Resumo: O presente artigo versa sobre a boa-fé objetiva, especificamente acerca da teoria do adimplemento substancial, classificada como uma de suas figuras parcelares. Defende-se, em oposição ao Superior Tribunal de Justiça, a possibilidade de aplicação do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária a fim de impedir o manejo de ação de busca e apreensão quando o devedor deixar de adimplir quantia desproporcionalmente inferior ao valor do bem dado em garantia.
Palavras-chave: alienação fiduciária, boa-fé objetiva, adimplemento substancial.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Adimplemento substancial como conceito parcelar da boa-fé objetiva; 3. Alienação fiduciária e adimplemento substancial; 4. Conclusão; 5. Referências.
1. Introdução
Caracterizada como uma exigência de conduta leal dos contratantes, a boa-fé objetiva está relacionada com os deveres anexos de conduta e subdivide-se em figuras parcelares, dentre elas o adimplemento substancial. Tal figura parcelar pugna que não se deve considerar resolvida a obrigação quando a atividade do devedor, embora não tenha alcançado plenamente o fim proposto, haja se aproximado consideravelmente do seu resultado final.
Nesse norte, inicialmente, será trabalhada a boa-fé objetiva, seu conceito, suas funções e subprincípios, dando ênfase ao adimplemento substancial. Posteriormente, será analisada a alienação fiduciária, em especial quando o credor for instituição financeira, nos termos da lei nº 4. 728/65 e do Decreto Lei nº 911/69, assim como sua compatibilidade com a teoria do adimplemento substancial.
2. Adimplemento substancial como conceito parcelar da boa-fé objetiva
A boa-fé objetiva está prevista expressamente no Código Civil de 2002, sendo um dos seus princípios basilares. Enquanto a boa-fé subjetiva está relacionada à intenção do sujeito, a boa-fé objetiva refere-se uma regra de conduta, desdobrando-se em deveres anexos, como os de cuidado, respeito, lealdade, honestidade, entre outros.
Nos dizeres de Sílvio de Salvo Venosa, “ a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos”.[1]
Nesse norte, traz-se à colação os ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves:
Todavia, a boa-fé que constitui inovação do Código de 2002 e acarretou profunda alteração no direito obrigacional clássico é a objetiva que se constitui em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas. Classifica-se, assim, como regra de conduta. Incluída no direito positivo de grande parte dos países ocidentais, deixa de ser princípio geral de direito para trasformar-se em cláusula geral de boa-fé objetiva. É, portanto, fonte de direito e de obrigações.[2]
Quanto aos contratos, há previsão específica da boa-fé objetiva no art. 422 do Código Civil, segundo o qual os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Nos arts. 113 e 187 do referido código também há previsão específica da boa-fé objetiva.
Tomando como base esses artigos, Flávio Tartuce[3] classifica a boa-fé objetiva em funções: função de interpretação (art. 113), função de controle (art. 187) e função de integração (art. 422):
Outrossim, a boa-fé objetiva, doutrinariamente, subdivide-se em figuras parcelares, ou seja, subprincípios que ajudam a elucidar o seu alcance e aplicação prática. São desdobramentos da boa-fé objetiva: supressio, surrectio, venire contra factum proprium, tu quoque, exceptio doli e o adimplemento substancial, foco do presente trabalho.
Supressio e surrectio são faces de uma mesma moeda, enquanto esta se refere ao surgimento de um determinado direito, aquela se relaciona à supressão, perda do direito. Tem-se como principal exemplo o art. 330 do Código Civil, o qual preconiza que o pagamento reiterado em local distinto do acordado faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no processo, havendo supressio em relação ao credor e surrectio quanto ao devedor.
No que tange ao venire contra factum proprium, há preocupação com o comportamento contraditório. Nesses sentido, aduz Silvio de Salvo Venosa:
É imperativo em prol da credibilidade e da segurança das relações sociais e consequentemente das relações jurídicas que o sujeito observe um comportamento coerente, como um princípio básico de convivência. O fundamento situa-se no fato que a conduta anterior gerou, objetivamente, confiança em quem recebeu reflexos dela[4]
Partindo da regra que é eticamente vedado fazer contra o outro aquilo que não faria contra si, surge o tu quoque, conforme lecionam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona: “A aplicação do tu quoque se constata em situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, supreende uma das partes da relação negocial, colocando-a em situação de injusta desvantagem”[5]
O excepetio doli é aplicado a condutas que ocorrem com o intuito específicio de prejudicar outrem, a exemplo do previsto no art. 940 do CC. De acordo com o dispositivo legal, aquele que demandar por dívida já paga ou pedir mais do que devido, deverá restituir em dobro.
Por fim, tem-se o adimplemento substancial. Segundo esse princípio, não se deve considerar resolvida a obrigação quando a atividade do devedor, embora não tenha alcançado plenamente o fim proposto, haja se aproximado consideravelmente do seu resultado final. Há uma mitigação do art. 475 do Código Civil, uma vez que, com base na boa-fé objetiva, seria desproporcional a resolução de um contrato que foi quase em sua integralidade cumprido, sendo cabível nesses casos indenização por perdas e danos. Nesses termos, Flávio Tartuce afirma: “Pela teoria do adimplemento substancial (substantial performance), em hipóteses em que a obrigação tiver sido quase toda cumprida, não caberá extinção do contrato, mas apenas outros efeitos jurídicos, visando sempre à manutenção da avença.”[6]
Dessa forma, ratificando doutrinariamente o princípio do adimplemento substancial, traz-se o Enunciado nº 361, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “Enunciado nº 361. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.
No que tange à jurisprudência superior, o Superior Tribunal de Justiça já adotou, em diversos julgados, a teoria do adimplemento substancial, dando guarida à boa-fé objetiva e acolhendo o defendido pela doutrina, a exemplo do REsp 1200105/AM:
RECURSO ESPECIAL. LEASING. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CARRETAS. EMBARGOS INFRINGENTES. TEMPESTIVIDADE. MANEJO ANTERIOR DE MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA A DECISÃO. CORRETO O CONHECIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES. INOCORRÊNCIA DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E DA EXCEÇÃO DE INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. Ação de reintegração de posse de 135 carretas, objeto de contrato de "leasing", após o pagamento de 30 das 36 parcelas ajustadas. (...) Correta a decisão do tribunal de origem, com aplicação da teoria do adimplemento substancial. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. O reexame de matéria fática e contratual esbarra nos óbices das súmulas 05 e 07/STJ. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (REsp 1200105/AM, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012.
Outrossim, a mencionada Corte estipula parâmetros para que se possa aferir a aplicação do princípio ao caso concreto, exigindo o preenchimento dos seguintes requisitos:
a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (STJ - REsp: 1638421 PR 2016/0300883-1, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Publicação: DJ 01/02/2017)
Isso posto, a despeito do Superior Tribunal de Justiça acatar a teoria do adimplemente substancial, questiona-se a recente decisão desta corte no REsp 1622555-MG, em fevereiro de 2017, que afastou a aplicação da teoria dos contratos de alienação fiduciária.
3. Alienação fiduciária e adimplemento substancial
A propriedade fiduciária está prevista de forma genérica no art. 1361 do Código Civil, o qual afirma ser fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves afirma:
Constitui-se mediante negócio jurídico de disposição condicional. Subordinado a uma condição resolutiva, porque a propriedade fiduciária cessa em favor do alienante, uma vez verificado o implemento da condição resolutiva, não exige nova declaração de vontade do adquirente ou do alienante, nem requer a realização de qualquer novo ato. O alienante, que transferiu fiduciariamente a propriedade, readquire-a pelo só pagamento da dívida.[7]
A lei de Mercado de Capitais (lei nº 4. 728/65) trouxe, pela primeira vez, ao ordenamento jurídico brasileiro a alienação fiduciária em garantia, sendo posteriormente modificada pelo Decreto Lei nº 911/69. Atualmente, os referidos diplomas regem, especificamente, a alienação fiduciária de bens móveis fungíveis e infungíveis no mercado de capitais, como é o caso, por exemplo, de um véiculo adquirido por financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.
Há também, no ordenamento jurídico, a lei nº 9.514/97, que rege a alienação fiduciária de bens imóveis, conforme Venosa:
A lei nº 9. 514/97, de 20-11-97, dispôs sobre o Sitema de Financiamento imobiliário. Além de regular vários outros institutos em prol do financiamento, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel. A finalidade desse diploma legal foi possibilitar e facilitar o financiamento imobiliário em geral.[8]
Assim, sobre a alienação fiduciária no mercado de capitais, particularmente no caso de venda de automóveis, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1622555-MG, afastou a aplicabilidade do adimplemento substancial, considerando cabível a ação de busca e apreensão de automóvel, mesmo no caso de inadimplemento de um número pequeno de parcelas.
Segundo o tribunal, o art. 3º, §2º, do Decreto Lei nº 911/69, autoriza o ajuizamento de ação de busca e apreensão em caso de mora, não havendo especificação quanto a número de parcelas não pagas. Do mesmo modo, a adoção da teoria do adimplemento substancial incentivaria o inadimplemento, assim como geraria aumento dos juros praticados pelas financiadoras em virtude do enfraquecimento da garantia.
(..). 4.1 É questionável, se não inadequado, supor que a boa-fé contratual estaria ao lado de devedor fiduciante que deixa de pagar uma ou até algumas parcelas por ele reputadas ínfimas mas certamente de expressão considerável, na ótica do credor, que já cumpriu integralmente a sua obrigação , e, instado extra e judicialmente para honrar o seu dever contratual, deixa de fazê-lo, a despeito de ter a mais absoluta ciência dos gravosos consectários legais advindos da propriedade fiduciária. A aplicação da teoria do adimplemento substancial, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, nesse contexto, é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor - numa avaliação de custo-benefício - de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, menos eficazes, o que, a toda evidência, aparta-se da boa-fé contratual propugnada. 4.2. A propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, resta comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial. 5. Recurso Especial provido. (REsp 1622555/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2017, DJe 16/03/2017).
Esses argumentos não deveriam ter prosperado. A omissão legal quanto ao número de parcelas não pode ser interpretada em desfavor do devedor, uma vez que a boa-fé objetiva é um princípio que dá base a toda legislação cível, além de estar em conformidade com a Constituição Federal.
Outrossim, na maioria dos contratos de alienação fiduciária resta configurada relação de consumo. Nesse sentido, a decisão do Superior Tribunal de Justiça vai de encontro ao art. 47 do Código de Defesa do Consumidor que pugna que as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Adotada a teoria do adimplemento substancial, não haveria incentivo ao inadimplemento, visto que não ocorreria perdão da dívida, mas apenas impedimento de utilização de busca e apreensão por ser desproporcional no caso de restar dívida de pouca monta. O credor teria outros meios de cobrança ao seu alcance, não deixando o devedor de sofrer consequências por seu inadimplemento.
Logo, por não vislumbrar o incentivo ao inadimplemento, também não se enxerga o aumento dos juros, não havendo prejuízo algum para a sociedade que tanto se utiliza dessa modalidade de contrato para financiar automóveis.
4. Conclusão
Isso posto, em cumprimento à função social dos contratos e à boa-fe objetiva, princípios que dão alicerce à legislação cível, conclui-se pela aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária no mercado de capitais, a despeito do atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1622555/MG.
Pugna-se também pela proteção do devedor, que na maioria dos casos enquadra-se como consumidor. Dessa feita, por ser a parte fraca da relação jurídica em contrapartida ao poder econômico dos bancos e demais agentes financeiros, deve receber tutela dos órgãos públicos, em especial do poder judiciário, dando concretude aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, assim como ao Código de Defesa do Consumidor.
5. Referências:
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume IV: contratos, tomo 1: teoria geral. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos unilaterais. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume V: direito das coisas. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2 ed. São Paulo: Método, 2012.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 363.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos unilaterais. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.
[3] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2 ed. São Paulo: Método, 2012, p. 539.
[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 366.
[5] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume IV: contratos, tomo 1: teoria geral. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 122.
[6] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2 ed. São Paulo: Método, 2012, p. 394.
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume V: direito das coisas. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 433.
[8] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 394.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba - FESMIP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Sergio Oliveira de Carvalho. Alienação fiduciária e boa-fé objetiva: aplicação da teoria do adimplemento substancial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51462/alienacao-fiduciaria-e-boa-fe-objetiva-aplicacao-da-teoria-do-adimplemento-substancial. Acesso em: 23 dez 2024.
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