RESUMO: No presente artigo, tem-se por objetivo demonstrar a contribuição do pensamento de Rui Barbosa para a consolidação no direito internacional do princípio da igualdade jurídica entre os Estados, na ocasião da II Conferência da Paz, ocorrida em Haia em 1907. Rui Barbosa atuou intensamente em diversas áreas do conhecimento, portanto, inicialmente, será feita uma breve análise acerca de seu pensamento e será demonstrada sua influência nos diversos campos em que atuou. Após isso, serão apresentados os contextos históricos internacional e brasileiro, no qual a Conferência se inseriu, a fim de que reste explicitado, que o contexto por trás da Conferência era de animosidade, com relação às novas ideias trazidas pelo brasileiro. Por fim, adentra-se na participação efetiva de Rui Barbosa na Conferência da Paz, discutindo-se acerca dos reveses encontrados pelo jurista, na sua atuação, bem como demonstrando-se sua importante contribuição para a formação e fortalecimento desse princípio.
Palavras-chave: Rui Barbosa; Conferência da Paz; princípio da igualdade jurídica entre os Estados.
ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate the contribution of Rui Barbosa's thinking to the consolidation in international law of the principle of juridical equality between States at the Second Peace Conference held in The Hague in 1907. Rui Barbosa acted intensely in several fields of knowledge, so initially a brief analysis will be made of his thinking and his influence will be demonstrated in the various areas in which he has acted. After this, the international and Brazilian historical contexts will be presented, in which the Conference was inserted, in order to make it explicit, that the context behind the Conference was one of animosity, in relation to the new ideas brought by the Brazilian. Finally, the effective participation of Rui Barbosa in the Peace Conference will be analysed, discussing the setbacks encountered by the jurist in his work, as well as demonstrating his important contribution to the formation and strengthening of this principle.
Keywords: Rui Barbosa; Hague Peace Conference; sovereign equality of States principle;
Sumário: 1. Introdução 2. Circunstâncias Históricas e Políticas 3. A Conferência da Paz de Haia de 1907 3.1 A Corte Permanente de Justiça Arbitral e a Igualdade entre os Estados 2. Conclusão.
Introdução
O pensamento vanguardista de Rui Barbosa explica porque até os dias atuais, quase um século após sua morte, seus discursos ainda são lembrados e citados como precursores de direitos e princípios hoje já consolidados. Nascido em 1849, em Salvador, foi jurista, advogado, jornalista, político, deputado provincial, deputado geral, senador, ministro, quatro vezes candidato à presidência, diplomata, escritor, atuando, portanto, em diferentes áreas do conhecimento.
No plano interno, foi grande apoiador da abolição da escravatura, a qual chamava de verdadeira abominação. Também se dedicou à luta pelo voto direto, pois, segundo ele, a eleição indireta teria por base o pressuposto de que o povo é incapaz de escolher acertadamente os deputados (BARBOSA, 1987, p. 249).
Grande defensor da igualdade não somente entre os Estados, mas também entre os indivíduos tomou forte posicionamento, em favor de candidata à carreira diplomática, que teve sua admissão ao concurso contestada pelas autoridades. Com a ajuda da defesa de Rui, Maria José de Castro tornou-se a primeira mulher diplomata do país, no ano de 1918.
Rui Barbosa também se posicionou contra a injusta condenação do militar francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, acusado de traição e espionagem em uma França militarista e antissemita. Foi o primeiro a publicamente defender o capitão, no artigo intitulado “O Processo do Capitão Dreyfus”, publicado no Jornal do Commercio. Neste mesmo artigo, Barbosa já critica a justiça como espetáculo, afirmando que desonram a pátria as contorções de um patriotismo histérico, que antepõe a popularidade à justiça (BARBOSA, 1896, p. 10).
Sua atuação, entretanto, não se resumiu ao plano interno. Além de chefiar a delegação brasileira na Segunda Conferência da Paz, em Haia, sobre a qual nos debruçaremos a seguir, Rui Barbosa atuou como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário do Brasil em Buenos Aires, durante a celebração do primeiro centenário da independência argentina.
Nesta oportunidade, dedicou-se à defesa do direito internacional e de uma identidade própria para a diplomacia brasileira comprometida com o princípio da igualdade entre os Estados e a resolução pacífica dos conflitos. Em discurso realizado na Faculdade de Direito de Buenos Aires por ocasião do recebimento do título de Professor Honoris Causa (VICENTINI, 2012, p. 53), o brasileiro fez duras críticas ao que denominou de neutralidade inerte e surda-muda dos países subdesenvolvidos.
Para ele, com a internacionalização crescente dos interesses nacionais, com a penetração mútua entre as nacionalidades, com a interdependência entre as nações, a discussão sobre as questões de guerra não poderia cingir-se ao redor dos Estados com maior poderio militar e econômico.
O jurista defendeu uma orientação pacificadora da justiça internacional, na qual todos os países teriam iguais direitos a voto quanto aos rumos da guerra, visto esta ser uma situação que afeta o mundo como um todo. Vislumbra-se aí mais uma situação em que Rui se posiciona a favor da igualdade entre os Estados, no plano internacional. Vale dizer que, quando desse discurso, em 1916, ainda estava em curso a Primeira Guerra Mundial, que se iniciou sete anos após o término da II Conferência da Paz.
É tarefa difícil definir em qual área ele teria deixado sua maior contribuição, entretanto percebe-se pelo breve apanhado aqui feito de suas ideias, que estas sempre estiveram envoltas nos conceitos de justiça e igualdade. Foi imbuído dessas ideias que Rui Barbosa se fez presente na Segunda Conferência da Paz, causando desconforto às grandes soberanias da época que não viam a igualdade com bons olhos, especialmente em função do contexto histórico vivido no momento.
2 Circunstâncias Históricas e Políticas
A Segunda Conferência da Paz, em Haia, ocorre oito anos após a primeira, realizada em 1899, na qual foram feitos avanços significativos no sentido da delimitação de regras de direito internacional humanitário. Nesta Primeira Conferência da Paz, à qual compareceram delegados de 26 países, foi aprovada, dentre outros documentos, a Convenção para a Solução Pacífica de Conflitos Internacionais.
Apesar dos importantes passos no campo da solução amistosa de controvérsias e limitação aos meios e métodos de combate, a Primeira Conferência não foi bem sucedida no seu escopo inicial de frear a corrida armamentista. Com relação a isso, a Ata Final cingiu-se a declarar que a Conferência acreditava que a restrição dos gastos militares, os quais representavam um fardo para o mundo, seria extremamente desejável para o bem-estar material e moral da humanidade[1].
O cenário mundial passava então por um período de polarização, formando-se uma divisão cada vez mais clara entre os Estados mais fortes e os mais fracos. Nesse período, batizado por Eric Hobsbawn, como a “era dos impérios” (HOBBSBAWN, 2011, p. 583), o imperialismo das grandes potências acabou por gerar conflitos entre estas, surgindo grandes rivalidades, que culminaram posteriormente com a Primeira Guerra Mundial.
O Brasil, apesar de convidado para comparecer à Primeira Conferência, declinou do convite. Em nota assinada pelo representante brasileiro em São Petersburgo, o país informou que passava por um período de instabilidade interna, por isso sua ausência, mas reforçou seu compromisso com a reorganização das forças militares com vistas a um fim pacífico.
No contexto do continente americano, o imperialismo mudava de roupagem, visto que não existiam muitas superpotências para disputar território, como acontecia no caso europeu. Nas Américas, havia apenas uma grande potência mundial, os Estados Unidos, que exerciam grande influência sobre as demais nações daquele continente. O então presidente norte-americano, Theodore Roosevelt, reavivando a Doutrina Monroe, conhecida pela célebre frase “a América para os americanos”, desenvolve o chamado Corolário Roosevelt, procurando dessa forma justificar a política de coerção desenvolvida contra os Estados latino-americanos[2].
O corolário representou o marco inicial de um período de controle direto pelos Estados Unidos sobre as demais nações americanas. É certo que, ao fazer uso dessa doutrina, Washington procurava assegurar sua influência exclusiva sobre o continente. Além disso, os Estados Unidos se firmavam como uma grande liderança mundial, demonstrando que, através de sua supervisão, as nações americanas conseguiam preservar a ordem pública e manter seus compromissos em dia. A diplomacia brasileira, ciente do importante papel que os Estados Unidos desempenhavam no cenário global, procurou estreitar seus laços com esse país. Existia, à época, o que Bradford Burns denominou de aliança não escrita (BURNS, 2003) entre ambos os países, que se apoiavam mutuamente.
O Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil entre 1902 e 1912, rápido percebeu que os Estados Unidos estavam destinados a ser uma grande potência mundial e, por essa razão, buscou fazer essa aliança não formalizada com aquela nação, num modelo de política externa que passou a ser denominado de americanismo pragmático (RICUPERO, 1995).
O Brasil atravessava um momento importante para suas relações internacionais, visto que procurava definir seu lugar dentro da América Latina e do mundo. Para isso, precisava fortalecer as instituições internas, a fim de que pudesse buscar o estabelecimento de uma política externa própria e autônoma. Nesse contexto, de extrema importância para o Brasil a participação em uma conferência internacional.
Percebe-se que o momento em que foi convocada a Segunda Conferência da Paz não era particularmente propício para a difusão de um princípio da igualdade jurídica entre os Estados. Num mundo imperialista, em que poucos fortes dominavam muitos mais fracos, onde havia clara predominância da força sobre o Direito, a ideia de voz equânime para todas as nações, independente de poderio militar e econômico, parecia utópica. Daí a relevância da contribuição de Rui Barbosa, nesse contexto histórico, inserindo seus ideais de igualdade e demostrando às grandes potências que os países subdesenvolvidos não iriam se sujeitar indefinidamente a seus desmandos. Sobre isso, se tratará a seguir.
3 A Conferência da Paz de Haia de 1907
A Primeira Conferência Internacional de Haia de 1899, e assim também a Segunda de 1907 ficaram conhecidas, por inspiração da opinião pública, como Conferências da Paz. Isso se deu, pois ambas as conferências tiveram como lastro instigador a ideia de paz, defendida pelos movimentos pacifistas do século XIX (LAFER, 2007).
Como visto, o mundo passava por um momento de intensa polarização, por essa razão optou-se por não se realizar as Conferências em alguma cidade das grandes potências, pois além de haver o perigo de influências políticas, a escolha do local poderia acabar por gerar conflitos. Diante disso, decidiu-se por realiza-las, na Holanda, que era vista como um país neutro. Assim, em meados de 1907, o Brasil recebe o convite formal para se fazer presente na Segunda Conferência da Paz, em Haia, convocada pelo então czar da Rússia, Nicolau II, atendendo a proposta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que respondia aos anseios dos movimentos pacifistas da época.
Nesta conferência, participaram 44 (quarenta e quatro) nações. Diferentemente da primeira, onde compareceram apenas Estados Unidos e México do continente americano, nesta segunda, compareceram Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, República Dominicana, Cuba, Equador, Guatemala, Haiti, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e Nicarágua[3], dando grande representatividade aos países Latino-Americanos.
A delegação brasileira seria inicialmente chefiada por Joaquim Nabuco, mas a imprensa e a opinião pública acabaram por apontar o nome de Rui Barbosa, então vice-presidente do Senado. Diante disso, Joaquim Nabuco, amigo pessoal de Rui, opta por recusar o convite em favor do colega, dispondo-se a auxiliá-lo no que fosse preciso. Num primeiro momento, Barbosa relutou em aceitar o encargo, mas eventualmente concordou em chefiar a delegação brasileira[4] e, em 15 de junho de 1907, acontecia a cerimônia de abertura da Segunda Conferência de Paz em Haia, com a presença do Brasil, um fato marcante para a história das relações internacionais brasileiras.
Joaquim Nabuco, então embaixador nos Estados Unidos, fez intensa campanha internacional em favor do amigo. Barbosa foi nomeado presidente de honra da Primeira Comissão da Conferência, responsável pelas discussões a respeito da solução pacífica de conflitos internacionais e pela organização do Tribunal de Presas.
A aclamação inicial, entretanto, cedeu lugar a grande hostilidade com o delegado brasileiro. O trabalho intenso de Rui, na elaboração de seus discursos e no oferecimento de pareceres sobre as mais diversas questões, acabou por gerar certa antipatia dos representantes das grandes potências, a quem não interessava um país latino-americano com um representante tão participativo.
Essa falta de simpatia com o delegado brasileiro acabou se traduzindo em um pequeno incidente ocorrido com o delegado russo, conforme narrado por Hildebrando Accioly em seu prefácio escrito na obra de Barbosa sobre a Conferência. Segundo Accioly, durante seu discurso a respeito da transformação dos navios mercantes em vasos de guerra, Rui fez algumas incursões na esfera da alta política. Ocasião em que o presidente da comissão, Martens, observou que a política deveria ser excluída dos debates da Conferência.
Essa fala, recebida com aplausos, conforme ata da comissão, representou uma certa censura ao discurso do brasileiro. Diante disso, Rui Barbosa se pronunciou novamente, afirmando que se proibir o contato com a política seria o mesmo que se proibir o uso da palavra, pois a política era a atmosfera dos Estados, a região do direito internacional[5]. Esse incidente foi importante, pois tornou o delegado brasileiro mais conhecido e respeitado pelas principais figuras da Conferência. Foi, porém, durante as tratativas a respeito da criação de uma Corte Permanente de Justiça Arbitral, que o delegado brasileiro fez contribuições que iriam marcar a o direito internacional.
3.1 A Corte Permanente de Justiça Arbitral e a Igualdade entre os Estados
O projeto de criação da corte foi apresentado pela delegação norte-americana, sugerindo a criação de um tribunal permanente com sede em Haia, que seria responsável pela resolução de controvérsias internacionais e a ele estariam obrigatoriamente submetidos todos os Estados soberanos.
As discussões começaram, quando após intervenções da Alemanha e Grã-Bretanha, o projeto inicial foi modificado para sugerir-se a composição da corte da seguinte forma: dezessete juízes, onde nove teriam assento permanente e seriam indicados pelas grandes potências da época, Estados Unidos, Alemanha, França, Japão, Inglaterra, Império Austro-Húngaro, Itália, Rússia e Holanda – esta última convidada a compor esse seleto grupo, em razão de sediar a Conferência - e os oito assentos restantes seriam rotativos e indicados por agrupamentos de Estados.
A nova proposta foi encarada com tamanha temeridade por Rui Barbosa que este, em telegrama enviado a Rio Branco, chegou a sugerir que não veria mais como o Brasil poderia continuar na Conferência, diante do que caracterizara como tamanha e amarga humilhação[6].
Ao se pronunciar a respeito do projeto, afirmou que este seria a proclamação da desigualdade entre as soberanias nacionais. Para ele, a proposta dava a todos as nações o direito de nomear um dos membros da Corte. Porém, uma vez nomeado, uns teriam o direito de fazer parte por um tempo mais ou menos curto, enquanto outros exerceriam suas funções durante o período de duração total.
A desigualdade no exercício de um direito implicava na desigualdade no próprio direito, segundo Rui Barbosa, porque o valor de um direito só poderia ser medido pela possibilidade jurídica de o exercer. No direito de nomear, seriam todos iguais, entretanto seriam desiguais no direito de fazer parte. Afirmou, por fim, que o governo brasileiro não subscreveria nenhum projeto que ofendesse a igualdade entre os Estados.
O discurso de Barbosa chamou a atenção da imprensa internacional. Os jornais das importantes nações criticavam sua tese, pois ainda não conseguiam vislumbrar um princípio da igualdade entre as nações. Os países da América Latina, entretanto, adotaram a bandeira levantada pelo brasileiro que passou a atuar como um líder dos países subdesenvolvidos, os quais seriam diretamente prejudicados pelo projeto.
O princípio da igualdade jurídica entre os Estados passou a ganhar numerosos adeptos, o que levou o grupo de países autores do projeto a oferecerem um lugar permanente na Corte para o Brasil, mas o Barão do Rio Branco recusou veementemente a proposta, afirmando que o país ficaria do lado do Direito, e não da força.
Por iniciativa de Rui Barbosa, foi criada uma comissão para discutir a criação dessa Corte chamada de Comissão dos Sete Sábios[7], da qual além do brasileiro faziam parte os representantes dos Estados Unidos, Alemanha, França, Japão, Império Austro-Húngaro, Rússia e Itália. Na Comissão, o projeto anterior foi abandonado e Rui Barbosa e o princípio da igualdade entre os Estados consagraram-se vencedores. Começou-se a escrever um novo projeto, tendo agora como inviolável a igualdade entre as nações.
O projeto, entretanto, acabou não se realizando, em razão do boicote realizado por alguns países. Ainda assim, foi reconhecida a vitória de Rui Barbosa e do direito internacional. O último discurso de Rui foi no dia 9 de outubro de 1907 e foi considerado pelo próprio seu trabalho mais importante. O brasileiro começa seu discurso tratando a respeito da soberania e da igualdade entre os Estados, assim defendendo (BARBOSA, 1966, p. 383):
A soberania é o direito elementar por excelência dos Estados independentes e constituídos. Ora, soberania significa igualdade. Tanto na ideia, como na prática a soberania é absoluta. Ela não sofre gradação. Mas a distribuição jurisdicional do direito é um ramo da soberania. Portanto, se parece necessário existir entre os Estados um órgão comum de justiça, obrigatoriamente, todos deverão ter uma representação equivalente.
Nesse discurso, Rui cita o major-general Halleck do exército norte-americano, que afirma que todos os Estados soberanos, qualquer que seja a sua força relativa, são iguais aos olhos do Direito Internacional e, naturalmente, dotados dos mesmos direitos e vinculados aos mesmos deveres, submetidos a obrigações equivalentes. Uma inferioridade intelectual não dá uma superioridade de direito ao vizinho mais forte e, se esse se apoderar de alguma vantagem, será por pura usurpação. As diferenças de grandeza não deviam implicar em nenhuma distinção jurídica (BARBOSA, 1966, p. 389).
Segundo Rui Barbosa, a igualdade entre os Estados é a peça fundamental para a manutenção da paz entre as nações. A desigualdade de soberanias acabava por gerar conflitos, apenas com a igualdade se encontraria a solução pacífica. Além disso, para o representante brasileiro, medir-se a grandeza internacional pela força das armas, dando maior prestígio e poder de voto aos países com maior poderio militar seria subverter-se o sentido da Conferência da Paz, que terminaria por conduzir os países para o caminho da guerra, e não o da paz.
Ao terminar seu discurso, Rui Barbosa foi ovacionado pelos demais participantes da Conferência, consagrando-se na história como um dos principais defensores da igualdade jurídica entre os Estados e recebendo a alcunha popular de “Águia de Haia”.
Barbosa, representando um país com uma população de pouco mais de 25 milhões de pessoas enfrentou em pé de igualdade as demais delegações que representavam 800 milhões de pessoas e todos os exércitos e armadas efetivos do mundo. No fim, quem se sagrou vitorioso foi o princípio da igualdade entre os Estados.
Conclusão
Em um contexto em que se vivia sob a égide do padrão civilizatório europeu (GONG, 1984), com a imposição do modo de vida da Europa sob as demais nações do mundo, introduzir-se a ideia de igualdade entre os Estados, ainda mais por um país periférico e recém-independente, como o Brasil, não era uma tarefa simples. Além disso, importante o registro que o cenário mundial encontrava-se extremamente polarizado, com a dominação político-econômica de alguns sobre os demais, não havendo o espaço que as nações em desenvolvimento atualmente possuem.
O antigo pensamento jurídico clássico - baseado no princípio da soberania absoluta, do padrão civilizatório e positivismo jurídico - deu lugar a uma razão jurídica moderna que criticava a soberania absoluta, enfatizava o interesse da comunidade internacional e apoiava doutrinas jurídicas anti-formalistas.
O novo direito internacional propiciou a aquisição de soberania pelos países subdesenvolvidos, um movimento que começou durante o século XIX, e trouxe essas nações para o centro das discussões a respeito dos rumos da comunidade internacional. A própria participação na Conferência serviria para reafirmar a soberania desses países periféricos e para inseri-los internacionalmente.
Entretanto, apesar de soberanos e ocuparem um lugar, na comunidade mundial, esses Estados permaneciam em desvantagem em relação às grandes potências. O brilhantismo de Rui Barbosa consistiu no fato de usar conceitos de direito internacional clássico, em favor da igualdade dos Estados, apropriando-se de termos como soberania, equidade e autonomia para afirmar sua posição. Ao fazer uso do próprio direito internacional, ao invés de um discurso de heroísmo ou “coitadismo”, Rui tornou seus argumentos irrefutáveis.
Ao afirmar que a soberania não pode sofrer gradação, ou seja, não poderiam existir Estados mais soberanos que os outros, Rui Barbosa relaciona diretamente a soberania à igualdade e as torna interdependentes. Entre Estados soberanos, portanto, não poderiam haver diferenciações. O que Barbosa trouxe, portanto, foi um novo espírito internacionalista, de uma "sociedade de estados igualitários juridicamente e que se organiza sob a lei".
Isso representava uma mudança significativa no direito internacional clássico, que ainda era muito centrado no sistema hierárquico e aristocrático instituído no Congresso de Viena, no qual, as grandes potências tinham direitos especiais de intervir nos assuntos de outras soberanias.
Essa ordem internacional fundamentada no princípio da soberania absoluta representava um obstáculo para a criação de organizações internacionais, tribunais e regras mais severas para limitar a autonomia dos Estados. O princípio da igualdade vem, portanto, para derrubar esses dogmas, tornando a comunidade internacional mais aberta e mais fluida, menos engessada, o que possibilitaria a ascensão de novos atores e, com eles, novas práticas e ideias.
A partir desse princípio se pôde conceber a criação de organizações de Estados soberanos, iguais entre si, como é o caso da Organização das Nações Unidas. Além disso, o projeto da Corte Permanente de Arbitragem serviu como um embrião para o desenvolvimento da atual Corte Internacional de Justiça (CIJ), que tem sede em Haia, a qual Rui Barbosa foi eleito para integrar, posteriormente, mas faleceu antes de ter participado de qualquer sessão. O Brasil, atualmente, possui um representante seu na CIJ, o Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade.
Apesar de não ter sido constituída a Corte Permanente de Justiça Arbitral, o impacto principal consistiu no fato de esta não ter sido constituída em razão de representar uma violação ao princípio da igualdade. A relevância, portanto, da Conferência não dependia de pôr fim à guerra ou de adotar uma convenção específica, mas sim na sua contribuição para a fundação de uma comunidade internacional organizada sob a lei.
A Conferência da Paz de 1907 representou, assim, um marco para a construção de uma sociedade internacional mais democrática e para a universalização do direito internacional e teve como um de seus principais expoentes o brasileiro Rui Barbosa.
Referências
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[1] Hague Peace Conference. The Proceedings of the Hague Peace Conferences – The Conference of 1899. Oxford University Press: New York, 1920. P. 233
[2] “O conceito de proteção do hemisfério contra agressões extracontinentais, cerne daquela doutrina, foi retrabalhado pelo então Presidente norte-americano, de forma que desse justificativa à política de coerção contra os Estados latino-americanos. Como contrapartida, os Estados Unidos garantiram à Europa que as nações latinas da América, sob sua supervisão, preservariam a ordem pública e manteriam seus compromissos em dia.”. BUENO, Clodoaldo; CERVO, Amado Luiz. História da Política Exterior do Brasil. 3 ed. Ed. UnB: Brasília, 2008, p. p. 180 e 181.
[3] HAGUE PEACE CONFERENCE. The Proceedings of the Hague Peace Conferences, Volume I – Plenary Meetings of the Conference. Oxford University Press: New York, 1920. P. 2-15.
[4] Foram também designados Eduardo dos Santos Lisboa (2° delegado), Roberto Trompowski e Tancredo Burlamaqui (delegados adjuntos), Artur de Carvalho Moreira e Rodrigo Otávio (1°s secretários) e Antônio Batista Pereira (2° secretário, juntamente com outros).
[5] Sobre a política, Rui Barbosa assim discursou: “Ela transformou o direito privado, ela revolucionou o direito penal, ela fez o direito constitucional, ela criou o direito internacional. É a vida dos povos em si, é a força ou o direito, é a civilização ou a barbárie, é guerra ou paz. Como então proibi-la em uma Assembleia de homens livres, reunidos no início do século XX com o fim de atribuir uma forma convencional para o direito das Nações?”. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXIV, Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966. P. 65. Tradução livre do original em francês.
[6] “Por amigo comum tive confidência completa tribunal terá dezessete membros base população. França Inglaterra Alemanha Áustria Itália Rússia Estadosunidos Japão Holanda cada uma um membro. Os mais por grupos seguinte modo: Espanha e Portugal, Bélgica Suíça e Luxemburgo, Turquia e Pérsia, China e Sião, Suécia Noruega e Dinamarca, Bálcãs. Nosso continente: México e América Central um; América do Sul um. Vocência verá se por meio Washington nos poupam tamanha e amarga humilhação. Verificada ela não compreendo Brasil possa dignamente continuar conferência.” Telegrama de Rui Barbosa ao Barão do Rio Branco. BARBOSA, Rui. II Conferência da Paz Haia, 1907 - A correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa. FUNAG: Rio de Janeiro, 2014 P. 87
[7] Surge o grupo dos sete sábios (Comitê des Sept ou Sept Sages) formado por: Joseph Hodges Choates – embaixador plenipotenciário dos EUA; Leon Bourgeois – primeiro delegado plenipotenciário da França; Barão Marschall von Bieberstein – primeiro delegado plenipotenciário da Alemanha; Alexandre Ivanovitch Nélidow – delegado plenipotenciário da Rússia; Gaëtan Mérey Kapos-Mére – embaixador extraordinário e plenipotenciário do Império Austro-Húngaro; Conde Joseph Tornielli Brusati di Vergano – delegado plenipotenciáro da Itália; Rui Barbosa – embaixador extraordinário e plenipotenciário e delegado do Brasil. (Atendendo à proposta de RB, ao grupo se reuniu Sir Edward Fry, um dos delegados plenipotenciários da Grã-Bretanha, que sugeriu uma proposta conciliatória, sem que a Junta perdesse a denominação de Comitê des Sept).
Advogada. Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FELIX, Mayna Cavalcante. Rui Barbosa e a defesa do princípio da igualdade entre os Estados na Conferência da Paz de 1907 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51171/rui-barbosa-e-a-defesa-do-principio-da-igualdade-entre-os-estados-na-conferencia-da-paz-de-1907. Acesso em: 23 dez 2024.
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