RESUMO: O presente artigo pretende abordar criticamente a compreensão atual da doutrina brasileira a respeito do planejamento tributário, bem como apontar possíveis vertentes que se entende mais adequadas aos princípios constitucionais tributários e ao estado atual da ciência jurídica.
O planejamento tributário costuma ser definido pela doutrina como a organização dos negócios de uma pessoa física ou jurídica com o objetivo de evitar, reduzir ou postergar a incidência tributária. Pode ser entendido como um direito decorrente da liberdade de fazer ou deixar de fazer algo que não seja vedado ou exigido por lei (CF, art. 5º, II).
Pode também, por outro lado, ser compreendido como um dever do administrador da empresa, pois não se admite que o administrador conduza os negócios da empresa de forma a pagar uma carga tributária o mais elevada possível. Essa constatação decorre do artigo 1.011 do Código Civil, segundo o qual o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.
A compreensão do planejamento deve ser feita à luz da constitucionalização do Direito, que não se dá apenas no Direito Civil, Administrativo ou Processual, mas também no Direito Tributário. Significa que as normas tributárias, além de se inserirem no próprio texto constitucional, devem obediência aos princípios constitucionais, à luz dos quais devem ser interpretadas. Essa necessidade decorre do pós-positivismo, fenômeno que surgiu após a Segunda Guerra Mundial e que abarca não só a constitucionalização do Direito, mas também a centralidade das constituições no ordenamento jurídico, a força normativa dos princípios e a reaproximação entre o Direito e a ética. Ou seja, o direito tributário não pode se isolar numa divisão incomunicável de normas legais. Deve, por outro lado, buscar a realização dos valores fundamentais encartados na Constituição, guiado pela ética no mister de regular as relações entre o ente tributante e o contribuinte.
Ao se analisar o planejamento tributário nos dias atuais, não cabe mais a análise fria e mecânica dos negócios empresariais à luz da estrita legalidade e da tipicidade fechada, como preconiza a doutrina tradicional. A pura e simples análise da regra matriz de incidência tributária pode conduzir a resultados nefastos e que aprofundam uma desigualdade de tratamento entre contribuintes, privilegiando não simplesmente o astuto, mas o poderoso e bem assessorado, em detrimento do empresário de poucos recursos, mas não menos importante para a economia nacional e a geração de empregos.
Desse modo, a mera operação de subsunção pode falhar nos casos em que o contribuinte se utiliza de artificialidades jurídicas para encobrir a substância do ato ou negócio, fugindo à tributação pela invocação de uma visão deturpada e mal intencionada do princípio da legalidade estrita.
Percebe-se que enquanto a legalidade e a segurança jurídica pode ser utilizada como defesa do contribuinte na legitimidade de certos planejamentos tributários, os princípios da isonomia e da capacidade contributiva permitem ao Fisco questionar certos negócios e operações. Basicamente existem duas correntes acerca dos limites ao planejamento tributário:
a) aquela que define que os limites ao planejamento tributário são apenas aqueles impostos pelo legislador, podendo os contribuintes exercer seus negócios pelas mais diversas formas, desde que não incorram em violação à lei. Para essa corrente, as autoridades fiscais não podem desconsiderar atos ou negócios praticados de acordo com a lei, sob o fundamento de que os atos ou negócios do contribuinte teriam como objetivo exclusivo a redução da carga tributária. Esses doutrinadores fundamentam-se, basicamente, nos princípios da legalidade, da tipicidade cerrada do direito tributário e da segurança jurídica, além da livre iniciativa econômica assegurada pela Constituição. Essa doutrina interpreta a norma tributária à luz do positivismo. Ilustrando esse posicionamento, Hugo de Brito Machado assevera que a Constituição de 88 garante a livre iniciativa econômica, impedindo a tributação por analogia em face da consagração do princípio da legalidade tributária, segundo o qual os contribuintes só podem ser tributados na medida em que consentirem por meio de seus representantes parlamentares.
b) aquela segundo a qual o planejamento tributário deve ser limitado também pelos princípios da isonomia e da capacidade contributiva. Essa posição defende que o Direito Tributário não pode ser excluído do fenômeno pós-positivista da constitucionalização do Direito, devendo também haver uma aproximação entre o Direito e a Ética no âmbito tributário. Além disso, a jurisprudência dos valores deve realizar uma ponderação entre os princípios da legalidade e segurança jurídica, de um lado, e os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, de outro. Para Marco Aurélio Greco, por exemplo, a capacidade contributiva não é apenas um limite negativo ao poder de tributar, mas também um comando positivo, devendo haver tributação onde se detectar a capacidade econômica.
A capacidade contributiva em sua acepção positiva determina a identificação, pela norma tributária, das manifestações de riqueza do contribuinte, o que se relaciona com a interpretação econômica do direito tributário, a qual por sua vez privilegia o conteúdo econômico das relações jurídicas, em detrimento do formalismo (análise dos fatos, e não dos rótulos). Originária do direito alemão, a interpretação econômica do direito tributário é repudiada pela doutrina formalista, para a qual o direito tem metodologia própria e não pode ser influenciado por critérios econômicos, próprios de outro campo de estudo. Contudo, a própria Constituição atual, em seu artigo 145, § 1º, gradua a tributação segundo a capacidade econômica do contribuinte, devendo a administração tributária identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Para os autores adeptos da interpretação econômica, esta seria apenas uma decorrência da interpretação teleológica, pois o legislador tributário, ao instituir um tributo sobre determinado fato gerador, está buscando alcançar um conteúdo econômico presente em certos atos e negócios jurídicos.
Percebe-se que o antagonismo entra as duas posições acima decorre do peso que se dá aos princípios: enquanto a primeira corrente concentra-se nos princípios da legalidade, segurança jurídica e na livre iniciativa, a segunda valoriza mais a isonomia e a capacidade contributiva, daí surgindo conclusões totalmente opostas sobre os limites do planejamento tributário e que terão implicações na análise de casos práticos da ordenação dos negócios jurídicos do contribuinte.
Contudo, além desses princípios existe um outro fator cuja análise e relevância conferida será determinante para a averiguação da legitimidade do planejamento tributário.
Trata-se do propósito negocial.
Um planejamento tributário possui propósito negocial quando a ordenação dos negócios do contribuinte tem finalidade societária, objetivando assim um aperfeiçoamento da atividade econômica e algum resultado diverso da exclusiva economia de tributos. Caso a finalidade de um determinado negócio, operação ou reorganização societária fosse exclusivamente a economia tributária, o autoridade administrativa poderia desconsiderar tais atos e aplicar a norma tributária evitada pelo contribuinte.
A doutrina norte-americana identifica o propósito negocial com base em três testes:
a) teste da permanência da reorganização societária;
b) teste da vantagem societária, pelo qual a reorganização deve assegurar um benefício à sociedade remanescente;
c) teste da economia fiscal, pelo qual não são lícitas as reorganizações se o único escopo for o de reduzir tributos.
Desse modo, o propósito negocial é exigido pela doutrina que requer limites maiores ao planejamento tributário, devendo o contribuinte, ao organizar seus atos e negócios, buscar uma finalidade negocial, e não um motivo exclusivamente tributário.
Para a corrente oposta, por outro lado, a motivação exclusivamente tributária na organização dos negócios do contribuinte é perfeitamente legítima, já que a economia de tributos levaria necessariamente a uma otimização da atividade empresarial, uma vez que a carga tributária representa um dos custos do empreendimento.
A identificação de uma ordenação de negócios do contribuinte como válida ou não revelará se houve elisão (economia de tributos legítima) ou evasão (fraude à lei tributária com o intuito de subtrair-se do dever de pagar tributos).
Na esfera administrativa federal, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) possui o entendimento firmado no sentido de que se deve exigir a presença do propósito negocial no planejamento tributário para que este seja inquestionável pelo Fisco.
Como se vê, a exigência do propósito negocial confere grandes poderes à administração para desconstituir operações empresariais.
E foi no intuito ampliar o controle da fiscalização tributária sobre os planejamentos tributários que a Lei Complementar 104/2001 acrescentou ao artigo 116 do CTN um parágrafo único, segundo o qual a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
O fundamento constitucional da norma acima repousa no artigo 145, § 1º da CF, segundo o qual os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Muitos doutrinadores apontam esse dispositivo como uma norma geral antielisão, proibindo-se as condutas evasivas do contribuinte com o poder geral conferido à autoridade tributária.
Embora a norma fale que a autoridade administrativa “poderá”, trata-se de um poder-dever, já que a atividade da autoridade fiscal é plenamente vinculada, nos termos do artigo 3º do CTN. Em relação aos atos a serem desconsiderados, percebe-se que eles representam atos caracterizadores da evasão (dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária). Não obstante, denominou-se de norma geral antielisão, levando alguns autores a crer que o legislador teria optado por evitar a elisão lícita.
Ocorre que o dispositivo fala expressamente em atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular, dando a entender tratar-se de um combate a atos ilícitos.
Essa divergência de compreensão da norma possui ligação com a cisão na doutrina a respeito do propósito negocial. Aqueles que aceitam os planejamentos tributários realizados com a finalidade exclusiva de pagar menos tributos entendem que o parágrafo único do artigo 116 do CTN só poderia ser utilizado contra manobras evasivas, jamais contra a elisão fiscal.
Já os que exigem a presença do propósito negocial para a legitimidade dos planejamentos tributários consideram o dispositivo comentado como um mecanismo de combate à elisão. Nesse sentido, tem-se que os negócios jurídicos praticados com o único propósito de fuga à imposição tributária não encontram sustentação jurídica, sendo viciados, posto que representam agressão à solidariedade social.
De qualquer modo, o parágrafo único do artigo 116 do CTN exige regulamentação por lei ordinária, o que foi feito pela Medida Provisória 66/2002, que perdeu sua eficácia por não ter sido convertida em lei.
Em que pese não produzir efeitos, referida medida provisória possibilitava expressamente, em seu artigo 14, a desconsideração de negócios praticados sem o propósito negocial, o que seria indicado pela opção por forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.
Diante da ausência de regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN, o debate entre os autores formalistas e aqueles que privilegiam a substância permanece acalorado.
Em que pese o respeito da doutrina formalista, ganha força a ideia de que o direito tributário não se rende a uma veneração cega e incondicional ao princípio da legalidade estrita, tendo em vista a interpretação teleológica propiciada pela interpretação econômica e pela aplicação dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva em sua acepção positiva.
A consideração do princípio da igualdade, como ideal de justiça fiscal, deve levar em conta que não existe uma única espécie de contribuinte, impotente diante do Fisco. Pelo contrário, há situações em que grandes corporações multinacionais são detentoras de enorme poderio econômico, sendo capazes de escapar da norma tributária em hipóteses nas quais empresas de menor porte contribuem para os cofres públicos. Tal situação coroa a astúcia e a concentração de riquezas, prejudicando gravemente o objetivo fundamental da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I). Além disso, o Código Civil de 2002, em seu artigo 187, define como ato ilícito o exercício de um direito fora dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (abuso de direito).
Um cenário como esse não é, de maneira alguma, o buscado por qualquer ideal de direito e justiça, não podendo prevalecer diante da força normativa dos princípios constitucionais da isonomia, da capacidade contributiva e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Mestrando em Tributação Internacional pelo IBDT. Procurador da Fazenda Nacional em Campinas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANTôNIO AUGUSTO SOUZA DIAS JúNIOR, . O Planejamento Tributário e os Princípios Constitucionais Tributários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 fev 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51359/o-planejamento-tributario-e-os-principios-constitucionais-tributarios. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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