RESUMO: Este artigo volta-se ao estudo da responsabilidade civil do fornecedor nas relações de consumo pela presença de corpo estranho no interior de produto alimentício. A relevância do presente tema reside na existência de diferentes posicionamentos constatados ao se analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que impõe uma sistematização da matéria para melhor compreendê-la. Serão utilizados os seguintes métodos: o dedutivo, como método de abordagem; e o interpretativo, como método de procedimento. Como técnica de pesquisa adota-se a bibliográfica e a legal. Almeja-se, com o desenvolvimento deste trabalho, proceder a uma análise detida, especialmente sobre as recentes decisões da Colenda Corte, com vistas a confirmar ou não a existência de um posicionamento consolidado acerca da questão.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Relação de consumo. Alimento. Dano moral.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 Base histórica do direito do consumidor. 2 A responsabilidade civil do fornecedor de bens e serviços. 3 Análise jurisprudencial. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Buscar-se-á, neste artigo, analisar a existência de dano moral e o consequente dever de indenizar diante da aquisição e consumo de gênero alimentício impróprio para o fim a que se destina, em razão da presença de um corpo estranho em seu interior. Após a realização de pesquisas sobre o tema, os resultados alcançados serão expostos em três capítulos.
A priori, traçar-se-á um breve panorama histórico acerca do desenvolvimento do Direito do Consumidor, compilando as transformações sociais que conduziram à necessidade de elaboração e aplicação de normas jurídicas voltadas à proteção dos consumidores.
Em seguida, analisar-se-á a responsabilidade civil dos fornecedores à luz da disciplina legal trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, tratando sobre os elementos a serem aferidos para constatação da existência de situação ensejadora de responsabilização – a saber: conduta, nexo e dano.
No último capítulo, examinar-se-á recentes decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria, objetivando verificar se há ou não um entendimento predominante na Corte.
1 Base histórica do direito do consumidor
Estudos históricos demonstram que as sociedades primitivas tinham como traço característico a autossuficiência. As necessidades dos indivíduos eram atendidas no seio da própria comunidade e, dessa forma, inexistia qualquer interação econômica com outros grupamentos humanos. Nas palavras de Fran (2014, p. 44), “no início da civilização, os grupos sociais procuravam bastar-se a si mesmos, produzindo material de que tinham necessidade ou se utilizando daquilo que poderiam obter facilmente da natureza para a sua sobrevivência (...)”.
Todavia, observava-se que determinada aglomeração humana, em decorrência do aperfeiçoamento de técnicas e de fatores físicos verificados em certas regiões do mundo (tais como elementos topográficos, hidrológicos, biológicos etc.), experimentavam um incremento da produção de determinados bens, atingindo patamares superiores ao consumo regular interno. Por outro lado, as mencionadas condicionantes tornavam este mesmo povo e território menos propenso a conseguir cultivar ou fabricar outros gêneros dos quais igualmente necessitava. A correção do paradoxo escassez-excesso só se tornou possível com a política de trocas de excedentes de produção entre as sociedades.
Entretanto, por vezes, não havia uma exata correspondência entre os bens que um povo almejava adquirir e aqueles que o outro tinha à sua disposição para oferecer em troca. Situações como esta impediam a transação entre as civilizações, prejudicando ambas, visto que permaneciam com uma produção de bens extranumerária em estoque, sem destinação útil, e não tinham como obter o outro gênero pretendido. Para remediar tal imbróglio, estabeleceu-se uma medida uniforme de riqueza – a moeda, viabilizando, assim, a aquisição de utilidades pela oferta de determinado valor e, como consequência, o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de “comércio”. Consoante Fran (2014, p. 44-46):
Nem sempre o que era desnecessário a um grupo se mostrava útil a outro que, entretanto, podia dispor de bens indispensáveis aos primeiros. As trocas, desse modo, de bens por bens, não se realizavam por falta de equivalência de utilidade para as partes interessadas. Chegou-se, desse modo, à contingência de ser criada uma mercadoria capaz de ser permutada por qualquer outra, servindo, assim, de padrão para as trocas, foi a moeda (...) o aparecimento da moeda deu lugar ao surgimento de uma atividade específica, inicialmente praticada por um número reduzido de pessoas e depois grandemente desenvolvida. (...) E à atividade consistente em pôr em circulação as mercadorias, adotando esse mecanismo, se deu o nome de comércio (...)
A forma de produzir e comercializar as mercadorias sofreu significativa transformação a partir do século XIX, por força da Revolução Industrial. As relações, antes travadas de modo pessoalizado, aos poucos foram se padronizando para atender a demanda. A uniformização dos contratos e a produção em larga escala permitiram a redução dos custos e a realização de negociações de modo mais célere. Contudo, a relação outrora paritária tornou-se desigual. Neste momento histórico, o fiel da balança inclinava-se em favor daquele que detinha os meios de produção e estabelecia as regras contratuais. Segundo Nunes (2015, p. 160):
(...) no começo do século XX, instaura-se definitivamente um modelo de produção, que terá seu auge nos dias atuais. Tal modelo é o da massificação: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição do custo da produção, atingimento de maiores parcelas de população com o aumento da oferta etc.
Esse sistema de produção pressupõe a homogeneização dos produtos e serviços e a estandardização das relações jurídicas que são necessárias para a transação desses bens.
A partir da Segunda Guerra Mundial o projeto de produção capitalista passou a crescer numa enorme velocidade, e, com o advento da tecnologia de ponta, dos sistemas de automação, da robótica, da telefonia por satélite, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc., a velocidade tomou um grau jamais imaginado até meados do século XX.
A partir de 1989, com a queda dos regimes não capitalistas, o modelo de globalização, que já se havia iniciado, praticamente completou seu ciclo, atingindo quase todo o globo terrestre.
Este cenário de desigualdade fez com que os Estados, acompanhando as mudanças e buscando restabelecer o equilíbrio nas relações de consumo, editassem normas jurídicas voltadas à proteção da parte contratual vulnerável, a saber: o consumidor. No Brasil, o constituinte reconheceu a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica (artigo 170, V, da CRFB/1988) e impôs ao Estado o dever de garantir os direitos dos consumidores (artigo 5º, XXXII, da CRFB/1988) e ao Congresso Nacional a obrigação de elaborar, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor (artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
O legislador ordinário, cumprindo os ditames da Lei Maior, publicou aos 12 de setembro de 1990 a Lei nº 8.078 – denominada de “Código de Defesa do Consumidor”, inaugurando um microssistema jurídico próprio, permeado por normas protecionistas, que visam reger as relações de consumo afastando-se das regras gerais contidas no Código Civil sobre obrigações, contratos e responsabilidade. Conforme Nunes (2015, p. 167-168):
(...) o CDC é um subsistema jurídico próprio, lei geral com princípios especiais voltada para a regulação de todas as relações de consumo, tão caras a sociedade de massas contemporânea e representando o mais importante e largo setor da economia.
(...) o princípio do protecionismo inaugura o sistema da lei consumerista. Ele decorre diretamente do texto constitucional, que estabelece a defesa do consumidor corno um dos princípios gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever de promover tal defesa (inciso XXXII do art. 5º).
2 A responsabilidade civil do fornecedor de bens e serviços
O Código de Defesa do Consumidor, atento às peculiaridades dos fatos sociais que disciplina, estabelece normas especiais acerca da responsabilidade civil do fornecedor de bens e serviços. A comercialização na escala em que ocorre atualmente apenas se tornou possível devido à produção em série. Entretanto, esta não é isenta de falhas. Apesar de se buscar a aplicação da melhor e mais segura técnica, admite-se a existência de vícios e defeitos, considerando que o alto custo para que a fabricação fosse livre de erros tornaria a atividade economicamente impraticável. Nos dizeres de Nunes (2015, p. 249-250):
Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo.
A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos.
(...) Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores.
Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e oferecer serviços a um custo que não prejudique o beneficio.
Como bem explicitado por Nunes linhas acima, o produtor assume o risco de eventualmente causar alguma espécie de dano ao consumidor, responsabilizando-se por ele, ainda que sua ocorrência não venha a ser fruto de uma conduta culposa sua. A constatação de negligência, imprudência ou imperícia é irrelevante para a imputação do seu dever de indenizar. Nesse sentido é a lição de Nunes (2015, p. 161):
É exatamente a hipótese de responsabilidade objetiva que tem aqueles que desenvolvem atividade de risco. O novo Código Civil, portanto, incorporou no seu regramento um dos aspectos mareantes das sociedades capitalistas contemporâneas, o de que o sistema de produção e a consequente exploração das reservas naturais, a criação, produção e distribuição de produtos e serviços com seus reflexos no modo de vida social, na alimentação, na saúde, na moradia, no transporte etc., implicam riscos a integridade das pessoas. E esse risco se põe independentemente da ação do produtor, vale dizer, há risco – e eventual dano – mesmo que não haja culpa. O modelo é, assim, o mesmo da lei consumerista.
Nesse diapasão, o Código de Defesa do Consumidor opta por adotar, em regra, a responsabilidade objetiva dos fornecedores e fixar a obrigação solidária de todos os envolvidos na cadeia produtiva de indenizar os consumidores que vierem a ser vitimados. Conforme prelecionam Tartuce e Neves (2017, p. 89):
(…) o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor consagra como regra a responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores de produtos e prestadores de serviços, frente aos consumidores. Tal opção visa a facilitar a tutela dos direitos do consumidor, em prol da reparação integral dos danos, constituindo um aspecto material do acesso à justiça. Desse modo, não tem o consumidor o ônus de provar a culpa dos réus nas hipóteses de vícios ou defeitos dos produtos ou serviços.
Esquadrinhando as razões que levaram o legislador a assim proceder, Nunes (2015, p. 252-253) dispõe que se não tivesse sido feita a escolha pela responsabilidade objetiva do fornecedor, se inviabilizaria o ressarcimento do consumidor pelos prejuízos sofridos, ao se estabelecer um ônus probatório excessivo a ele, visto que este normalmente não tem acesso ao sistema de produção e a prova técnica posterior ao evento danoso tem reduzidas chances de demonstrar a culpa. Assim, para aferição da responsabilidade do fornecedor se investiga a existência de apenas três elementos: conduta, nexo e dano.
A conduta pode ser conceituada como a ação – ou omissão, quando o agente tinha a obrigação de agir – voluntária, geradora do dever de indenizar. Cumpre ressaltar que a aferição da “voluntariedade” não se confunde com a comprovação do elemento anímico do agente. Não se discute dolo ou culpa. Não é necessário que o sujeito tenha intenção de causar o dano, mas que tenha consciência da sua atuação. Por esta razão, a norma consumerista admite algumas excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito ou a força maior, considerando a impossibilidade de se imputar ao fornecedor o dever de indenizar aquilo que não foi resultado de uma ação livre.
Quanto ao dano, entende-se que, para gerar o dever de indenizar, ele deve ser certo, inexistindo dúvida quanto a sua existência; e deve representar lesão a interesse jurídico, seja de cunho patrimonial ou moral, ainda não reparada. A tutela judicial não é apenas voltada ao restabelecimento do equilíbrio patrimonial, mas tem por objetivo precípuo a restauração do status quo ante.
Por fim, deve-se comprovar a existência do nexo de causalidade. Ou seja, deve-se demonstrar que da ação voluntária do fornecedor decorreu o dano experimentado pelo consumidor. Não é difícil comprovar a existência da conduta do produtor e é ainda mais evidente o dano experimentado pela vítima. Entretanto, o mesmo não se pode dizer da confirmação de que este decorreu daquela. Noutro dizer, é extremamente complexo comprovar o nexo de causalidade entre estas.
3 Análise jurisprudencial
Diferentes nuances são observadas ao se analisar julgados que discutem a responsabilização dos fornecedores diante de vício ou defeito ocorrido em atividade de produção e comercialização de gêneros alimentícios. A essencialidade de tais bens gera sutis distinções entre as situações postas em juízo, merecendo uma verificação mais detida sobre a matéria. A jurisprudência, nos últimos anos, em especial a do Superior Tribunal de Justiça, apresenta delicada oscilação ao buscar averiguar a existência ou não de dano moral nesse contexto.
Até 2014, prevalecia no âmbito do Superior Tribunal de Justiça o posicionamento no sentido da inexistência de dano moral pela simples aquisição de alimento impróprio ao consumo. Só se considerava caracterizado o acidente de consumo apto a legitimar a responsabilização do fornecedor quanto tivesse havido a ingestão do produto. Nesse sentido, manifestou-se a Quarta Turma, ao apreciar recurso especial em 16/11/2010, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão:
RESPONSABILIDADE CIVIL. PRODUTO IMPRÓPRIO PARA O CONSUMO. OBJETO METÁLICO CRAVADO EM BOLACHA DO TIPO "ÁGUA E SAL". OBJETO NÃO INGERIDO. DANO MORAL INEXISTENTE.
1. A simples aquisição de bolachas do tipo "água e sal", em pacote no qual uma delas se encontrava com objeto metálico que a tornava imprópria para o consumo, sem que houvesse ingestão do produto, não acarreta dano moral apto a ensejar reparação. Precedentes.
2. Verifica-se, pela moldura fática apresentada no acórdão, que houve inequivocamente vício do produto que o tornou impróprio para o consumo, nos termos do art. 18, caput, do CDC. Porém, não se verificou o acidente de consumo, ou, consoante o art. 12 do CDC, o fato do produto, por isso descabe a indenização pretendida.
3. De ofício, a Turma determinou a expedição de cópias à agência sanitária reguladora para apurar eventual responsabilidade administrativa.
4. Recurso especial principal provido e adesivo prejudicado.
(REsp 1131139/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/11/2010, DJe 01/12/2010) (grifo nosso)
Idêntico foi o entendimento esposado pela Terceira Turma, em 2011, ao julgar, em sede de recurso especial, situação na qual o consumidor havia ingerido parcialmente o conteúdo de uma lata de leite condensado cujo interior continha um inseto. No caso em tela, reconheceu-se a presença de dano moral indenizável e o recurso foi desprovido, conforme se verifica na leitura da ementa abaixo colacionada:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ADESIVO. ADMISSIBILIDADE. REQUISITOS. AQUISIÇÃO DE ALIMENTO COM INSETO DENTRO. INGESTÃO PELO CONSUMIDOR. DANO MORAL. EXISTÊNCIA. VALOR. REVISÃO PELO STJ. POSSIBILIDADE, DESDE QUE IRRISÓRIO OU EXORBITANTE.
(...)
3. A aquisição de lata de leite condensado contendo inseto em seu interior, vindo o seu conteúdo a ser parcialmente ingerido pelo consumidor, é fato capaz de provocar dano moral indenizável.
4. A revisão da condenação a título de danos morais somente é possível se o montante for irrisório ou exorbitante. Precedentes.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. Recurso adesivo não conhecido.
(REsp 1239060/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/05/2011, DJe 18/05/2011) (grifo nosso)
Noutra direção, todavia, caminhou o Colendo Tribunal no julgamento proferido pela Terceira Turma nos autos do Recurso Especial nº 1.424.304/SP, cuja relatoria coube à Ministra Nancy Andrighi. Destoando da posição consolidada na Corte, sustentou-se a desnecessidade da ingestão do alimento para que restasse configurada a existência de dano moral indenizável. Para a ilustre relatora, a aquisição de produto alimentício que contenha, em seu interior, corpo estranho expõe o consumidor a risco concreto de lesão e ofende o direito fundamental à alimentação adequada, atingindo o indivíduo em sua dignidade. Assim, caracterizado o defeito do produto, justifica-se a imputação do dever de indenizar, como se vê no excerto infra transcrito:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. AQUISIÇÃO DE GARRAFA DE REFRIGERANTE CONTENDO CORPO ESTRANHO EM SEU CONTEÚDO. NÃO INGESTÃO. EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. FATO DO PRODUTO. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE NÃO ACARRETAR RISCOS AO CONSUMIDOR. OFENSA AO DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA. ARTIGOS ANALISADOS: 4º, 8º, 12 e 18, CDC e 2º, Lei 11.346/2006.
(...)
2. Discute-se a existência de dano moral na hipótese em que o consumidor adquire garrafa de refrigerante com corpo estranho em seu conteúdo, sem, contudo, ingerí-lo.
3. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.
4. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor à risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1424304/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 19/05/2014) (grifo nosso)
Em conformidade com o julgado acima, em 10/05/2016, a Terceira Turma reafirmou que a oferta de produto impróprio para o consumo afeta a segurança que legitimamente se espera nas relações de consumo, razão pela qual há o direito a indenização, ainda que não tenha havido a ingestão do alimento.
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESENÇA DE CORPO ESTRANHO EM ALIMENTO. EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. DANO MORAL EXISTENTE.
1. A disponibilização de produto considerado impróprio para consumo em virtude da presença de objeto estranho no seu interior afeta a segurança que rege as relações consumeristas na medida que expõe o consumidor a risco de lesão à sua saúde e segurança e, portanto, dá direito à compensação por dano moral.
2. Agravo regimental provido.
(AgRg no REsp 1380274/SC, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/05/2016, DJe 19/05/2016)
Entretanto, a jurisprudência mostra-se hesitante em aceitar o posicionamento acima mencionado. Após poucos meses do primeiro julgado, em 18/11/2014, a própria Terceira Turma voltou a apreciar o tema e curvou-se novamente ao entendimento tradicional, segundo o qual a aquisição de produto nas condições em testilha sem que tenha havido a sua ingestão geraria mero dissabor, pelo qual não caberia o pagamento de qualquer compensação. O fato se repetiu em 2016 e também na Quarta Turma, conforme se verifica nos julgados a seguir:
RECURSO ESPECIAL DIREITO DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL.
PRESENÇA DE CORPO ESTRANHO EM ALIMENTO. EMBALAGEM DE REFRIGERANTE LACRADA. TECNOLOGIA PADRONIZADA. AUSÊNCIA DE INGESTÃO. DANO MORAL INEXISTENTE. MERO DISSABOR. ÂMBITO INDIVIDUAL.
1. Cuida-se de demanda na qual busca o autor a condenação da empresa ré ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes da aquisição de refrigerante contendo inseto morto no interior da embalagem.
2. No âmbito da jurisprudência do STJ, não se configura o dano moral quando ausente a ingestão do produto considerado impróprio para o consumo, em virtude da presença de objeto estranho no seu interior, por não extrapolar o âmbito individual que justifique a litigiosidade, porquanto atendida a expectativa do consumidor em sua dimensão plural.
3. A tecnologia utilizada nas embalagens dos refrigerantes é padronizada e guarda, na essência, os mesmos atributos e as mesmas qualidades no mundo inteiro.
4. Inexiste um sistemático defeito de segurança capaz de colocar em risco a incolumidade da sociedade de consumo, a culminar no desrespeito à dignidade da pessoa humana, no desprezo à saúde pública e no descaso com a segurança alimentar.
5. Recurso especial provido.
(REsp 1395647/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 19/12/2014) (grifo nosso)
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESENÇA DE CORPO ESTRANHO EM ALIMENTO. EMBALAGEM DE REFRIGERANTE. AUSÊNCIA DE INGESTÃO. DANO MORAL INEXISTENTE.
MERO DISSABOR. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA NO STJ.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido de que a ausência de ingestão de produto impróprio para o consumo configura, em regra, hipótese de mero dissabor vivenciado pelo consumidor, o que afasta eventual pretensão indenizatória decorrente de alegado dano moral. Precedentes.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 489.030/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 27/04/2015)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AGRAVO INTERNO.
RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO INDENIZATÓRIA. EXISTÊNCIA DE MATERIAL ESTRANHO NO INTERIOR DE BEBIDA. AUSÊNCIA DE INGESTÃO.
DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. MERO DISSABOR. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
(...)
2. A jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que, ausente a ingestão do produto considerado impróprio para o consumo em virtude da presença de corpo estranho, não se configura o dano moral indenizável. Precedentes. Incidência da Súmula nº 83 do STJ.
3. Não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, mantém-se a decisão proferida, por não haver motivos para a sua alteração.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1597890/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 14/10/2016)
No final do ano de 2017, novo entendimento começou a se delinear. Em decisão da lavra da Ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma deu provimento a recurso especial, determinando que o dano moral restará caracterizado ainda que não haja ingestão do alimento, quando o consumidor “levar à boca” o corpo estranho.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. AQUISIÇÃO DE PACOTE DE BISCOITO RECHEADO COM CORPO ESTRANHO NO RECHEIO DE UM DOS BISCOITOS. NÃO INGESTÃO. LEVAR À BOCA.
EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. FATO DO PRODUTO. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE NÃO ACARRETAR RISCOS AO CONSUMIDOR. (...)
2. O propósito recursal consiste em determinar se, para ocorrer danos morais em função do encontro de corpo estranho em alimento industrialização, é necessária sua ingestão ou se o simples fato de levar tal resíduo à boca é suficiente para a configuração do dano moral.
3. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.
4. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor à risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC.
5. Na hipótese dos autos, o simples "levar à boca" do corpo estranho possui as mesmas consequências negativas à saúde e à integridade física do consumidor que sua ingestão propriamente dita.
6. Recurso especial provido.
(REsp 1644405/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/11/2017, DJe 17/11/2017)
CONCLUSÃO
Este artigo teve por escopo verificar a existência de posição predominante no Superior Tribunal de Justiça acerca da responsabilização do fornecedor pela presença de algum resíduo impróprio para consumo no interior de gêneros alimentícios, notadamente perscrutando qual o momento em que se configura o dano moral.
O desenvolvimento das civilizações, analisado no primeiro capítulo, demonstrou a necessidade de adoção pelos Estados, ao cumprir o seu dever de regular as relações entre fornecedores e consumidores, de normas jurídicas protecionistas, direcionadas a melhor tutelar os direitos dos consumidores, de forma a contrabalancear a desigualdade verificada na mencionada relação contratual.
Conforme a disciplina legal estabelecida pelo Código de Defesa do Consumidor, há responsabilidade do fornecedor – e, consequentemente, dever de indenizar – quando uma ação ou omissão voluntária deste acarretar uma lesão a um interesse jurídico do consumidor. O dever de indenizar, portanto, prescinde da comprovação do elemento anímico do agente. Basta identificar a conduta do fornecedor, o dano ao consumidor e o nexo causal entre estes. Assim, diz-se que a responsabilidade civil, no âmbito do Direito do Consumidor, é, em regra, objetiva.
Por fim, os julgados do Superior Tribunal de Justiça indicam existir três posições distintas na Corte. Uns afirmam que o dano moral só se configura quando houver a ingestão do alimento contaminado. Outros sustentam que a mera aquisição do bem impróprio para o consumo seria suficiente para violar o direito fundamental à alimentação adequada e a segurança legitimamente esperada do produto, gerando o direito do consumidor à compensação pelos prejuízos suportados. Há ainda um terceiro entendimento exposto em recente julgado proferido pela Terceira Turma, no sentido de que o dano moral ocorreria no momento em que o indivíduo realizasse o ato de levar o gênero alimentício à boca, não importando se houvesse ou não a efetiva ingestão do alimento.
Por todo o exposto, considerando as diferentes conclusões que as Turmas do Superior Tribunal de Justiça chegaram acerca da matéria, mostra-se prematura a afirmação de que uma corrente de pensamento prevalece ou não naquela Corte, devendo-se aguardar que, futuramente, o confronto entre as teses conduza à uniformização do entendimento do Tribunal.
REFERÊNCIAS
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 7: responsabilidade civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
NUNES, Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
TARTUCE, Flávio. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: volume IV. responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Bacharela pela Universidade Federal da Paraíba e Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rebecca Braz Vieira de. Responsabilidade civil do fornecedor nas relações de consumo pela presença de corpo estranho em produto alimentício Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51446/responsabilidade-civil-do-fornecedor-nas-relacoes-de-consumo-pela-presenca-de-corpo-estranho-em-produto-alimenticio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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Por: Erick Labanca Garcia
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