1. INTRODUÇÃO
Embora não seja tema pacífico na doutrina, pode-se conceituar serviços públicos como as atividades materiais que o Poder Público presta direta ou indiretamente - a cargo dos seus delegados - de modo a satisfazer necessidades ou comodidades do todo social.[1] Da mesma maneira, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino consideram serviço público como a atividade administrativa consubstanciada em prestações as quais diretamente representem, em si mesmas, utilidades ou comodidades materiais para a população em geral, realizadas pela administração pública e por particulares delegatários.[2] Os serviços públicos se submetem ao regime público, isto é, seguem as regras de Direito Público e, entre outros princípios, regem-se pelo princípio da Continuidade.
A assiduidade e a cogência na prestação se justificam pelo fato de que muitas das necessidades da coletividade são inadiáveis. Assim, diante da garantia de busca por resultados positivos, afere-se a existência do supracitado princípio, o qual guarda, ainda, relação com o princípio da Eficiência. Segundo os ditames do princípio da Continuidade, resta enunciado que os serviços públicos não serão interrompidos ou paralisados a não ser em casos extraordinários, tais como situações emergenciais ou, com prévio aviso, por razões de ordem técnica ou por motivo de inadimplência dos usuários desde que respeitado o interesse da coletividade, nos termos do art.6 º, § 3 º da lei n. 8.789/95, que trata do regime de concessões e permissões. Nesse sentido, questiona-se de que forma o assunto da interrupção da prestação do serviço público em decorrência de ausência de pagamento é tratada em face das premissas do cenário jurídico brasileiro.
2. DESENVOLVIMENTO
O art. 175 da CF/88 dispõe que, no que tange o regime de concessões ou permissões, incumbe ao Poder Público, nos termos da lei, a prestação de serviços públicos, tema o qual veio a ser regulamentado pela lei n. 8.987/85. No capítulo III, art. 7º, da citada lei, estão dispostos os direitos e obrigações dos usuários de serviços públicos prestados por meio de concessão ou permissão, entre eles o de receber um serviço adequado. Indaga-se, assim, a possibilidade de aplicação do disposto na lei n. 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor (CDC), aos usuários de serviço público haja vista a exigência constitucional de edição de lei específica para a disciplina da matéria.
O art. 2 º do CDC dispõe que é consumidor toda pessoa física e jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Da leitura, é possível compreender que o usuário de serviços públicos é consumidor, restando protegido pelos ditames do código consumerista. Nessa esteira, o Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou posicionamento.[3] Da mesma maneira, o art. 22, caput, do mesmo diploma dispõe que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias ou permissionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuo. Embora se possa dizer que tal dispositivo atende aos ditames do Princípio Constitucional da Eficiência da Administração Pública, infelizmente, ele se cala na conceituação dos serviços públicos essenciais.
De modo a elucidar o tema, observa-se que o art. 10 da lei n. 7.783/89 traz rol numerus clausus de serviços públicos essenciais, tais como abastecimento de água, distribuição de energia elétrica e combustíveis, assistência médica, venda de alimentos, controle de tráfego aéreo, telecomunicações, entre outros. Diógenes Gasparini[4] explica que, por sua natureza, os serviços essenciais são indispensáveis, de fornecimento imediato e a priori, de execução privativa da Administração Pública. Devem ser fornecidos com premência, razão pela qual se torna inafastável sua prestação. É mister salientar que a essencialidade dos serviços públicos muda em função de critérios temporais e espaciais, uma vez que o indispensável para uma sociedade não o é para outra.
Em defesa da não interrupção por inadimplência, Rizzatto Nunes[5] defende que lei que admite a cessação de serviços públicos por ausência de pagamento é inconstitucional, já que há cidadãos isentos do pagamento de taxas e tributos e nem assim há descontinuidade do serviço. Segundo o doutrinador, os direitos a uma vida digna e à saúde deveriam prevalecer sobre um direito ao crédito, sob pena de violação dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Continuidade dos Serviços Públicos e dos arts. 22 e 42 do CDC, pois o prestador de serviços pode cobrar o devido dos usuários de outro modo que não seja a sua paralisação. Da mesma maneira, Rafael Carvalho Rezende Oliveira sustenta que, para os partidores de tal ideário, a suspensão do serviço público traduziria uma forma abusiva de execução privada (autotutela) dos interesses do prestador, bem como haveria incidência do princípio da Vedação ao Retrocesso, uma vez que as normas do CDC as quais vedam a interrupção do serviço público não poderiam ser revogadas pela lei 8.987/95. Tal conclusão se baseia na tese de que as normas protetivas são direitos fundamentais, os quais devem ser efetivados de maneira progressiva, sendo inconstitucional qualquer atuação que os ponha em risco.[6] Nesse sentido, o STJ já decidiu que seria ilegítimo o corte no fornecimento de energia quando inadimplente comunidade simples de agricultores, na hipótese de discussão judicial da dívida e de depósito judicial de parte do valor de débito pelos devedores; e, o corte no fornecimento de energia elétrica em razão de débito irrisório no valor de R$0,85.[7]
Contudo, não parece arrazoado defender o inadimplemento de compromissos assumidos por livre escolha do contratante. Além da possibilidade da interrupção do serviço ser permitida por lei, é dever do usuário honrar o convencionado e remunerar a empresa pelo serviço público posto a sua disposição.[8] Não há qualquer obrigação do Poder Público em prestar serviços continuamente se não aufere a contraprestação adequada e, caso o fizesse, seria um estímulo a inadimplência, o que poderia ocasionar a impossibilidade da prestação adequada do serviço para toda a coletividade, o que não é desejável. Da mesma forma, é uma afronta ao Princípio da Isonomia o fato de o usuário inadimplente fazer uso dos mesmos serviços que o consumidor que arca com suas obrigações. Nesse sentido, já decidiu o STF no Mandado de Segurança n. 16.526, de relatoria do Ministro Victor Nunes Leal.
Obviamente, tal conclusão não deve ser posta em prática em casos extremos, como, por exemplo, o caso de enfermo no leito de morte que não tem condições de arcar com sua subsistência, uma vez que os princípios constitucionais devem ser harmonizados para se chegar a uma solução conforme o sistema normativo. Se, por um lado, a lei permite a interrupção (observância ao princípio da Legalidade), de outra monta também deve ser respeitado o direito à vida, à saúde e a existência digna.[9]
Há ainda uma terceira corrente que considera a impossibilidade de interrupção de serviços compulsórios (os recompensados com tributos) mesmo que não haja adimplemento pelo usuário, pois já hão instrumentos processuais específicos para a cobrança de tributos. Por outro lado, os serviços facultativos (que são remunerados por tarifas) poderiam ser interrompidos.[10] Situação diferente é quando a interrupção do fornecimento de serviço essencial à sobrevivência pode vir a prejudicar toda uma coletividade. Nesse caso, a suspensão do fornecimento não pode ocorrer, já que o art. 6º, § 3º, da Lei n. 8.987/95 diz que deve ser observado o interesse da coletividade. Nessa esteira, há precedente jurisprudencial do STJ.[11] O colendo Tribunal também tem entendimento pacífico no sentido de que é incabível a suspensão do fornecimento do serviço público em decorrência da exigência de débito pretérito, uma vez que a interrupção do serviço público pressupõe o inadimplemento de dívida atual, relativa ao mês de consumo, não cabendo a suspensão em razão de débitos antigos.[12]
3. CONCLUSÃO
Ex positis, entende-se que a interrupção do fornecimento de serviços públicos essenciais por inadimplemento do usuário, tal como é o caso da energia elétrica é, via de regra, autorizada pela lei e jurisprudência. Porém, em respeito ao Princípio da Dignidade Humana, essa regra comporta as exceções já expostas ao longo do trabalho.
Nessa toada, explana perfeitamente Matheus Carvalho a possibilidade de paralisação do serviço por inadimplemento do usuário deve ser considerada constitucional, sendo mister apenas que o usuário seja previamente avisado nos moldes da legislação pátria como já explicitado. Trata-se de aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, o qual acaba por evitar o enriquecimento sem causa do último, que teria a manutenção da prestação sem o pagamento dos custos relacionados.[13]
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.
CARNEIRO, Frederico Ivar. O Princípio da Continuidade dos Serviços Públicos e a interrupção em razão do inadimplemento pelo Consumidor. Disponível em: Acesso em 17 dez 2017.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodium. 2016.
GASPARINI, Diógenes. Serviço Público. Direito Administrativo, 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. Cap. VIII, P. 290-309. Material da aula da Disciplina: Direito Administrativo Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público -Anhanguera-Uniderp |LFG
LIMA, Wesley de. Da interrupção de serviço público essencial. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2956>
Acesso em 19 dez 2017.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 7 ª edição. Niterói: Impetus, 2013.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2017.
SCATOLINO, Gustavo, TRINDADE, João. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodium, 2016.
SCHREIBER, Rafael. Quando se trata de concessionários de serviços públicos, é lícito ao fornecedor interromper o serviço se usuário deixa de pagar? Disponível em: Acesso em 18 dez 2017.
[1] MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 7 ª edição. Niterói: Impetus, 2013. P. 531.
[2] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. P. 759.
[3] STJ - CC: 122559 DF 2012/0098291-4, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 16/09/2013, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 25/09/2013
[4] GASPARINI, Diógenes. Serviço Público. Direito Administrativo, 12 ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. Cap. VIII, P. 290-309. Material da Disciplina: Direito Administrativo Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público Anhanguera-Uniderp | LFG
[5] NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000. P 310/311.
[6] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2017. P. 303.
[7] STJ, 2ª T., última decisão: 12.12.2006, REsp. 876723/PR e STJ, 1ª T., data da decisão: 18.05.2006, REsp. 811690/RR
[8] LIMA, Wesley de. Da interrupção de serviço público essencial. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2956> Acesso em 19 dez 2017.
[9] SCATOLINO, Gustavo, TRINDADE, João. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodium, 2016. P.727.
[10] SCHREIBER, Rafael. Quando se trata de concessionários de serviços públicos, é lícito ao fornecedor interromper o serviço se usuário deixa de pagar? Disponível em: Acesso em 18 dez. 2017.
[11] STJ - REsp: 400909 RS 2001/0194567-7, Relator: Ministro FRANCIULLI NETTO, Data de Julgamento: 24/06/2003, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 15.09.2003 p. 292
[12] STJ - AgRg no AREsp: 196374 SP 2012/0133920-4, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 22/04/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/05/2014
[13] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodium. 2016. P. 603.
Conciliadora no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2016). Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Elpídio Donizetti (2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEMOS, Milena Tenório de. Interrupção no fornecimento de serviços públicos por inadimplência do usuário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51336/interrupcao-no-fornecimento-de-servicos-publicos-por-inadimplencia-do-usuario. Acesso em: 23 dez 2024.
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