propriedade após o transcurso de certo lapso temporal.
Assim, há situações nas quais, mesmo possuindo determinada coisa, o indivíduo não poderá usucapir. E isto se aplica à usucapião indígena também, a exemplo da hipótese de um índio, já integrado, ser locador de determinado imóvel, circunstância na qual não poderá ele, enquanto o real proprietário comportar-se desta maneira, invocar a usucapião, mas poderá, nos devidos limites, defender sua posse mediante os interditos. Secundariamente, é necessário o perfazimento do lapso temporal de dez anos a fim de se operar a usucapião indígena.
Frise-se, por derradeiro, que, contrariamente às terras demarcadas, a legitimidade da posse das áreas usucapidas consoante os moldes do Estatuto do Índio condiciona-se ao registro imobiliário, após a devida homologação judicial.
3.3. Usucapião indígena e demarcação de terras indígenas: a natureza da posse como principal distinção entre os institutos
O ordenamento jurídico pátrio também garante aos indígenas o direito de demarcação das terras por eles tradicionalmente ocupadas, dispondo neste sentido o art. 19 da Lei nº 6.001/1973.
A respeito da demarcação das terras dos nativos brasileiros, faz a Constituição Federal uma série de previsões, destacando-se o seu art.231. O Decreto-lei 1775/1996 disciplina, também, todo o processo demarcatório, que, com trâmite inteiramente em âmbito administrativo, é permeado por uma série de cuidados legais.
A principal questão, entretanto, atine à natureza da posse que enseja a demarcação de terras indígenas. Esta difere da posse típica da usucapião, até porque não é direcionada por requisito temporal específico, tampouco, contrariamente à usucapião traçada no Estatuto do Índio, envolve a posse individual, mas, de outro lado, a de uma coletividade. Transcende, pois, à continuidade e mesmo ao animus domini, despontando esclarecedor o ensinamento de José Afonso da Silva sobre a natureza jurídica da posse em em apreço,
‘’A posse das terras ocupadas tradicionalmente pelos índios não é a simples posse regulada pelo direito civil; não é a posse como simples poder de fato sobre a coisa, para sua guarda e uso, com ou sem ânimo de tê-la como própria. É, em substância, aquela possessio ab origini que, no início, para os romanos, estava na consciência do antigo povo, e era não a relação material do homem com a coisa, mas um poder, um senhorio. [...] a relação do indígena com suas terras não era apenas um ius possessionis, mas também um ius possidendi, porque ela revela também o direito que têm seus titulares de possuir a coisa, com o caráter de relação jurídica legítima e utilização imediata’’[17].
Faz-se relevante destacar que, ante à especial natureza da posse motivadora da demarcação territorial, é pacífico em doutrina ser esta mero reconhecimento da posse autóctone. Nesta linha, defende-se que tais áreas, para serem consideradas possessão indígena, prescindem de demarcação e do registro imobiliário, embora tenha sido intenção do legislador constitucional demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens[18].
Demais disso, é de se ressaltar que, contrariamente à usucapião especial indígena, não é expresso na Constituição o lapso temporal durante o qual devem os índios ter ocupado a área para se possibilitar a demarcação, existindo unicamente menção às terras por eles tradicionalmente ocupadas.
Referida questão foi enfrentada pelo Min. Carlos Ayres Britto, na Pet.3388/RR, quando o STF discutiu a demarcação da reserva indígena da Raposa Serra do Sol, ocasião na qual o magistrado entendeu ter sido a data da promulgação da Constituição em vigor o marco desejado pelo constituinte para essa tradicional ocupação. Restou, pois, incontroverso que, para haver demarcação das terras indígenas, este povo deveria tê-las ocupado desde antes da promulgação constitucional e ainda as ocupar no referido momento, salvo a hipótese de esbulho renitente.
Naquela ocasião, acrescentou, ainda, o relator,
‘’Não basta, porém, constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da promulgação do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). [...] O termo “originários” a traduzir uma situação jurídico subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Termo sinônimo de primevo, em rigor, porque revelador de uma cultura pré-européia ou ainda não civilizada. A primeira de todas as formas de cultura e civilização genuinamente brasileiras, merecedora de uma qualificação jurídica tão superlativa a ponto de a Constituição dizer que “os direitos originários” sobre as terras indígenas não eram propriamente outorgados ou concedidos, porém, mais que isso, “reconhecidos” (parte inicial do art. 231, caput); isto é, direitos que os mais antigos usos e costumes brasileiros já consagravam por um modo tão legitimador que à Assembléia Nacional Constituinte de 1987⁄1988 não restava senão atender ao dever de consciência de um explícito reconhecimento. [...] Pelo que o direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal’’.
Na mesma oportunidade, sustentou o Ministro Carlos Ayres Britto que o propósito da demarcação tem vistas no futuro, na preservação da comunidade indígena em sua terra e, de conseguinte, de todos os seus peculiares traços. Imprescindível perceber que o efeito multiplicador do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal em todas as instâncias judiciais[19].
Para robustecer mais ainda todo o exposto, vem à tona, novamente, preciosa lição de José Afonso da Silva[20], quando, também ao dissertar sobre o caso da Reserva Raposa Serra do Sol, asseverou ser a demarcação medida com efeito de mero reconhecimento de situação de fato e de direito já existente, limitada a precisar a extensão de determinada área, depois de um processo de levantamento antropológico, etnográfico e geográfico do local tradicionalmente ocupado.
3.4. Relevância do instituto
Historicamente, os conflitos vivenciados pelos povos indígenas guardam estreita relação com a demarcação de suas terras. Nos últimos anos, os conflitos decorrentes de tais embates têm aumentado em proporção significativa, o que é vislumbrado no crescimento de 64% de 2006 para 2007 no número de indígenas assassinados no país, com concentração dos crimes em Mato Grosso do Sul[21]. Em meio a todo esse contexto, não se pode olvidar que a própria corrida ruralista representa verdadeiro óbice à concretização do direito indígena a terra, tanto no caso da demarcação, quanto no da desapropriação e mesmo no da usucapião.
De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, das 896 mil pessoas declaradas indígenas, 572 mil, ou 63,8%, viviam na área rural e 517 mil, ou 57,7%, moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas. Destaca-se, assim, o percentual de indígenas vivendo nas áreas rurais em comparação ao que se observa para a população brasileira em geral. Enquanto 84,4% da população nacional reside em centros urbanos, esse percentual atinge apenas 36,2% no caso dos indígenas, revelando, pois, o maior vínculo deles com a terra[22].
Destarte, embora a usucapião do Estatuto do Índio seja passível de muitas críticas, a importância do instituto reside justamente em ser ele mais um meio de resguardo dos direitos dos povos indígenas, configurando forma de aquisição da propriedade reservada especificamente a este povo.
Neste particular, vem à tona a lição de Aurélio Veiga Rios, para quem, além da demarcação, de importância já consagrada na ordem constitucional vigente, seria imperiosa a normatização de novas modalidades de aquisição da propriedade e da posse indígena.
Desponta, outrossim, a relevância de serem revigorados os meios de acesso dos indígenas à propriedade territorial, pois isto lhes conferiria maior segurança, posto que, no atual modelo de demarcação, a propriedade dos bens é da União e esta – apesar de todas as limitações impostas em lei – pode deles dispor conforme entenda necessário, o que, não raro, pode ocorrer em desfavor dos povos indígenas[23], complementando Rios,
‘’As reminiscências históricas de uma ocupação pretérita não parecem convencer, de per si, nem mesmo os antropólogos chamados a identificar novas áreas indígenas ou redefinir os limites de glebas já demarcadas, especialmente quando a área em questão está cercada de fazendas consideradas produtivas ou áreas de adensamento urbano, nas quais o reconhecimento tardio do esbulho ou da ocupação pacífica por não-índios poderia provocar disputas sobre a posse da terra, deixando a comunidade indígena em situação desconfortável e criando conflitos que não interessam a ninguém, muito menos ao poder público[24]’’.
Inclusive, informa o sítio eletrônico da FUNAI que aproximadamente 8% das 426 terras indígenas tradicionalmente ocupadas já regularizadas, inclusive algumas com presença de índios isolados e de recente contato, não se encontram na posse plena das comunidades indígenas, fato o qual se constitui em desafio a diversos órgãos do Governo Federal para a efetivação dos direitos territoriais deste grupo, a fim de se proteger devidamente esse singular patrimônio do Brasil e da humanidade[25].
Face a tal conjuntura, vislumbra-se a potencial importância e aplicação da prescrição aquisitiva tratada no Estatuto do Índio.
No entanto, é bastante profícuo o debate sobre remodelagens em vários aspectos do instituto. Seria, neste contexto, elogiável um estudo para redefinir a extensão da área suscetível de usucapião, bem como a especificação do caráter da posse, se de boa-fé e com justo título, ou não.
4. Conclusão
A título de últimas considerações, afigura-se imprescindível repisar a necessidade de os povos indígenas serem vistos sob uma nova ótica, mais protetiva de sua cultura e atenta às suas tradições.
A terra representa aspecto muito relevante na gama de direitos que devem ser assegurados aos nativos brasileiros. Ademais, tendo em vista a necessidade de serem criados ou mesmo robustecidos modos de acesso a ele, digna de atenção especial é a figura da usucapião indígena.
O referido instituto - por representar forma de aquisição do direito real de propriedade, e não meramente, ao contrário da demarcação, a homologação das terras já tradicionalmente ocupadas por tais povos na figura de bens públicos - traz ainda a vantagem de figurar como mais um resguardo aos índios, à sua cultura e às suas tradições.
5. Referências:
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[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. Vol.IV. Rio de Janeiro: Forense, 2007. P.91.
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol.V. São Paulo: Atlas, 2014. P.208.
[4] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. Edição Histórica: adaptação ao Código Civil por José Bonifácio de Andrada e Silva. P. 219.
[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.V. São Paulo: Saraiva: 2014. PP. 256-258.
[6] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de.A relação jurídica real no direito contemporâneo: uma teoria geral do direito das coisas. 2010. 171 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010. P. 120.
[7]CUNHA GONÇALVES, Luis da. Da propriedade e da posse. Lisboa: Edições Ática, 1952. PP.207-208. APUD. GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit. P. 257.
[9] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 825.
[11] DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e Proteção dos direitos dos índios. Brasília: Revista de Informação Legislativa,v.28, n.111, p. 315-320, jul./set. 1991. P.317.
[12] Parecer da AGU AC48, Publicação DOU 07/03/2006.
[13] IDEM, Ibidem. P.319.
[14] RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. Vol I. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 241.
[16] MONTEIRO, Washington de Barros. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. Vol.3. São Paulo: Saraiva: 2010. P.30.
[17] SILVA, José Afonso da. Op.Cit. P.829.
[18] RIBEIRO, Benedito Silvério. Op. Cit. P. 243.
[19] Exemplos disso são as deliberações proferidas face aos Mandados de Segurança nº10.994/DF e nº10.255/DF , julgados pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006 e em 2007, respectivamente.
[20] SILVA. José Afonso da. Demarcação de terra indígena. Revista Interesse Público. Brasília: Fórum, Ano X, nº52, PP.89-113, Nov/Dez 2008. P.109.
[21] Fonte: CIMI- Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil- Relatório 2006/2007
[22] REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, FUNAI. O Brasil Indígena – IBGE. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge. Acesso: 16/12/2017.
[23] RIOS, Aurélio Veiga. Op.Cit. P.
[24] IDEM, Ibidem. PP. 76-77
[25] REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, FUNAI. Terras indígenas: o que é?. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-indigenas?start=2#. Acesso em: 16/12/2017.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPOS, Ana Carolina Torres. A usucapião como instrumento jurídico do direito do índio à terra Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51168/a-usucapiao-como-instrumento-juridico-do-direito-do-indio-a-terra. Acesso em: 23 dez 2024.
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