Resumo: O presente artigo tem por problemática aferir a constitucionalidade do art. 62 do Novo Código Florestal, a Lei nº 12.651/2012, à luz do princípio implícito da vedação ao retrocesso ambiental, na medida em que o aludido dispositivo tornou-se tema candente em diversas ações judiciais, seja sob o âmbito do controle difuso de constitucionalidade, seja sob a ótica do controle concentrado de constitucionalidade, fazendo com que, ao fim e ao cabo, a própria eficácia do Código Florestal seja questionada. Nesta senda, este estudo intenta contribuir para o debate do tema, a fim de que este importante dispositivo do Direito Ambiental tenha seus contornos mais aclarados, conferindo, desta feita, uma maior segurança jurídica. Lado outro, como o debate sobre a constitucionalidade do dispositivo é permeado pela violação (ou não) do princípio da vedação ao retrocesso ambiental, sua possível incidência é a hipótese-chave a ser descortinada para a resolução do busílis.
Palavras-Chaves: Direito Ambiental. Controle de Constitucionalidade. Código Florestal e seu art. 62. Princípio da vedação ao retrocesso ambiental. Inexistência de consenso básico inserido na consciência jurídica geral.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. Compreensão do art. 62 da Lei nº 12.651/2012. 2.2. Da correta compreensão jurídica do "princípio da vedação ao retrocesso (socio)ambiental". 3. Conclusão. 4. Referências.
1. Introdução
Após acalorado trâmite legislativo, a Lei nº 12.651/2012, epitetada de “Novo Código Florestal”, foi aprovada e revogou a antiga Lei nº 4.771/1965. O debate entre os múltiplos atores e interessados pela novel normação, tais como defensores do agronegócio e ambientalistas, estendeu-se mesmo após a aprovação do referido diploma. A Medida Provisória nº 571/2012 modificou pontos sensíveis no mesmo dia da publicação e promulgação do “Novo Código Florestal” e, após intenso debate no Congresso Nacional, foi convertida na Lei nº 12.727/2012.
Não obstante a denominação de “Código Florestal” – expressão reproduzida pela mídia e que foi incorporada pela doutrina e tribunais pátrios –, a Lei nº 12.651/2012 assim não se autodenomina, como se infere de sua ementa, divergindo do revogado Código de 1965, que expressamente se intitulava como “Código Florestal”.
A Lei Complementar nº 95/1998, editada para operacionalizar o parágrafo único do art. 59 da Constituição Verde de 1988, giza no art. 7º, inciso I que “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;”. Lido o dispositivo a contrario sensu, tem-se que as codificações não possuem objeto unívoco. Neste norte, entre tais objetos deve haver um nexo temático ou uma pertinência disciplinar, sob pena da codificação ser descaracterizada e passar a se aproximar da noção de microssistema, contexto outro que não possui clara conceituação no ordenamento legislado ou positivado. Considerando a temática em disceptação, era de se esperar que um “Código Florestal” dispusesse com minudência e completude sobre inúmeros objetos, institutos florestais, logicamente. Contudo, assim não ocorreu com a Lei nº 12.651/2012, já que não dispôs sobre a inteireza da temática florestal e olvidou intencionalmente do regime jurídico da mata atlântica - perdendo uma oportunidade ímpar de aparar inúmeras arestas deste importante bioma -, bem como de inúmeras outras questões florestais que ainda se encontram dispersas na legislação ambiental. Portanto, o suposto “Código” não dispõe com completude sobre a questão florestal no País, o que já lhe seria suficiente para a retirada da alcunha.
Em que pese o grave equívoco acima, fruto de uma verdadeira falta de coordenação do Poder Legislativo no processo legislativo, a Lei nº 12.651/2012 tratou de vários temas outros que guardam uma relação tão efêmera com a questão florestal, que, em essência, fogem do nexo temático acima disposto. De fato, o liame é tão frágil que várias matérias seriam melhor normadas em diplomas próprios que contivessem até mesmo uma regulamentação suficiente. Em que pese a crítica, a lei foi aprovada como um aglutinado de assuntos, alguns propriamente florestais, outros acessoriamente florestais e outros meramente florestais.
Esta desorganização temática repercute na péssima sistematização da Lei nº 12.651/2012, dotada de inúmeros capítulos que tratam de assuntos tão diversos, sem contar um extenso capítulo de disposições transitórias e um avulso capítulo de disposições complementares e finais.
Em meio a este imbróglio, jungindo a questão da área de preservação permanente – temática diretamente florestal – à questão energética, veio ao mundo jurídico o art. 62, segundo o qual “Para os reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, a faixa da Área de Preservação Permanente será a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum.”. De fato, a questão das APPs de reservatórios hídricos destinados à geração de energia ou abastecimento público é importantíssima, não só por serem áreas dotadas de considerável vegetação florestal e relevância ambiental, como de salutar e ponderado equacionamento para o próprio desenvolvimento sustentável do País, já que as questões energéticas corriqueiramente colidem com a conformação imposta pelo ordenamento ambiental.
A partir deste art. 62, parcela considerável dos juristas e dos “operadores” jurídicos logo apontou uma diminuição da proteção ambiental e, desde então, levantaram a bandeira de que o dispositivo seria inconstitucional por violação ao princípio constitucional implícito da “vedação ao retrocesso ambiental”. Na verdade e em essência, este é o principal argumento para a tentativa de infirmar a juridicidade do dispositivo.
A tese ganhou força e, atualmente, pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal, conforme as Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs nºs 4901, 4902 e 4903. Na mesma linha, o tema também se encontra em debate em ações coletivas e individuais propostas perante juízes singulares. Quanto a esta última frente de questionamento, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já afetou à Corte Especial, conforme determina o art. 97 da CRFB/88, a discussão quanto à inconstitucionalidade do dispositivo (Processo Judicial nº 00389002020138130144).
É neste contexto que se passa a abordar cada qual dos pontos referidos e necessários para o correto deslinde da questão controvertida.
2. Desenvolvimento
2.1. Compreensão do art. 62 da Lei nº 12.651/2012
O art. 62 da Lei nº 12.651/2012 está inserido no Capítulo XIII – Das disposições transitórias, e dispõe que “Para os reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, a faixa da Área de Preservação Permanente será a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum.”. Nível máximo operativo normal é o “Nível máximo de água de um reservatório, para fins de operação normal de uma usina hidroelétrica.”, enquanto a cota máxima maximorum é a “maior cota disponível para a maior cheia”. A APP será a diferença entre estes dois marcos[1].
Tratando-se de um dispositivo transicional, a funcionar como verdadeira ponte no tempo entre a revogada Lei nº 4.771/1965 e a superveniente Lei nº 12.651/2012, já com as inclusões e alterações promovidas pela Lei nº 12.727/2012, faz-se mister compreender o histórico do caso. Tal narrativa é objetiva e precisa nas lições de Priscila Santos Artigas e Maria Clara R.A. Gomes Rosa[2], textus:
Ao longo dos anos as normas que regem as áreas de Preservação Permanente – APP no entorno de reservatórios artificiais sofreram diversas alterações. Com a edição da MedProv 2.166-67/2001 e, posteriormente, da Res. Conama 302/2002, esta pretendendo regulamentar o assunto, permaneceram os debates e dúvidas, em todo país, da correta fixação dessas áreas, sobretudo para os reservatórios já existentes.
Nesse passo, o art. 62 do novo Código Florestal resolve essa situação de impasse, certamente trazendo maior estabilidade ao ordenamento jurídico.
Vale mencionar que a obrigação de preservar as florestas e demais formas de vegetação situadas no entorno de reservatórios artificiais, visando à proteção desse corpo hídrico, foi estabelecida por meio da alínea b do art 2º do Código Florestal de 1965. Contudo, a norma não dispunha sobre a extensão da área em que a vegetação deveria ser protegida.
Note-se que o aludido dispositivo estabelecia, antes da redação dada pela MedProv 2.166-67/2001, a proteção específica da vegetação existente no entorno dos reservatórios artificiais. Assim, tal proteção não recaía sobre a área como um todo, mas sim sobre a vegetação ali existente. Em outras palavras, caso houvesse vegetação no entorno do reservatório, essa deveria ser preservada, e, caso não houvesse, tal obrigação não se impunha.
Com o advento da Lei 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, conforme o seu art. 18, as áreas de preservação permanente, estabelecidas no aludido art. 2º do Código Florestal de 1965, passaram a ser denominadas reservas ou estações ecológicas. No entanto, a Lei 6.938/1981 também silenciou quanto à dimensão da área no entorno de reservatórios d’água artificiais que merecia especial proteção.
Assim, o Dec. 89.336/1984, ao regulamentar a Lei 6.938/1981, em seu art. 4º, atribuiu ao CONAMA a competência para estabelecer as normas e os critérios para o uso dos recursos ambientais existentes nas reservas ecológicas. Nesse passo, o CONAMA editou a Res. 4/1985, cujo art.3º, II, determinava que ditas reservas ecológicas se estendiam por uma faixa de 100 metros ao redor das represas hidrelétricas.
Observe-se que a referida Resolução não impunha ao empreendedor, concessionário de aproveitamentos hidrelétricos, a obrigação de adquirir os imóveis do entorno dos reservatórios artificiais, destinados à instituição de tais áreas de proteção. De efeito, tal obrigação recaía ao proprietário das terras, que deveria preservar as áreas marginais aos reservatórios artificiais.
Ocorre que, em 18.07.2000, ao ser editada a Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, revogou-se expressamente o art. 18 da Lei 6.938/1981 e, por decorrência, foi ab-rogada a Res. Conama 4/1985.
Com isso, retornou-se à situação anterior à edição da Lei 6.938/1981, de modo que as reservas ecológicas voltaram a ser vegetação de preservação permanente; e, mais uma vez, abriu-se uma lacuna sobre a definição da largura da área ao redor dos reservatórios d’água artificiais onde deveria ser protegida a vegetação considerada de Preservação Permanente.
Essa situação perdurou até 25.08.2001, quando foi editada a MedProv 2.166-67/2001, que inseriu significativas alterações no Código Florestal de 1965.
Dentre as alterações introduzidas, e para o que é de interesse, destaca-se a redação do art. 2º que passou a considerar não só a vegetação, mas a área no entorno dos reservatórios como sendo de preservação permanente, possuindo ela vegetação ou não.
Além disso, foi inserido o §6º no art. 4º, dispondo que “na implantação de reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das áreas de preservação permanente criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do Conama”.
Como se vê, o Código Florestal de 1965, ao ser alterado pela referida Medida Provisória, além de estabelecer obrigações de desapropriação e aquisição de Área de preservação permanente, atribuiu ao Conama a fixação dos limites e os parâmetros dessas áreas.
Nesse passo, o Conama editou a Res. 302/2002, fixando, em seu art. 3º, que as Áreas de Preservação Permanente no entorno de reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas deveria ser de 30 (trinta) metros e, para os localizados em áreas rurais, de 100 (cem) metros.
Portanto, do histórico acima, pode-se concluir, em síntese, que: (a) antes da edição da Res. Conama 4/1985, que regulamentava a Lei 6.938/1981, não existia norma que fixasse a faixa na qual deveria ser protegida a vegetação do entorno de reservatórios d’ água artificiais; (b) com o advento da Res. Conama 4/1985 previu-se como reserva ecológica passível de proteção a vegetação existente na faixa de 100 metros no entorno das represas hidrelétricas, não se exigindo, no entanto, que o empreendedor adquirisse tais áreas; e (c) com a revogação dessa Resolução pela Lei 9.985, publicada em 18.07.2000, o ordenamento jurídico deixou de fixar a metragem das áreas no entorno dos reservatórios artificiais, vazio esse que só foi preenchido com a edição da Res. Conama 302/2002.
Tendo em vista a superveniência da Lei nº 12.651/2012, tem-se um quadro normativo claro do ponto de vista conceitual, na medida em que serão consideradas, com suporte numa interpretação sistemática, Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, as áreas – e não apenas a vegetação - no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento e, quanto aos reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, a faixa da Área de Preservação Permanente será a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum. É possível extrair-se, neste último trecho, portanto, um elemento espacial (faixa de APP compreendida pela distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum), um elemento finalístico (destinados à geração de energia ou abastecimento público) e um elemento temporal (contratos registrados ou que tiverem seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001).
Inicialmente, cumpre observar que o dispositivo supra trouxe diverso regime de proteção para os ambientes de que trata, uma vez que, previamente à edição da Lei em destaque, vigiam sem controvérsias os comandos da Resolução nº 302, de 20 de março de 2002[3], do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA. Neste ponto, é importante destacar que o dispositivo, ao normar o período da assinatura dos contratos de concessão ou autorização anteriores à Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, confirma a mens legis (e legislatoris) de que a Resolução CONAMA nº 302/2002 decaiu e assim, entendeu oportuno e conveniente, disciplinar de forma intertemporal estas situações perfeitas no tempo.
Considerando que a temática ora examinada dispõe acerca de áreas de preservação permanente, é salutar transcrever o conceito legal destes ambientes, previsto no inciso II do artigo 3º da Lei nº 12.651, de 2012, textus:
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:
[...]
II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;
Na concepção de Paulo Afonso Leme Machado, uma vez que as áreas de preservação permanente tangenciam o direito natural, fundamental e humano de propriedade humano de propriedade, sua delimitação (rectius: conformação) não pode ser estabelecida apenas por ato do Poder Executivo, mas, exclusivamente, pelo Poder Legislativo, com a possibilidade de deslegificação ou regulação técnica pelo Executivo, dada a indelegabilidade de matérias afetas aos direitos individuais[4].
Conforme assinala Lucas de Carvalho, afigura-se relevante conceber que:
A preservação permanente se dá sobre a área e não sobre eventual existência de vegetação na mesma. Seja a área formada por floresta nativa, seja formada por gramíneas plantas, seja constituída por pedras, estará protegida pela lei. Trata-se de Área de Preservação Permanente, e não de Florestas de Preservação Permanente[5]. (grifos não constantes do original)
Os ensinamentos retro são alicerçados na doutrina de Gouvêa, que, por sua vez, destaca a redação do inciso II do artigo 3º da Lei nº 12.651, de 2012, precisamente, da expressão “coberta ou não por vegetação nativa”. Segundo Gouvêa:
uma das razões arguidas para a inclusão desse esclarecimento (não cobertas por vegetação nativa) se deve à necessidade de deixar claro que as áreas já desmatadas não perdiam sua característica de APP, inviabilizando o argumento até então muito utilizado de que não mais se tratava, ali, de vegetação permanente, uma vez que esta já fora suprimida no passado[6].
Artigas e Rosa observam que, previamente à edição da Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001, a proteção não recaía às áreas circundantes dos reservatórios, mas, sobre a vegetação eventualmente existente. Noutros termos, diante da inexistência de vegetação, não havia ambiente a ser protegido[8].
Nesta senda, dessume-se que a existência de áreas de preservação permanente no entorno dos reservatórios artificiais de água de que trata o artigo 62 da Lei nº 12.651, de 2012, independem de cobertura por vegetação nativa, bem como também independem de eventuais condições de inundação, dentre outras configurações paisagísticas. Neste ponto cai a lanço destacar que também há tutela dos recursos hídricos, indispensáveis ao abastecimento público, e às questões energéticas.
Compreendidos estes pontos, vê-se que 3 (três) controvérsias pairam sobre este artigo 62 da Lei nº 12.651/2012. A primeira controvérsia sobre a superveniência das Leis nº 12.651/2012 e 12.727/2012, e seus impactos no mundo infralegal, principalmente nas Resoluções CONAMA, foi iniciada pelo Ministério Público Federal quando expôs os fundamentos do ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs nºs 4901, 4902 e 4903 em face de inúmeros dispositivos daquelas leis, bem como algumas pouquíssimas decisões judiciais que declararam, incidentalmente, a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 12.651/2012, determinando aplicação da normação editada pelo CONAMA, ainda sob a égide do antigo Código Florestal (Lei nº 4.771/65). A segunda controvérsia diz respeito à (ir)retroatividade do dispositivo e a última toca a (in)validade das autuações firmadas anteriormente à nova lei. Detalhemos a primeira, objeto deste estudo.
2.2. Da correta compreensão jurídica do "princípio da vedação ao retrocesso (sócio)ambiental"
Compilando os fundamentos das ações judiciais que tratam sobre a (in)constitucionalidade do art. 62 da Lei nº 12.651/2012 e abstraindo as questões particulares das demandas para centrar-se na constitucionalidade da questão, dessume-se a seguinte linha de questionamentos: a) O art. 225 da CRFB/88 garante direitos fundamentais e humanos e que o princípio do retrocesso dos direitos socioambientais decorre implicitamente do sistema constitucional; b) Tal princípio além de ser uma construção doutrinária, possui suporte normativo e é perfeitamente aplicável para "fulminar qualquer artigo de lei (em sentido lato) que importa em redução do nível mínimo de proteção aos direitos socioambientais"; c) A cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e a prevalência dos direitos humanos são princípios que regem a República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais e seriam desrespeitados pelo retrocesso ambiental. Também haveria malferimento do art. 5º, XXXVI da CRFB/88, especificamente a segurança jurídica da proteção ao direito adquirido; d) A inobservância da proibição de retrocesso ambiental fere cláusula pétrea constitucional (art. 60, §4º, inciso IV da CRFB/88); e) As futuras gerações poderiam ser comprometidas com a nova lei; f) O art. 225, §1º impõe a obrigatoriedade de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, e a proibição de qualquer comportamento que comprometa a integridade dos atributos ambientais, o que não seria respeitado pelo apontado dispositivo; g) Após demonstrar a legislação revogada (Lei nº 4.771/65, artigos 2º e 4º) em cotejo com a Lei nº 12.651/2012 e as inúmeras funções ecológicas das áreas de preservação permanente, sustenta-se que "toda e qualquer legislação posterior à Lei 4.771/1965 somente denota validade se não vier a reduzir a proteção jurídica ambiental e, também, se conseguir manter todas as funções ecológicas e os serviços ecossistêmicos acima elencados"[7]; h) O princípio do retrocesso ambiental está consolidado na jurisprudência pátria.
Considerando todos os pontos e argumentos acima, vê-se, na verdade e em essência, que a questão central é, de fato, aquilatar em face do Estado Constitucional Socioambiental Brasileiro se o art. 62 da Lei nº 12.651/2012 viola o princípio do retrocesso socioambiental. Todos os demais argumentos partem desta premissa e são dela dependentes, daí sua eleição como questão principal a ser enfrentada.
O princípio do retrocesso torna-se mandamento de otimização candente, num primeiro momento, no contexto de implementação e contextualização dos direitos sociais. Sua controvérsia já é verificada na própria terminologia, ante a quantidade considerável de denominações: a) princípio da vedação ao retrocesso; b) proibição de retrocesso; c) vedação de retrocesso social; d) efeito cliquet; e) proibição de contrarrevolução social; f) proibição de evolução reacionária; g) eficácia vedativa/impeditiva de retrocesso; e h) não retorno da concretização [9].
Num segundo momento, o princípio da vedação ao retrocesso migra para o Direito Ambiental, abarcando assim a implementação e compreensão dos direitos de novíssima dimensão. Contudo, como a noção de meio ambiente é multidimensional e abarca o meio ambiente natural, cultural, artificial, do trabalho e digital, de modo que a questão social está intimamente contida no conceito de meio ambiente, as considerações doutrinárias e jurisprudenciais são de todo pertinentes para o então epitetado "princípio da vedação ao retrocesso socioambiental".
Por ocasião das ADIs ajuizadas contra inúmeros dispositivos do novo "Código" Florestal, a Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Meio Ambiente, órgão da Advocacia-Geral da União, em resposta a pedido de informações formulados pela Secretaria-Geral de Contencioso da Advocacia-Geral da União - SGCT/AGU, exarou as Informações nº 52/2013/CGAJ/COJUR/MMA/ysd, de lavra do Advogado da União Dr. Yukamã S. Dias, e sobre a vedação ao retrocesso assim tal princípio foi abordado, in integrum:
II.4 – Do princípio da vedação do retrocesso em matéria sócio-ambiental
O princípio da vedação do retrocesso em matéria sócio-ambiental é invocado reiteradas vezes pelo MPF ao longo das alegações lançadas nas ADI nº 4901, 4902 e 4903.
Embora o não tenha desenvolvido de maneira substanciosa e precisa os contornos do invocado princípio, infere-se que o MPF pretende ver declarada a inconstitucionalidade de alguns dispositivos do novo Código Florestal - Lei nº 12.651/2012 –, fundando-se em um cotejo entre o regime florestal inaugurado pelo novel Código e o aquele disciplinado no Código revogado – Lei nº 4.771/65.
A partir desse cotejo, o MPF afirma que o atual Código Florestal confere regime protetivo diminuto, decorrendo daí o suposto 'retrocesso em matéria sócio-ambiental'.
É preciso perquirir, portanto, qual o conceito e os limites de incidência do referido princípio.
Inicialmente, partindo-se da premissa que a “vedação ao retrocesso” é um “princípio”, importante identificar quais as características definidoras de um princípio.
No magistério de Humberto Ávila, os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
Os princípios são finalísticos porque delimitam um estado ideal de coisas a ser perseguido, sem, entretanto, especificar a conduta que deve ser adotada para isso. Primariamente prospectivos porque buscam mais a orientar uma atuação para o futuro, do que determinar as conseqüências para atos ou fatos que já ocorreram. E complementares porque não se prestam a, isoladamente, determinar a solução para o caso concreto, mas sim funcionar como um argumento, uma motivação que aponta para determinada direção, mas que depende de uma interação com outras normas para possibilitar a solução final ( SANTOS, Luciano Roberto Bandeira Santos . Princípio da vedação do retrocesso social. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22261>. Acesso em: 3 abr. 2013.).
Nessa linha de intelecção, a concreção de um princípio admite satisfação em variados graus, a depender das variáveis fáticas e das possibilidades jurídicas apresentadas no caso em concreto. Em outras palavras, a incidência em maior ou menor escala de um princípio em um caso concreto, depende das variáveis fáticas e possibilidades jurídicas ofertadas pelo mesmo caso concreto.
Importante reter essa ideia, porquanto a definição que se costuma emprestar ao princípio da vedação do retrocesso transmite a noção de que o mesmo seria aplicado de uma forma “tudo ou nada”, ou seja, como se configurasse uma “Regra da Vedação ao Retrocesso Social”. Essa ilação distorcida se apresenta como um dos motivos pelos quais o citado princípio não vem recebendo a atenção necessária da doutrina e da jurisprudência.
Portanto, estabelecida a premissa de que a invocada vedação ao retrocesso é um “princípio” e que esse instituto, por definição, admite satisfação em variados graus, conclui-se que o princípio da vedação ao retrocesso não pode ser entendido como uma cláusula de barreira, estagnante, impeditiva e absoluta a ser oposta ao legislador.
Se de um lado o princípio da vedação do retrocesso busca garantir a manutenção da concreção de direitos e garantias fundamentais, é de se ponderar, de outro, que Carta Magna concebe a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito.
Dentro de um regime democrático, o legislador, a todo tempo, por dever de ofício, baseando-se na experiência do meio social, adota opções para regular uma determinada relação jurídica. Essas opções, evidentemente, refletem as condições políticas, econômicas, sociais e culturais do momento em que a proposta legislativa é concebida.
E é exatamente em razão da dinamicidade do cenário político, econômico, social e cultural que uma opção legislativa pode ser desqualificada ao longo do tempo, demandando ajustes e adaptações à nova realidade.
É preciso, nessa senda, levar em conta o princípio da revisibilidade das opções legislativas, que implica na possibilidade do legislador rever as opções que culminaram com a concretização de direitos fundamentais sociais no plano infraconstitucional, revogando ou reformando leis, o que pode importar em redução do grau de subjetivização dos direitos sociais constitucionalmente previstos. (SANTOS, Luciano Roberto Bandeira Santos . Princípio da vedação do retrocesso social. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22261>. Acesso em: 3 abr. 2013.).
Por um lado a revisibilidade é corolário da democracia e do pluralismo político, uma vez que não adiantaria garantir a alternância no poder se os diferentes grupos que chegassem a este não pudessem rever as opções realizadas pelo grupo anterior.
Por outro lado decorre da própria falibilidade humana. O legislador pode efetuar opções que se revelarão inadequadas e erros de cálculo, inclusive no que diz respeito à concretização de direitos sociais. Pode, por exemplo, conferir a um determinado direito social um conteúdo que posteriormente se revele oneroso demais para o Estado, e para a própria sociedade, inviabilizando o cumprimento daquilo que foi previsto ou a expansão de outros direitos igualmente fundamentais.
Repise-se, a própria dinamicidade dos fatos também requer a revisibilidade das opções legislativas. Determinadas escolhas que foram adequadas num certo contexto, ou conjuntura econômica, podem deixar de ser em outras circunstâncias, exigindo uma mudança de prioridades e uma revisão daquelas escolhas.
No quadro acima exposto, não se justifica que o legislador fique vinculado às opções anteriormente realizadas e não possa retroceder na concretização de determinado direito social.
Mais ainda. Perfilhando-se o entendimento de que o princípio da vedação do retrocesso social constitui óbice absoluto a qualquer proposta legislativa tendente a redimensionar a concreção de um direito social, estar-se-á conferindo uma intangibilidade a normas infraconstitucionais que não extensível nem mesmo às normas constitucionais. Explica-se.
Deveras, as normas constitucionais – tirante aquelas que abrigam cláusulas pétreas – podem ser alteradas pelo Poder Constituinte Derivado, por meio de emendas constitucionais. Embora o processo legislativo seja mais complexo, fato é que as normas constitucionais podem ser alteradas.
Pois bem, aplicando-se de maneira extremada o princípio da vedação do retrocesso social, pode-se chegar a hipóteses absurdas com total subversão da estrutura hierárquica das normas. Por exemplo: caso uma norma infraconstitucional densifique um determinado direito social, essa norma não poderá ser alterada pelo legislador de maneira a redimensionar a concreção do direito social correspondente. Frise-se: a norma não poderá ser alterada. Essa intangibilidade da norma infraconstitucional pode colocá-la, dentro da clássica pirâmide hierárquica das normas, acima da norma constitucional. A toda evidência, não é esse o contorno do princípio da vedação do retrocesso.
Importante salientar que as alterações legislativas não devem suprimir o direito social densificado por norma infraconstitucional. Assim, começa-se pela noção de conteúdo essencial mínimo de um direito. Este conteúdo é representado por aquele núcleo do direito que não pode ser violado, sob pena de aniquilação do próprio direito. Desta forma, configura esta noção um dos limites para a discricionariedade do legislador, que não pode retroceder na concretização de determinado direito social de forma a violar este núcleo, caso em que incidirá em inconstitucionalidade.
Certamente não se trata do caso em questão.
Conforme dito linhas acima, a Lei nº 12.651/2012 inaugura uma nova perspectiva em termos de gestão florestal. As ações de proteção, monitoramento, controle e fiscalização que outrora eram previstas, mas não efetivas, passam a ser o mote do novo Código. A previsão da criação de Planos de Regularização Ambiental nas diferentes esferas de governo, bem como a criação de um Cadastro Ambiental Rural, são pontos sintomáticos da preocupação estatal em tornar efetiva a proteção dos biomas.
Junto dos instrumentos de controle, monitoramento e fiscalização vêm, em igual importância, as medidas de recuperação do passivo ambiental, sobretudo em segmentos críticos, como são as áreas rurais. Compatibiliza-se a restauração de áreas degradadas com o incentivo ao uso sustentável dos recursos naturais. Essa compatibilização de interesses, que outrora se proclamava antagônicos, difunde a cultura do reflorestamento entre aqueles que exploram os recursos naturais. Com efeito, passa-se a refletir o quão vantajoso é, sob as perspectivas ambiental e econômica, cultivar a cultura do reflorestamento.
Dessarte, não se pode afirmar que o Código Florestal atente contra o núcleo essencial mínimo de direitos constitucionais tais como direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais.
Assim, verifica-se que a proibição ao retrocesso social é uma imposição de princípios que regem o ordenamento constitucional que, juntamente com outros princípios e regras, opera de modo a perseguir a maximização da eficácia do sistema de direitos fundamentais como um todo. A vinculação do legislador aos direitos fundamentais impõe àquele que edite as normas necessárias para conferir eficácia aos direitos sociais constitucionalmente assegurados ( SANTOS, Luciano Roberto Bandeira Santos . Princípio da vedação do retrocesso social. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22261>. Acesso em: 3 abr. 2013).
Por se tratar de princípio não importa em uma vedação absoluta, mas exige que as alterações pretendidas pelo legislador infraconstitucional resistam à ponderação através de uma argumentação relacionada aos direitos fundamentais.
Dentro dessa ponderação, necessária à aplicação da vedação ao retrocesso social, devem ser sempre considerados alguns argumentos que podem afastar a proibição no caso concreto.
O princípio democrático e o pluralismo político (numa acepção material) irão constantemente oferecer elevada resistência à incidência da proibição ao retrocesso. A revisibilidade dos atos legislativos é inerente a uma democracia pluralista e a limitação a esta revisibilidade somente pode ocorrer em casos excepcionais.
É necessário também prestar o devido respeito à hierarquia das normas, evitando que uma aplicação indevida e mal fundamentada da proibição ao retrocesso acabe por subverter a referida hierarquia conferindo a normas infraconstitucionais uma proteção maior até mesmo do que aquela concedida a normas constitucionais.
Também o princípio da reserva do possível deve oferecer uma resistência significativa à incidência da proibição ao retrocesso social. O alto custo dos direitos sociais e a limitada disponibilidade de recursos financeiros devem ser considerados pelo juízo quando da ponderação a ser realizada até porque a intransigência na vedação ao retrocesso com relação a um direito pode dificultar e até mesmo inviabilizar a concretização de outros direitos fundamentais e de outras obrigações do Estado.
Nesta senda, forte no traço de que a vedação ao retrocesso socioambiental é um princípio constitucional implícito - e não uma regra -, é necessário perquirir precisamente seu âmbito de incidência, seu núcleo fundamental (tatbestand), já se sabendo que existirão casos em que, ante sua natureza principiológica, retornos serão admissíveis, seja em razão de sua própria compreensão - é dizer, a partir da correta delimitação de sua intelecção -, seja em razão do sopesamento deste princípio com outros princípios de igual estatura constitucional, resultando na preponderância destes sobre aquele.
De modo comezinho, sabe-se que a vedação ao retrocesso inibe "uma redução injustificada do grau de concretização alcançado por um direito fundamental (...)"[10]. A doutrina, no entanto, aponta precisamente seus contornos . Marcelo Novelino, invocando as lições de Jorge Miranda e José Carlos Vieira de Andrade, assim aclara a questão, textus:
No tocante à natureza e ao âmbito de incidência, o princípio costuma ser invocado tanto como limite extrajurídico oponível ao Poder Constituinte originário, quanto como limite jurídico imposto aos poderes públicos encarregados da concretização dos direitos fundamentais de caráter prestacional. Nesse sentido, teria por finalidade impedir a extinção ou redução injustificada de medidas legislativas ou de políticas públicas adotadas para conferir efetividade às normas jusfundamentais. A abrangência deste princípio deve ficar restrita, no entanto, aos direitos já sedimentados "na consciência social ou no sentimento jurídico coletivo" (MIRANDA, 2000) ou sobre os quais haja "consenso profundo" formado ao longo do tempo (ANDRADE, 2001), não devendo sua aplicação ser estendida aos pormenores da regulamentação. (grifei)
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal utilizou esta baliza para delimitar o princípio da vedação ao retrocesso, ainda que em assunto diverso, senão vejamos:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ELEITORAL. APLICABILIDADE DA LEI COMPLEMENTAR Nº 135/2010 A FATOS ANTERIORES. ENTENDIMENTO SEDIMENTADO PELO PLENÁRIO DA SUPREMA CORTE NO JULGAMENTO DA ADI Nº 4.578. PREENCHIMENTO DE REQUISITOS PARA REGISTRO DE CANDIDATURA. QUESTÃO QUE DEMANDA ANÁLISE DE DISPOSITIVOS DE ÍNDOLE INFRACONSTITUCIONAL. 1. A aplicação da Lei Complementar nº 135/2010 a fatos anteriores não fere o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral. 2. O preenchimento dos requisitos para fins de registro de candidatura, quando sub judice a controvérsia, encerra análise de normas infraconstitucionais. Precedente: ARE 561.902-AgR/MA, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 23/2/2011. 3. In casu, o acórdão originariamente recorrido assentou: “AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2012. INDEFERIMENTO DO REGISTRO. CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. INELEGIBILIDADE VERIFICADA. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À IRRETROATIVIDADE DAS LEIS. FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA NÃO INFIRMADOS. SÚMULA 182 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.” 4. Agravo regimental DESPROVIDO.(ARE 737811 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 20/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 12-06-2014 PUBLIC 13-06-2014) (Grifei)
Ora, cambiar, por meio de lei (ato normativo primário), uma faixa de APP fixada de modo geral e abstrato em uma Resolução CONAMA ("X" metros) pela distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum, sem qualquer margem de dúvida não se está avançando sobre tema sedimentado na consciência social ou no sentimento jurídico coletivo, muito menos em seara em que há consenso profundo formado pelo cair da ampulheta, tampouco consenso básico. De fato, se houvesse, por exemplo, a supressão do instituto em si da APP, poder-se-ia objetar a vedação ao retrocesso socioambiental. Contudo, a discussão da metragem desta área não está compreendida pela vedação do retrocesso.
Assim, vê-se que a invocação do princípio do retrocesso ambiental é indevida para o art. 62 da Lei n. 12.651/2012, posto que a real diminuição de eventual APP e discussão de metragem/área não está abrangida pelo multicitado princípio.
Sobre este ponto, aqueles que questionam a constitucionalidade do art. 62 da Lei Lei º 12.651/2012 apenas invocam o debatido princípio, tratando-o como uma regra, mas sequer enfrentam a metragem da APP como questão já clara na consciência social, sentimento coletivo, com consenso profundo. Há uma dúplice impropriedade já neste ponto.
Ato contínuo, pela natureza principiológica da vedação ao retrocesso, não será surpresa constatar sua antinomia (própria e imprópria) com outros princípios, como a segurança jurídica e o desenvolvimento sustentável - outros 2 fortes princípios também da seara ambiental -, de modo que o legislador, ao idealizar o art. 62 da Lei º 12.651/2012, é o legítimo árbitro para estatuir, em nível normativo primário, qual deles haverá de ter primazia. In casu, valorizou-se sobremaneira a questão de segurança jurídica, daí sua menção como norma transitória e não nos artigos exordiais do plexo normativo relativo à APP. Deste modo, o legislador verificou que entre o desenvolvimento sustentável, a segurança jurídica e um possível retrocesso ambiental, optou por aqueles dois primeiros, tão constitucionais quanto este último.
Por fim, tratando-se de diminuição tolerável da proteção ambiental, não se pode olvidar da famosa "teoria dos limites dos limites" dos direitos fundamentais, segundo a qual a limitação de tais direitos deve, concomitantemente, ser (1) geral e abstrata, (2) salvaguardar o núcleo essencial do direito em proscênio, (3) obedecer à cláusula de legalidade, (4) ser irretroativa, como regra, e (5) proporcional.
A proporcionalidade estaria esvaziada se não houvesse um correspondente ganho de outros valores. Contudo, trata-se de uma restrição proporcional, uma vez que é justificada pela valorização de outros valores jusfundamentais, a exemplo da segurança jurídica, tão enfatizada no histórico do instituto, como visto acima na compreensão do próprio art. 62 da Lei n. 12.651/2012, sobretudo diante da caducidade da Resolução CONAMA nº 302/2002, assim como o desenvolvimento sustentável. Era ônus dos que questionam a constitucionalidade do dispositivo com fulcro no princípio da vedação ao retrocesso provar que o prejuízo ambiental do art. 62 da Lei nº 12.651/2012 não foi compensado em outras passagens do "Código".
Neste contexto, deve o hermeneuta compreender a Lei nº 12.651/2012 em sua totalidade, sistemicamente, e não de modo insular, considerando assim que eventuais perdas pontuais foram compensadas com ganhos expressivos, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), a disciplina da recuperação de áreas degradas (PRADs), a disciplina mais minudente da gestão e exploração florestal, a proibição do uso do fogo e controle dos incêndios, etc. Esse perfil sequer objeto de ônus argumento é.
Por fim, é sempre de bom alvitre relembrar que, obviamente, não é de se festejar uma (possível) diminuição da proteção ambiental como a debatida, mas não se pode fazer tábula rasa de que é necessário compreender o sistema constitucional corretamente, posto que forçar a aplicação de princípios constitucionais, de modo dogmaticamente equivocado, resulta no início da desconstrução de todo um sistema, in casu, o jurídico, que passaria a ser um mero amontoado de normas sem coerência e, perniciosamente, cada vez casuístico ao arrepio e estorvo do pós-positivismo.
3. ConclusãoÀ luz do exposto, conclui-se que o art. 62 da Lei nº 12.651/2012 não ofende o princípio constitucional implícito da vedação ao retrocesso ambiental, posto que a diminuição da metragem da APP referida no aludido dispositivo não está avançando sobre tema sedimentado na consciência social ou no sentimento jurídico coletivo, muito menos em seara em que há consenso profundo formado pelo cair da ampulheta. Também a diminuição da proteção ambiental foi compensada com outros institutos benéficos constantes da Lei nº 12.651/2012, afastando assim a aplicação do princípio e respeitando a proporcionalidade. Deste modo, a solução para o prejuízo ambiental deve ser buscada no processo político de alteração legislativa, e não por meio da subversão e aplicação equivocada do princípio constitucional implícito do retrocesso ambiental a ponto de transformá-lo numa regra.
4. Referências[1] Projetos Hidrelétricos. Disponível em: <http://www.antonioguilherme.web.br.com/Arquivos/proj_hidro.php>>. Acesso em 26 dez. 2017.
[2] ARTIGAS, Priscila Santos e ROSA, Maria Clara R.A. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Leme (Orgs.). Novo Código Florestal: comentários à Lei 12.651,de 25 de maio de 2012 e à Med. Prov. 571, de 25 de maio de 2012. 2ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 447-449.]
[3]Resolução nº 302, de 20 de março de 2002. Dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res02/res30202.html Acesso em: 26/12/2017.
[4] MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22ª Ed. Malheiros: São Paulo, 2014, p. 874.
[5] CARVALHO, Lucas Azevedo de. O Novo Código Florestal Comentado Artigo por Artigo. 1ª Ed. Juruá: Curitiba, 2013, p. 102.
[6] GOUVÊA, Yara Maria Gomide. In: CARVALHO, Lucas Azevedo de. O Novo Código Florestal Comentado Artigo por Artigo. 1ª Ed. Juruá: Curitiba, 2013, p. 102.
[7] Alegação constante do Processo Judicial nº 00389002020138130144, em trâmite no TJMG.
[8] ARTIGAS, Priscila Santos; ROSA, Maria Clara R. A Gomes. Art. 62. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Coord.). Novo Código Florestal: comentários à Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto 7.830, de 17 de outubro de 2012. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
[9] Compilação realizada por Marcelo Novelino, em NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. - 11. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p.463-464.
[10] NOVELINO, Marcelo. Op. Cit, p. 463.
Advogado da União atuante na Coordenação-Geral de Matéria Finalística da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Meio Ambiente - CONJUR/MMA. "Advogado Referência em Licenciamento Ambiental e Legislação Florestal". Ex-Coordenador-Geral de Assuntos Jurídicos da CONJUR/MMA. Membro do Núcleo Especializado Sustentabilidade, Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União - NESLIC/CGU/AGU. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Professor de Direito Constitucional, Administrativo e Civil da Faculdade Asper/PB. Ex-Assessor de Juiz no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Ex-Técnico Judiciário/Área Judiciária do TJPB; Ex-sócio do Escritório de Advocacia - Cleanto Gomes & Advogados Associados (João Pessoa/Paraíba).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDEIROS, Olavo Moura Travassos de. Análise da constitucionalidade do art. 62 do Novo Código Florestal à luz do princípio da vedação ao retrocesso ambiental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jan 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51233/analise-da-constitucionalidade-do-art-62-do-novo-codigo-florestal-a-luz-do-principio-da-vedacao-ao-retrocesso-ambiental. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
Por: VAGNER LUCIANO COELHO DE LIMA ANDRADE
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