RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar os principais aspectos da teoria da escolha pública, que procura estudar os comportamentos políticos a partir da perspectiva econômica. O trabalho também discute a aplicação das premissas dessa teoria à realidade político-econômica do Brasil, a partir da análise de algumas das possíveis causas do crônico desequilíbrio fiscal brasileiro, que persiste mesmo após a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Palavras-chave: teoria da escolha pública, orçamento público, crise fiscal, Lei de Responsabilidade Fiscal, Novo Regime Fiscal.
ABSTRACT: This article aims to present the main aspects of public choice theory, which seeks to study political behavior from an economic perspective. The paper also discusses the application of the premises of this theory to the Brazilian reality, based on the analysis of some of the possible causes of the chronic Brazilian fiscal crisis, even after the enactment of the Lei de Responsabilidade Fiscal.
Keywords: public choice theory, budget, fiscal crisis, Lei de Responsabilidade Fiscal, Novo Regime Fiscal.
SUMÁRIO: Introdução; 1 O papel do Estado na economia; 2 Dificuldades para controlar o orçamento público; 3 Lei de Responsabilidade Fiscal e as dificuldades para a sua aplicação; 4 O novo regime fiscal; Conclusão; Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Em tempos de graves crises econômicas, como a que o Brasil enfrenta atualmente, é sempre oportuna a discussão sobre o tamanho adequado do Estado e a forma como ele deve se relacionar com o mercado.
Diversos economistas e cientistas políticos já se revezaram tentando explicar de que modo e em que medida as instituições estatais devem intervir na economia de determinada nação.
Uma resposta relativamente moderna a esse problema é dada pela teoria da escolha pública, que procura estabelecer de que maneira os agentes políticos interagem com os agentes econômicos, buscando ainda explicar porque o Estado deve se abster de controlar a maior parte dos recursos disponíveis em determinada sociedade.
Neste trabalho, procuraremos analisar, em linhas gerais, em que consiste a teoria da escolha pública, buscando relacioná-la com os problemas políticos e econômicos enfrentados pelo Brasil, especialmente a histórica dificuldade que o país enfrenta para controlar o crescimento dos gastos públicos.
A pesquisa terá ainda como objetivo verificar se instrumentos como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda Constitucional nº 95/2017, que instituiu o Novo Regime Fiscal, podem auxiliar o país a encontrar o desejado equilíbrio fiscal.
1. O PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA
Como se sabe, a escassez de recursos, em contraposição às infinitas necessidades das pessoas, é um dos postulados básicos da ciência econômica.
Num contexto de mercado, em que as trocas de bens ocorrem livremente, o comportamento racional maximizador levará os agentes a realizar trocas até que os custos associados a cada troca se igualem aos benefícios aferidos, momento a partir do qual não mais ocorrerão trocas.[1]
De acordo com essa premissa, o Estado deveria intervir o mínimo possível na economia, de modo a evitar desperdícios e diminuição na eficiência do mercado.
Na clássica lição de Adam Smith, o mercado contaria com uma “mão invisível” que o regularia, dispensando a atuação do Estado, que deveria restringir sua atuação a três funções básicas: defender a sociedade contra a violência de outros países independentes; implementar um eficiente sistema de administração de justiça; criar e manter instituições e obras que não despertem o interesse dos particulares[2].
Embora não se possa negar a contribuição de Adam Smith para o desenvolvimento da teoria econômica, especialmente sob a vertente do liberalismo econômico, é certo que a obra do economista britânico não tratou adequadamente das denominadas falhas de mercado, situações nas quais o livre mercado não consegue alocar de modo eficiente os recursos disponíveis, gerando prejuízos para a sociedade.
A crise econômica de 1929 e a Grande Depressão que a seguiu são frequentemente lembradas como fatos que demonstram a insuficiência do modelo econômico proposto por Adam Smith como o mais adequado para o interesse social.
Embora todas as causas da crise de 1929 não estejam totalmente esclarecidas, Galbraith assevera que cinco principais fatores podem ter tido um efeito particularmente direto sobre o ocorrido: má distribuição de renda; má estrutura das empresas; má estrutura dos bancos; desequilíbrio na balança comercial americana e falta de conhecimentos econômicos.[3]
Como se observa, pelo menos quatro dos cinco fatores poderiam ser neutralizados a partir de uma adequada regulação do mercado pelo Estado.
Com efeito, com exceção da falta de conhecimentos econômicos, todos os demais fatores poderiam ter sido neutralizados ou mitigados a partir de uma regulação estatal consistente.
Veja-se, por exemplo, a deficiência da estrutura bancária. Na década de 1920, como não havia um controle estatal rígido sobre as instituições financeiras, adotavam-se práticas financeiras que favoreciam a espiral especulativa que culminou no crash da Bolsa de Nova York.
A Grande Depressão fez com que ganhasse força a chamada doutrina keynesiana, que defende a necessidade de uma forte intervenção estatal na economia para evitar os desequilíbrios que seriam inerentes sistema capitalista.
O keynesianismo defende a atuação do Estado na realização de grandes investimentos e na adoção de uma baixa taxa de juros, de modo a manter elevados níveis de emprego e um mercado de consumo que possa sustentar a economia no longo prazo.
No campo político, essas ideias fizeram surgir e se desenvolver o chamado Estado do bem-estar social, ou Estado keynesiano, padrão de política social que atribui ao Estado a repsonsabilidade por prover uma ampla gama de serviços públicos aos seus cidadãos.
O Estado do bem-estar social se desenvolveu nos Estados Unidos e na Europa ocidental, principalmente a partir do pós-Segunda Guerra. Ocorre que, a partir da década de 60, a diminuição no ritmo de crescimento da economia mundial, associada ao aumento da inflação e dos déficits públicos, fizeram surgir fortes questionamentos ao modelo keynesiano.
Nos Estados Unidos, esses questionamentos inspiraram o surgimento da teoria da escolha pública, a partir dos estudos do economista James Buchanan. De acordo com Marco Antonio Dias, duas grandes preocupações fomentaram o desenvolvimento da nova teoria: (i) a excessiva matematização da teoria econômica, com o consequente prejuízo para o que deveria ser objeto essencial da análise teórica (compreensão das motivações que explicam as decisões dos agentes econômicos) e (ii) a acentuada politização das decisões econômicas, que fazia com que a racionalidade econômica fosse substituída pelos interesses políticos[4].
O segundo ponto tem especial importância. Um Estado intervencionista pressupõe agentes políticos definindo a alocação de quantidade significativa dos recursos de determinado país. O keynesianismo defende que essa prática se justifica na medida em que esses recursos seriam direcionados ao atendimento do interesse público, ou seja, em benefício de toda a coletividade.
A teoria da escolha pública discute se os responsáveis pela condução das políticas públicas de fato se dedicam ao atendimento do interesse público. Mais do que isso, procura-se investigar se existe efetivamente um “interesse público”, ou se essa noção varia de acordo com os interesses das pessoas que estejam no poder em determinado momento.
Em outras palavras, a escolha pública defende que os homens não deixam de perseguir seus interesses particulares apenas por estarem investidos em uma função pública:
(...) dão-se conta de que os servidores públicos não são anjos, que as suas motivações não são necessariamente altruístas e que o homem não muda realmente de natureza consoante prossiga seus interesses privados ou esteja municiado de poderes públicos, no âmbito de funções para que haja sido investido.[5]
A respeito desse ponto, veja-se o que nos ensina a história política recente do Brasil. Em 2012 o governo federal editou a Medida Provisória nº 579, que mudava as regras do setor elétrico com o objetivo de obter uma significativa redução na tarifa da energia elétrica para as residências e indústrias brasileiras.
O anúncio dos percentuais de diminuição foi feito em 2013, diante de um cenário de forte impopularidade da então presidente da República. Em cadeia nacional de rádio e televisão, grarantiu-se aos brasileiros que a diminuição do custo da energia seria associada ao aumento da produção de energia elétrica.
Já naquela época, muitos especialistas alertavam que a diminuição no preço da energia era insustentável do ponto de vista econômico, e que as empresas geradoras e distribuidoras de energia teriam que suportar grandes prejuízos para subsidiar a redução de tarifas imposta pelo governo.
Nos anos seguintes, verificou-se que a preocupação dos especialistas era justificável e que a redução das tarifas não estava respaldada em estudos técnicos que demonstrassem sua viabilidade. Auditoria operacional conduzida pelo Tribunal de Contas da União[6] concluiu que a MP 579/2012 acabou restringindo a capacidade de investimento das elétricas, colocando em risco a sustentabilidade econômico-financeira do setor elétrico brasileiro.
Ao que tudo indica, o reajuste tarifário caracterizou-se como uma medida eleitoreira, que não tinha como objetivo fomentar a competividade do Brasil ou aumentar o bem-estar da população, mas ganhar a simpatia do eleitorado.
O efeito prático dessa política foi o seguinte: com as tarifas mais baratas, houve aumento do consumo e consequente aumento dos custos de produção (tendo em vista a necessidade de acionamento das termelétricas). O Tesouro Nacional teve que aportar vultosas quantias para subsidiar a produção de energia; em 2015, após as eleições presidenciais, os subsídios foram suspensos e as tarifas foram reajustadas, o que pressionou a inflação e agravou a crise econômica que assolava o país.
Fenômeno semelhante acontece constantemente com os preços dos combustíveis no Brasil. Como o governo federal detém o controle acionário da Petrobras, empresa que possui o monopólio do refino e importação de derivados do petróleo, acaba definindo o preço dos combustíveis com base em questões que vão além do fator econômico.
Assim, em épocas de inflação alta, por exemplo, o governo costuma não permitir o aumento dos preços dos combustíveis (que têm significativo impacto na inflação), deixando-os abaixo dos preços internacionais, ainda que isso implique renúncia de receitas e diminuição da capacidade de investimento da Petrobras[7].
Pode-se mencionar ainda, para finalizar, o exemplo dos governadores e prefeitos que inauguram, no final de seus mandatos, obras públicas de grande impacto social, com o objetivo de conquistar o eleitorado para uma possível reeleição. Essas obras costumam consumir vultosas somas de dinheiro público e são orientadas, muitas vezes, mais pelo apelo eleitoral do que pelas reais prioridades da comunidade naquele momento.
Esses exemplos corroboram uma das premissas da escolha pública, segundo a qual o Estado não é a instituição adequada para compensar as chamadas falhas de mercado. Sendo controlado por políticos que perseguem seus interesses individuais, o Estado, ao intervir na economia, utiliza recursos públicos para atender aos interesses privados daqueles que estão no poder e daqueles que lhes dão sustentação.
Buchanan propõe, segundo a lição de Marco Antonio Dias, um redimensionamento das funções estatais, a partir da revisão da teoria e prática das finanças públicas, de modo que a distribuição individual do custo público passe a ser relacionado à distribuição individual dos benefícios.[8]
2. DIFICULDADES PARA CONTROLAR O ORÇAMENTO PÚBLICO
O orçamento de um país é uma peça de fundamental importância em qualquer democracia. É ele que determina como o Estado deve utilizar os recursos públicos disponíveis, de modo a atender aos anseios sociais na máxima medida possível.
A doutrina identifica três principais funções do orçamento. Pela função política, o orçamento serve como instrumento de diálogo institucional entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. O chefe do Poder Executivo elabora a proposta de lei orçamentária, que é posteriormente discutida e aprovada pelo Poder Legislativo, de acordo com um processo legislativo específico, previsto no art. 166 da Constituição Federal.
Já a função reguladora é exercida, de acordo com Caldas Furtado, quando o orçamento funciona como agente de justiça distributiva, financiando serviços públicos para os mais carentes à conta de recursos pagos pelos mais abastados[9].
Por fim, a função econômica aparece quando se considera o fato de que o Estado é agente econômico dotado de grande importância, uma vez que quantidade significativa dos recursos disponíveis em qualquer economia estão sob a responsabilidade do Estado. Assim, a opção por uma execução orçamentária equilibrada, superavitária ou deficitária pode influenciar todos os setores da economia de um país.
Sobre esse tema, importa destaca que a doutrina especializada em Direito Financeiro costuma apontar o princípio do equilíbrio orçamentário como um dos princípios que regem a elaboração e execução do orçamento no Brasil. Ora, se existe tal princípio, como se admitem orçamentos deficitários?
Na verdade, o princípio do equilíbrio orçamentário deve ser compreendido como equilíbrio contábil; assim, a lei orçamentária deve prever um total de receitas suficientes para cobrir todas as despesas ali previstas. A Constituição não determina que o Estado deve custear todas as despesas com recursos próprios, de modo que a lei orçamentária pode estabelecer que parte dos recursos necessários ao financiamento da atividade estatal em dado exercício serão custeadas mediante a realização de operações de créditos.
Desse modo, é possível, diante de um cenário de grave crise econômica, em que há necessidade de estimular a economia, que o Estado opte por uma política fiscal expansionista, gerando déficits orçamentários, ou seja, aumentando os gastos públicos em proporção superior ao aumento das receitas, na forma preconizada pelo keynesianismo[10].
O problema ocorre quando os déficits públicos se sucedem nos diversos exercícios, levando o endividamento público a níveis insustentáveis, o que reduz a capacidade do Estado de prestar serviços públicos e de realizar investimentos.
Não existe um nível adequado de endividamento, ou mesmo um nível máximo adequado. O importante é que os recursos obtidos com as operações de crédito sejam utilizados para a realização de investimentos e para o fortalecimento da economia nacional.
Não é por acaso que a própria Constituição prevê, em sua redação ordinária, a chamada “regra de ouro” do Direito Financeiro, que proíbe a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta (art. 167, III).
Ilustra a importância dessa regra o fato de que países desenvolvidos como o Japão e os Estados Unidos possuem uma elevada dívida pública e ainda assim conseguem tomar recursos emprestados a taxas de juros baixíssimas.
Por outro lado, caso as receitas obtidas com operações de crédito sejam continuamente utilizadas para o pagamento das despesas correntes, o país perde credibilidade internacional e necessita paga taxas de juros cada vez maiores, o que faz com que uma parcela cada vez maior das receitas próprias fique comprometida com o pagamento do serviço da dívida.
O déficit que quase sempre caracterizou a política fiscal no Brasil e as consequências dele advindas são bem resumidas por Caldas Furtado:
O desequilíbrio fiscal predominou desenfreado no Brasil até recentemente, com consequências bastante negativas; os altos índices de inflação até a edição do Plano Real, a prática de elevadas taxas de juros, o endividamento público fora do controle e a excessiva carga tributária são exemplos de consequências desse desequilíbrio.[11]
Apesar de todos esses efeitos nefastos, a classe política muitas vezes não tem interesse em diminuir a dívida pública. De acordo com a public choice, a preocupação em manter-se no poder faz com que os políticos prefiram a adoção de medidas que favoreçam a sua reeleição, em detrimento das medidas mais eficientes do ponto de vista econômico.
Como se sabe, reformas estruturais que impliquem redução dos gastos públicos são normalmente impopulares, razão pela qual são postergadas o máximo possível pelos governantes.
Nesse contexto, muitas vezes faz-se necessária a edição de leis específicas que limitem a atuação dos gestores públicos, vinculando-os a uma política fiscal minimamente responsável.
No Brasil, um exemplo de instrumento legislativo elaborado com esse propósito é a Lei de Responsabilidade Fiscal, publicada em 4 de maio de 2000.
3. LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E AS DIFICULDADES PARA A SUA APLICAÇÃO
Nos termos do art. 163, I, da Constituição Federal, cabe à lei complementar dispor sobre finanças públicas. Assim, a Lei nº 4.320/64 foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, após a edição da Constituição de 1988, como lei complementar.
Ocorre que a Lei nº 4.320/64, embora muito avançada para a época em que foi editada, não trata de todas as matérias mencionadas no art. 163 da Constituição Federal. Na verdade, o principal objetivo desse diploma legal foi padronizar a estrutura orçamentária dos diversos entes federados, que passaram a seguir um repositório conceitual e um modelo de orçamentação pré-estabelecido.
Reconhecendo a importância da Lei nº 4.320/64, Marcus Abraham destaca:
Pode-se dizer que ela é o ‘Estatuto das Finanças Públicas’. Além de veicular relevantes princípios financeiros e institutos básicos das finanças públicas, sem ela não seria possível elaborar, executar e controlar os orçamentos públicos. Mais do que isso, apresentou-nos o modelo de orçamento-programa, em cuja execução se pretendem políticas públicas de resultados, metas e conquistas.[12]
De todo modo, faltava a edição de uma lei complementar que regulamentasse o disposto nos diversos incisos do art. 163, tratando, entre outros, de temas como dívida pública externa e interna (inciso II), fiscalização financeira da administração pública (inciso V) e concessão de garantias pelas entidades públicas (inciso III).
Para suprir essas lacunas, e de modo a responder a pressões de organismos multilaterais que cobravam do país mais responsabilidade fiscal e uma maior transparência na realização dos gastos públicos, foi editada, em maio de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000).
A LRF foi inspirada, de acordo com Edson Ronaldo Nascimento e Ilvo Debus[13], em quatro principais marcos teóricos:
1) FMI – Fiscal Transparency: o organismo financeiro internacional possui um código de transparência fiscal que cobram dos países que o integram uma gestão fiscal transparente e planejada;
2) Tratado de Maastricht: por meio desse tratado, vários países europeus se comprometeram com uma política fiscal equilibrada, havendo inclusive a previsão de metas e punições pelo seu descumprimento;
3) Budget Enforcement Act: lei norte-americana que criou mecanismos para controlar o déficit orçamentário, e que podem ter inspirado as disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre limitação de empenho e renúncia de receitas;
4) Fiscal Responsability Act: diploma legal da Nova Zelândia que, embora não preveja metas fiscais, também teve como objetivo instituir naquele país uma gestão fiscal responsável.
Embora essas diretrizes tenham servido de guias para o legislador, deve-se destacar que diversos aspectos do ordenamento constitucional brasileiro e da nossa realidade histórica foram considerados durante a elaboração do diploma legal.
As normas sobre as limitações de gastos com pessoal, por exemplo, que constituem um dos pilares da LRF, foram necessárias a partir da constatação da dificuldade histórica que os diversos entes da República apresentam para controlar esse tipo de despesa corrente.
O mais importante, para os fins deste trabalho, é que a nova lei veio com um objetivo muito claro, já enunciado no seu art. 1º: estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal.
O § 1º do referido dispositivo esclarece que a responsabilidade na gestão fiscal
pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Uma análise mais detida da Lei de Responsabilidade Fiscal indica que o legislador estabeleceu regras rígidas com o objetivo de garantir o equilíbrio das contas públicas. Vejam-se, por exemplo, as regras sobre limitação de empenho em caso de frustração de receitas previstas (art. 9º), limite de gastos com pessoal (arts. 18 a 23), limites do endividamento (art. 31) e renúncia de receitas (art. 14).
Todos esses dispositivos apresentam situações que podem comprometer o equilíbrio fiscal dos entes federados; apresentam, ainda, as soluções que devem ser adotadas para prevenir ou combater essas situações.
Mas será que essas medidas são efetivamente cumpridas, ainda que se mostrem impopulares ou contrariem o interesse de grandes empresários?
O art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal exige que a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária deve estar condicionada à demonstração de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e de que não afetará as metas de resultados fiscais. Havendo impacto orçamentário, a renúncia, para valer, deve estar acompanhada de medidas de compensação que gerem aumento de receita.
O problema é que esses dispositivos são solenemente ignorados. A União institui, de forma periódica, programas de regularização fiscal que concedem generosas isenções de juros e multas sem que o respectivo impacto financeiro esteja adequadamente dimensionado. O exemplo mais recente é o chamado Programa Especial de Regularização Tributária, instituído pela Lei nº 13.496/2017, que permite o desconto de encargos legais tributários com o fim de atrair a adesão dos devedores. Para “cumprir” as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, incluiu-se na lei um dispositivo determinando que o Poder Executivo federal estimará o montante da renúncia fiscal decorrente do disposto na lei.
Como se observa, trata-se de previsão vazia, que não proporciona a gestão fiscal planejada almejada pela LRF.
Um outro exemplo ajuda a compreender como é difícil o cumprimento dos bem-intencionados preceitos da Lei Complementar nº 101/2000. O art. 11 do mencionado diploma legal estabelece como requisito da responsabilidade na gestão fiscal a instituição e efetiva arrecadação de todos os impostos da competência constitucional do ente da Federação, proibindo a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe esse requisito.
Conforme advertem Carlos Antônio Luque e Vera Martins da Silva,
Tal dispositivo é extremamente relevante para o equilíbrio fiscal do setor público uma vez que há inúmeras prefeituras e estados que, no passado, foram absolutamente omissos quanto à sua arrecadação própria, preferindo viver quase exclusivamente de transferências de níveis superiores de governo.[14]
Como se observa, o objetivo da norma, ao vedar a realização de transferências voluntárias para os municípios mais dependentes de repasses federais e estaduais, foi incentivar a instituição dos impostos municipais e a consequente arrecadação de receitas próprias.
No entanto, considerando que a instituição de tributos como o IPTU e o ISS é medida extremamente impopular, especialmente em pequenos municípios, a competência tributária para instituir tais exações ainda não foi exercida em muitos municípios.
Há que se perquirir, agora, as razões pelas quais a União e os municípios deixam de arrecadar as receitas tributárias indicadas nos parágrafos acima, mesmo que essa conduta implique descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e traga consequências negativas para o equilíbrio orçamentário. Afinal, conforme alerta Marcelo Guerra Martins,
(...) sem que exista uma justa causa como fundamento, ao se afastar a incidência de certos tributos (seja por isenção, seja por outro modo), concede-se aos beneficiários um alívio no dever fundamental de financiar o Estado, do que resulta numa apropriação indevida da riqueza que deveria ter sido carreada aos cofres públicos, mas que restou em mãos privadas.[15]
Esse comportamento pode ser explicado pela perspectiva da teoria da escolha pública. Embora essas renúncias de receita não sejam as mais eficientes do ponto de vista econômico e não promovam uma maximização do bem-estar social, são muito importantes para garantir a reeleição daqueles responsáveis pela formulação de políticas públicas.
Os políticos, agindo como empresários, formulam políticas públicas que possam satisfazer os seus clientes (eleitores), de modo a garantir votos nas próximas eleições. De acordo com a lição de Gordon Tullock:
Politicians and businesspeople will sometimes pay a price (lost constituent support) in order to do what they think is good, but on the whole they can be expected to act in such a way as to maximize their own well-being in terms of reelection prospects. Stated in different language, politicians as businesspeople pursue policies that they think the people want because they hope the people will reward them with votes.[16]
Observa-se, assim, que mesmo a existência de um diploma legal editado com o propósito específico de garantir uma agenda fiscal pautada no planejamento e no controle dos riscos pode não ser suficiente quando o aumento da dívida pública for a alternativa mais conveniente para atender aos interesses eleitorais dos responsáveis pela condução dos rumos da nação.
4. O NOVO REGIME FISCAL
Não obstante os inegáveis avanços trazidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere ao controle dos gastos públicos e ao aumento da transparência na execução do orçamento, o fato é que a despesa pública primária continuou a crescer de modo acelerado[17], o que tornou necessária a edição, em dezembro/2016, da Emenda Constitucional nº 95/2016, que instituiu o denominado Novo Regime Fiscal.
Em linhas gerais, a norma estabelece um teto para as despesas primárias dos diversos Poderes e órgãos com autonomia financeira ou administrativa, correspondente ao total da despesa primária do exercício anterior, corrigida pela inflação do período.
Assim, desde a entrada em vigor da mencionada Emenda, fica vedado o aumento real da despesa primária do governo federal.
Trata-se de medida legislativa simples, que tem a inegável vantagem de fortalecer o debate acerca da alocação dos recursos disponíveis para execução em determinado exercício financeiro. Se antes o aumento de despesas (aumento direto ou via renúncia fiscal) era aprovado sem maiores discussões, conforme a força política das corporações, agora a trava para o crescimento do gasto público implicará um debate mais qualificado diante de propostas que aumentem as despesas públicas. Havendo um teto para os gastos, o autor da proposta passa a ter o ônus de indicar a área que poderá ter reduzida a sua disponibilidade orçamentária.
Há que se destacar, todavia, que a medida aprovada traz riscos para o futuro de um país em que a maior parte da parte da população depende dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. O crescimento real zero pode auxiliar o controle do endividamento, mas ainda não é possível mensurar qual o custo social dessa medida.
Limitar o crescimento das despesas com saúde, por exemplo, em uma nação que já não presta um serviço público de saúde adequado, pode ser catastrófico. Com efeito, o envelhecimento da população brasileira impõe uma ampliação da proteção social do Estado no âmbito da saúde, sendo desarrazoada a redução de despesas públicas nessa rubrica.
Dessa forma, a Emenda Constitucional nº 95/2016 deve necessariamente ser acompanhada de um amplo debate público, seguido de uma profunda reestruturação do Estado, que redefina prioridades e estabeleça uma alocação mais eficiente dos recursos públicos.
A primeira etapa dessa discussão talvez seja a reforma do sistema previdenciário brasileiro. Independentemente da divergência acerca da justiça ou injustiça das regras atualmente vigentes, o fato é que a edição da Emenda Constitucional nº 95/2016 impõe à sociedade brasileira o dever de decidir se as despesas previdenciárias devem continuar a crescer de modo contínuo, mesmo que esse aumento implique, ao menos nos próximos vinte anos (período durante o qual deve ser aplicada a regra trazida pela EC nº 95/2016), a diminuição de recursos disponíveis para outras áreas sensíveis, como saúde e educação.
CONCLUSÃO
Em sede conclusiva, é possível afirmar que as decisões econômicas tomadas pelos agentes políticos são muitas vezes influenciadas pelos seus interesses particulares, o que faz com que elas muitas vezes não representem a melhor solução para os interesses da sociedade.
No âmbito do Direito Financeiro, editou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal com o objetivo obrigar os agentes políticos a adotar condutas políticas fiscais sustentáveis, ainda que mediante a adoção de medidas impopulares. Não obstante o inegável avanço trazido pela LRF, muitas de suas disposições foram distorcidas ou interpretadas em desacordo com a ratio da lei, o que permitiu que o país fosse novamente inserido num grave quadro de desequilíbrio fiscal.
Mais recentemente, a Emenda Constitucional nº 95/2016 instituiu o Novo Regime Fiscal, com o objetivo de tentar equilibrar as contas públicas e forçar o Governo Federal a retomar o controle da dívida pública.
A simplicidade dos dispositivos da EC 95/2016 tem a vantagem de evitar que interpretações heterodoxas conduzam à ineficácia da nova norma constitucional. No entanto, é necessário perceber que a mera limitação do montante da despesa primária é apenas o primeiro passo no longo caminho que o país deve percorrer para que tenha uma melhor eficiência na alocação dos recursos públicos disponíveis. O mais importante, agora, é que a sociedade se envolva do debate orçamentário e determine o destino que deve ser dado aos tributos arrecadados de todos os cidadãos.
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[4]DIAS, Marco Antonio. James Buchanan e a “Política” na escolha pública. Revista Estratégica, v. 10, n. 1, 2013, p. 33.
[5]CATARINO, João Ricardo. Redistribuição tributária: Estado social e escolha individual. Coimbra: Almedina, 2008, p .174.
[6]Acórdão nº 1868/2016 – TCU/Plenário. Disponível em <http://portal.tcu.gov.br/lumis/ portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8182A155F0B71C01560F56913B2ACC&inline=1>. Acesso em 08/10/2017.
[7]ALMEIDA, EDMAR LUIS FAGUNDES DE; OLIVEIRA, PATRICIA VARGAS DE; LOSEKANN, Luciano. Impactos da contenção dos preços de combustíveis no Brasil e opções de mecanismos de precificação. Revista de Economia Política, v. 35, n. 3, p. 531-556, 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572015000300531>. Acesso em 09/10/2017.
[8]DIAS, Marco Antonio. James Buchanan e a “Política” na escolha pública. Revista Estratégica, v. 10, n. 1, 2013, p. 35.
[9]FURTADO, J. R. Caldas. Direito Financeiro. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 63.
[10] Em sentido contrário, Fernando J. Cardim de Carvalho defende que Keynes define a política fiscal a partir de um nível adequado de gastos públicos, não de deficit público. Assim, não haveria, na doutrina keynesiana, qualquer impedimento para que os gastos públicos elevados fossem financiados por impostos, evitando-se o surgimento de déficits fiscais. Confira-se, a propósito, CARVALHO, Fernando JJ Cardim de. Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana. Análise econômica, v. 26, n. 50, 2008. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/AnaliseEconomica/article/download /10906/6484>. Acesso em 14/10/17.
[11]FURTADO, J. R. Caldas. Direito Financeiro. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 103.
[12] ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 79.
[13] DEBUS, Ilvo; NASCIMENTO, Edson Ronaldo. Lei complementar nº 101/2000: entendendo a Lei de Responsabilidade Fiscal. 2ª. ed. S.l.: s.n, 2011. Disponível em Acesso em 09/10/2017.
[14] LUQUE, Carlos Antonio; SILVA, Vera Martins. A lei de responsabilidade na gestão fiscal: combatendo falhas de governo à brasileira. Revista de Economia Política, v. 24, n. 3, p. 404-421, 2004.
[15] MARTINS, Marcelo Guerra. Facultatividade do exercício da competência tributária e renúncia de receitas na Lei de Responsabilidade Fiscal. In: PISCITELLI, Tathiane (Coord.). O Direito Tributário na Prática dos Tribunais Superiores: Sistema Tributário Nacional e Código Tributário Nacional em debate. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 260.
[16] TULLOCK, Gordon; BRADY, Gordon L.; SELDON, Arthur. Government failure: a primer in public choice. Cato Institute, 2002. Disponível em . Acesso em 29/11/17.
[17] No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Esse dado foi apresentado na EMI nº 00083/2016 MF MPDG, de 15 de junho de 2016. Disponível em . Acesso em 29/11/17.
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Procurador do Ministério Público de Contas - TCE/CE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, José Aécio Vasconcelos. A teoria da escolha pública e o problema do desequilíbrio fiscal no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 mar 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51409/a-teoria-da-escolha-publica-e-o-problema-do-desequilibrio-fiscal-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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