BISTRA APOSTOLOVA
(Doutora orientadora)
Resumo: O presente artigo visa a ilustrar os diferentes aspectos e nuances no contexto da Baixa Idade Média europeia que foram determinantes para o renascimento do direito romano. O objetivo deste trabalho é igualmente mostrar como aconteceu a recepção da jurisprudência romana em um contexto diverso do qual ela foi pensada e aplicada e quais foram as adaptações necessárias para que essa inserção fosse bem sucedida.
Palavras-chave: Direito, recepção, Baixa Idade Média.
Sumário: 1. Introdução; 2. O ressurgimento do Direito Romano; 2.1 Contexto histórico e fatores para o renascimento do direito romano; 2.1.1 Fatores culturais; 2.1.2 Fatores econômicos; 2.1.3 Fatores sociológicos; 2.1.4 Fatores políticos; 3. O papel das universidades na criação do direito; 3.1 A recuperação dos textos de direito; 3.1.1 A presença do Digesto no século XII na Europa; 3.2 As universidades; 3.2.1 Dos textos ao sistema; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A compreensão do fenômeno do ressurgimento perpassa uma série de aspectos os quais se busca elucidar no decorrer deste trabalho. O renascimento do direito romano está atrelado às modificações sofridas pela sociedade na passagem da Alta para a Baixa Idade Média. A sofisticação das formas políticas, o ressurgimento das cidades e do comércio e o crescimento populacional tornaram o ambiente europeu da Baixa Idade Média altamente propício ao recebimento de influxos do direito romano.
O surgimento de novas relações sociais e econômicas carecidas de regulamentação demandava por uma unidade jurídica. Igualmente, a unidade política e religiosa, que gradativamente se consolidavam, demandavam por essa unidade no âmbito do direito. Presenciava-se a urgente necessidade de constituir um ordenamento jurídico dotado de estabilidade e previsibilidade, apto a garantir a segurança jurídica de que requer essa nova ordem econômico-social.
As universidades surgirão também nessa época, nos séculos XI e XII, tendo algumas se tornado verdadeiros centros de excelência, sobretudo no ensino jurídico. A grande importância atribuída ao direito, principalmente ao direito romano, ensejou um estudo aprofundado desta disciplina nas universidades. Assim, o sistema do direito e o ensino jurídico medieval vão se desenvolver no ambiente acadêmico, tendo este grande importância na consolidação do sistema romano, que servirá de base para diversos ordenamentos jurídicos no Ocidente.
2. O ressurgimento do Direito Romano
O renascimento do direito romano data do final do século XII e início do século XIII. Após passar séculos quase totalmente esquecida, a jurisprudência romana reconquista sua importância. O Corpus Juris Civilis, uma obra compilada por Justiniano no século VI, no Império Romano do Oriente, traz a tradição romanista, que, recém-descoberta pelos juristas europeus, se tornará a principal fonte para o estudo do direito romano[1]. Essa obra será utilizada pela primeira geração de juristas, os glosadores. Assim são intitulados aqueles que fazem as glosas, comentários cujo intuito é de harmonizar o texto, mantê-lo como um todo único e coerente.
A utilização dessa obra como fonte de direito romano, no entanto, exige que se leve em consideração que o contexto de sua produção é completamente diferente do contexto da recepção desse direito, é a retomada de um direito que vai vigorar em uma sociedade diversa daquela para a qual ele foi pensado e praticado. Os juristas da época precisarão, portanto, realizar um complexo exercício intelectual prático para adaptar o direito romano aos tempos da Baixa Idade Média.
O Corpus Juris Civilis, fruto da convocação de diversos juristas por Justiniano, uma grande compilação das fontes existentes do direito romano, se divide em quatro livros. O primeiro é o Código, que consiste em uma compilação das ordens imperiais anteriores a Justiniano. O segundo, que constitui a parte mais importante e que vai gerar toda a recepção na Idade Média, é o Digesto ou Pandectas que, por sua vez, compreende uma compilação de 1500 livros escritos por jurisconsultos do período romano, existindo uma hierarquia entre as opiniões dos jurisconsultos. O terceiro são as Institutas, que são um manual básico do ensino jurídico. O quarto são as Novelas, que são as decisões, os decretos e leis formuladas por Justiniano.
O Corpus Juris Civilis, por ter sido criado em Bizâncio, por um imperador romano do Oriente, ficou muito tempo esquecido, uma vez que não teve contato significativo com o Império do Ocidente. Assim, inicialmente, não há grande repercussão dessa obra na Idade Média. O Ocidente medieval teve de construir outras soluções para os conflitos que surgiam.
No contexto de restauração do Império ocidental, no século IX, entendia-se essa restauração como um ressurgimento do Império Romano, cujos atributos políticos foram transferidos para os novos imperadores. Cabe ressaltar aqui a importância que era dada à Igreja na época, uma vez que o Império era entendido como criação destinada a desempenhar o papel de suporte político da Igreja[2].
Os resquícios do direito romano, redescobertos no século XII no Norte da Itália, são tidos como direito do Império, um direito comum. No entanto, os domínios territoriais, reinos, cidades e senhorios apresentavam direitos próprios, desenvolvidos com base em diversas fontes, que iam desde as tradições jurídicas romanas vulgarizadas, canônicas ou germânicas até a forma consuetudinária, local, de criação de normas e resolução de litígios. Diante dessa pretensão de validade universal do direito comum, até então entendido apenas como direito romano, era improvável que a aceitação fosse imediata.
O pleno renascimento da atividade jurisprudencial nos séculos XIII e XIV apresentou como característica básica: a) unidade e ordenação das diversas fontes do direito (direito romano-justianeu, direito canônico e direitos locais); b) unidade do objeto da ciência jurídica (a jurisprudência romano-justianeia); c) unidade quanto aos métodos científicos empregados pelos juristas; d) unidade quanto ao ensino jurídico, comum por toda Europa continental; e) a difusão de uma literatura especializada escrita em uma língua comum, o latim. (MOREIRA, 2002, p. 212).
A recepção do direito clássico pode ser dividida em três momentos. O primeiro, que abrange os séculos XII e XIII, é marcado pela predominância do direito romano sobre os diversos direitos locais. O segundo, que vai do século XIV ao XV, indica o desenvolvimento dos direitos locais como fonte pari passu – simultaneamente, proporcionalmente – ao direito de Justiniano. O terceiro e último momento, que se coloca a partir do século XVI, evidencia a supremacia dos preceitos legais régios e das cidades sobre o direito privado clássico[3].
É importante salientar que, com o Digesto, que se tornará essencial para o delineamento das relações entre direito comum e direitos locais, é reconhecido que os povos têm a capacidade de criar e instituir o seu próprio direito[4]. Conforme afirma o jurista Baldo, no século XIV, “o fato de um povo existir tem como consequência que existe um governo nele mesmo”. A vigência do direito comum tinha, portanto, que se compatibilizar com a vigência das ordens jurídicas locais, menos abrangentes, sendo elas reais, municipais ou familiares.
A aplicação de um ou de outro direito, destarte, fica a depender do caso concreto. O escopo de aplicação de cada direito se delimitava a partir de a situação do caso concreto estar acobertada ou não pelo direito próprio. Encontrando respaldo legal no direito local, há primazia na aplicação deste sobre o direito comum. O direito comum não é apenas um direito subsidiário, mas é um direito modelo, que dispõe de valores gerais da razão humana, com pretensão de universalidade, aplicável a todas as situações não previstas nos direitos locais. O direito comum atua, portanto, como um critério de razoabilidade no julgamento das soluções jurídicas, reduzindo as soluções dispersas e variadas do direito local a uma ordem racional[5].
O direito romano passa, pouco a pouco, a partir do século XIII, a assumir grande importância nos ordenamentos jurídicos europeus, atuando como fonte de direito na maior parte dos sistemas ali presentes. Ainda que alguns reinos não reconhecessem a supremacia do imperador, o direito romano era aplicado quando não estava acobertada pelo direito local a matéria em questão. Verifica-se o processo de uniformização do direito à medida da crescente influência dos princípios romanistas sobre o legislador. Assim, o pluralismo jurídico e os problemas trazidos consigo eram gradativamente superados. A posição assumida pelo direito romano, portanto, era de cânone interpretativo da própria legislação dos reinos.
2.1 Contexto histórico e fatores para o renascimento do direito romano
As causas da recepção do direito romano não podem ser elucidadas de forma plena, uma vez que os elementos históricos são insuficientes para responder a essa complexa questão. No entanto, é possível apontar os fatores mais expressivos do contexto europeu dos séculos XII a XIV que impulsionaram o ressurgimento da jurisprudência clássica.
O Renascimento da Idade Média, datado do século XII, é marcado por uma série de transformações nos âmbitos econômico, social, político e cultural. A retomada das cidades e do comércio, a reorganização dos reinos, o início do capitalismo mercantil e a criação das universidades evidenciaram a necessidade de um direito novo. A modernização da sociedade europeia demandava por um direito estável e dotado de previsibilidade, capaz de atender às demandas das novas situações que surgiam.
É importante ressaltar que a necessidade da unidade jurídica é anterior ao período da efetiva recepção do direito romano, existindo desde a restauração do Império ocidental, no século IX, período em que se acreditava que os súditos, vivendo sob a autoridade de um rei, e o próprio rei deviam reger-se pela mesma lei. A unidade política e religiosa do Império demandava por uma unidade jurídica. Essa unidade, por sua vez, seria construída a partir do direito do Império Romano[6].
As fontes do direito romano se impuseram inclusive onde não era devida vassalagem ao Império Romano, devido à completude e generalidade desse direito. O direito romano permitia a elaboração de diversas soluções a partir de argumentos gerais, como a razão do direito, a equidade e a utilidade. Assim, esse sistema jusromanista era capaz de responder à generalidade das questões e era aceito em decorrência não apenas de submissão política, mas também pela aceitação de sua razoabilidade. O direito romano integrava um modelo intelectual muito valorizado nos círculos cultos europeus[7].
2.1.1 Fatores culturais
O direito romano, ainda que em alguns momentos tenha praticamente desaparecido, sempre se fez presente no continente europeu em maior ou menor grau, em virtude do profundo enraizamento das marcas da civilização romana no continente. A ausência de qualquer civilização desenvolvida e de uma cultura consolidada tornavam a Europa altamente suscetível ao recebimento dos influxos da civilização romana.
A expansão romana teve grande contribuição na integração do território europeu ao mundo clássico. Contrariamente à expansão grega, empreendida no Oriente, onde as civilizações já eram desenvolvidas, os romanos se voltam prioritariamente para o Ocidente, onde as organizações sociais eram mais primitivas. A escolha desse caminho se deve ao modo de produção de que Roma demandava, baseado no latifúndio escravagista, que requer o acúmulo de terras e um numeroso exército de escravos[8].
A conquista e a colonização de terras no Ocidente e no Norte foram possibilitadas por essa dinâmica de produção, através da prosperidade na agricultura e da utilização do trabalho escravo. Também se verifica a presença romana na construção das cidades às margens de rios europeus. Assim, de tão arraigados os traços romanos nas civilizações europeias, estes seriam dificilmente superados[9].
Com as invasões bárbaras não há destruição da antiga ordem romana, há, na verdade, a assimilação de elementos romanos por uma cultura diversa, que não perde sua identidade, mas agrega elementos novos a ela. Os povos germânicos apresentavam uma civilização bem menos desenvolvida e eram nômades e, por isso, não dispunham de um Estado enquanto território fixo. A conquista dos territórios do antigo Império Romano demandava por uma elaborada estrutura estatal de que não dispunham esses povos, o que os levava a buscar soluções nas instituições romanas. A adoção das estruturas políticas do Império Romano, como a burocracia romana, atuando juntamente com as instituições bárbaras permitiu a superação desses óbices[10].
Da mesma forma se verificou a incorporação de elementos germânicos pela comunidade romana, com a preservação do aparelho administrativo germânico e de seu sistema jurídico, por exemplo. Houve uma interpenetração entre os dois sistemas. Destarte, há fortes influxos do direito romano nas estruturas dos nascentes estados bárbaros, mas que, com o advento do feudalismo e enfraquecimento do poder real, vão desaparecendo. Não obstante, verifica-se, principalmente na Itália, a presença do direito romano por meio de costumes locais que traziam institutos jurídicos clássicos[11]. Assim se perpetua a tradição romana ao longo do tempo.
2.1.2 Fatores econômicos
Os séculos XI e XII presenciaram uma fase economicamente próspera. O aumento da produção agrícola impulsiona a transformação do panorama econômico, o que está associado às novas formas de produzir, novas técnicas que possibilitaram haver um excedente de produção. Esse momento anterior à recepção do direito romano, sobretudo entre os séculos IX e XI, se caracteriza por uma sociedade descentralizada, feudal, em que ainda não há muito comércio. O crescimento populacional, dentre outras tantas transformações nesse período, provocam, na passagem do século XI para o XII, o renascimento da Idade Média, o que gera uma nova forma de organização social. Vínculos feudais continuam existindo, eles apenas deixam de ser a organização dominante. Há a redescoberta da vida nas cidades, surgem novas formas de sociabilidade.
Essa época é marcada pelo surgimento de novos atores, que tecem novos tipos de relações sociais. O ressurgimento do comércio, da moeda, o comércio entre os Estados, a criação de casas bancárias e os empréstimos a juros marcam esse período. Surgem novas atividades desempenhadas por novos sujeitos: a burguesia, os artesãos, os banqueiros, os professores e os navegadores são apenas alguns exemplos. As dinâmicas de trabalho são postas em evidência pela relação empregado-empregador. É nesse contexto que surge o capitalismo mercantil.
O resgate ao contexto anterior ao do renascimento do direito romano possibilita compreender os fatores que impulsionaram a recepção. Assim, a efetiva recepção do direito romano, que acontece entre os séculos XIII e XVI, está associada, entre outros aspectos, ao desenvolvimento inicial da economia mercantil e monetária europeia. Esse período é marcado por uma nova ordem econômico-social, com novas relações carecidas de regulamentação. As transformações em curso demandavam por um ordenamento jurídico dotado de estabilidade, capaz de garantir a segurança jurídica necessária à previsão e ao cálculo mercantil, um direito único que possibilitasse o estabelecimento de um comércio dentro da Europa, e um direito individualista com uma base jurídica adequada à atividade do empresário, livre das limitações comunitaristas presentes nos ordenamentos medievais, os quais eram influenciados pelo direito germânico[12].
O direito romano, dotado de abstração e generalidade, se opõe ao característico direito da Alta Idade média, destituído de previsibilidade e segurança jurídica. Em virtude dessas características, o direito romano era aceito como um direito subsidiário comum a todas as zonas de comércio europeias. Os princípios do sistema jusromanista eram compatíveis com a visão capitalista das relações mercantis. A liberdade negocial, por exemplo, era garantida pelo princípio da autonomia da vontade, a possibilidade de associações funcionais era facultada pelo instituto romanístico da personalidade jurídica e o poder de dispor livremente de bens e capitais, com a possibilidade de lançá-los na circulação mercantil, era facultado pelo direito de propriedade, que não dispunha de quaisquer limitações ao uso da coisa[13].
2.1.3 Fatores sociológicos
No que tange aos fatores sociológicos, é importante relembrar a análise de Weber acerca dos motivos que levaram à aceitação do direito romano. O sociólogo elucida como a administração e a estrutura da justiça, à época da recepção, criam as bases necessárias para a organização de um direito sistematizado e racional. Para Weber, o aparelho burocrático desempenha importante papel no desenvolvimento do sistema judicial, tendo contribuído com seu caráter de segurança e previsibilidade da ação burocrática, garantida pela vinculação dos atos desse aparelho a normas jurídicas gerais e abstratas[14].
Weber entende, portanto, o processo de burocratização do Estado como causa da readmissão do direito romano na Baixa Idade Média. O contexto da Europa continental, desconhecendo um prévio poder político centralizado, favoreceu o surgimento de um sistema jurídico fundado em princípios do direito romano, que marcam os Estados nacionais desde os seus primórdios[15]. Como explicita Moreira:
A principal consequência da adoção moderna do direito romano foi o surgimento de uma classe profissional, [...] a classe dos juristas profissionais. Como salienta Weber, este fenômeno constitui um traço específico do Ocidente, fruto de um processo de racionalização da técnica jurídica que libertou o direito dos limites teológicos, entregando a administração da justiça a um corpo profissional laico, formado à sombra da tradição jurídica dos romanos. (MOREIRA, 2002, p. 220).
2.1.4 Fatores políticos
O desenvolvimento da economia mercantil juntamente ao fortalecimento econômico da burguesia proporcionaram as condições favoráveis à recepção do direito romano no Ocidente. Cabe ressaltar, no entanto, que deter poder econômico não implicava ter força política, uma vez que o poder político se concentrava na figura do monarca[16].
As causas políticas do ressurgimento do direito romano guardam estreita relação com os fatores econômicos, uma vez que a retomada deste direito servia tanto aos interesses mercantis quanto às expectativas do monarca em relação às suas prerrogativas políticas. Com efeito, a organização da sociedade dessa época se colocava sobre bases de uma economia capitalista fundamentada na liberdade dos agentes econômicos em dispor livremente de seus bens e capitais e de um poder político centralizado adstrito à discricionariedade do monarca. Essa estrutura se assemelha àquela existente no período Dominato[17], em Roma, em que a autonomia e liberdade de que gozavam os agentes no âmbito do direito privado era contrabalançada pela autoridade incondicionada do imperador na seara do direito público. Com a distinção entre público e privado, elaborada pelos romanos, é possível fundamentar o poder ilimitado dos reis[18].
O direito romano é adotado como solução diante do contexto que se assemelhava a um antigo cenário romano, o Dominato. O Estado monárquico utiliza o direito romano enquanto instrumento de centralização política e administrativa, nos mesmos moldes em que fora anteriormente usado em Roma, no sentido de equilibrar a força do âmbito privado frente ao âmbito público.
3. O papel das universidades na criação do direito
O ensino jurídico data de muito antes do surgimento das universidades. No período da jurisprudência clássica, em Roma, já havia escolas de direito, assim como no Império Romano do Oriente. Para ensinar o direito foram criados manuais introdutórios, e alguns deles têm grande importância na posterioridade, como o de Gaio, que serviu de modelo para as Instituições de Justiniano, que consolida o direito clássico[19].
O surgimento das universidades foi propiciado pelo momento de enriquecimento material da Europa. O ressurgimento das cidades, a moeda e fortalecimento do comércio impulsionaram o surgimento de movimentos intelectuais. No Ocidente medieval surge a necessidade de adquirir novos saberes, de formar bacharéis nas cidades que surgiam. As universidades emergem em um momento de forte influência da Igreja, em que esta constituía o único ambiente em que se lia, escrevia e debatia, único local de efetivo contato com os textos. Assim, as pessoas aptas a ensinarem nas universidades eram os monges, uma vez que eles detinham o saber da época. As universidades surgem, dessa forma, em um ambiente religioso.
Em meio a esse contexto, que compreende os séculos XII ao XV, se verifica o ensino do direito na Baixa Idade Média e o surgimento das universidades. Há divergências em relação a qual universidade surgiu primeiro, mas pode-se considerar que a escola de direito tem início em Bolonha, onde ocorre a união entre o direito Justiniano e a filosofia grega. O direito passava a ocupar um papel de grande relevância na Europa ocidental, marcada pela crescente centralização do poder e palco de disputa política pela jurisdição[20].
A universidade de Bolonha adquire o status de universidade no século XII, não obstante a data exata de sua criação seja objeto de controvérsia entre investigadores, tendo ocorrido no século XI ou XII. Os mestres das artes liberais se transformaram em professores de direito, o que acontece com Irnério, que é considerado fundador dos estudos jurídicos em Bolonha e que ensinava com base na compilação de Justiniano[21].
Vale ressaltar que a retomada do direito romano não acontece por acaso, há muitos fatores impulsionadores do estudo desse direito. Os séculos XI e XII vivenciaram a necessidade de encontrar para o discurso jurídico um fundamento de validade e legitimidade. Conforme explicitam os autores Cunha, Silva e Soares há duas razões para essa necessidade:
Em primeiro lugar porque se assiste neste período ao desenvolvimento de toda uma nova ordem econômico-social, com um sem número de relações carecidas de nova regulamentação, carecidas de um direito que acompanhe toda a sua complexificação. São as exigências reais de tempos que não se compadecem já com a limitada parafernália consuetudinária. [...] Por outro lado, esta tarefa, que mais não é do que uma tarefa de criação jurídica, terá que, nesta altura, ser adjudicada à nascente ciência jurídica. [...] O direito romano justinianeu surge, nesta altura, como genial e fundamental instância de validação de direito novo (CUNHA et al., 2005, p. 164-165).
3.1 A recuperação dos textos de direito
A forma como ocorreu a recuperação dos textos do direito romano ainda é objeto de controvérsia entre os historiadores. É sabido, no entanto, que havia cópias salvas dos livros do Corpus Juris Civilis, cujos textos, no entanto, não se conhecia com clareza a fonte. Teriam existido duas versões autênticas desses textos: a littera pisana-fiorentina e a littera bononiensis.
O contexto de redescoberta do texto de Justiniano é caracterizado pelo monopólio do saber pela Igreja. Os homens letrados eram majoritariamente parte do ambiente eclesiástico, se ensinava a ler e a escrever somente nas escolas eclesiais. Assim, nesse meio de ensino, se formavam os clérigos, que deviam submissão à Igreja. O Corpus Juris Civilis é agregado pelos clérigos aos textos de autoridade e da tradição cristã. Os textos antigos, como os de direito romano, eram muito valorizados pelos medievais, havia uma grande consideração pela tradição[22].
3.1.1 A presença do Digesto no século XII na Europa
O renascimento do direito romano tem sua provável origem na descoberta em Amalfi da littera pisana, um manuscrito integral do Digesto de Justiniano datado do século VI. O manuscrito, encontrado em torno de 1135 pelo imperador Lotário II, foi por este enviado à Pisa. Com a conquista de Pisa pelos florentinos, a littera é levada para Florença e passa a se denominar littera fiorentina, onde permanece até hoje. A partir do século XII, começou a ser estudada em Bolonha uma cópia da littera pisana, redigida por volta do século XI. Essa cópia, tendo se perdido e modificado diversas vezes, constitui a littera bononiensis ou littera vulgata[23].
3.2 As universidades
O surgimento das universidades data dos séculos XI e XII, época em que se inicia o processo de autonomia da ciência ocidental. Embora a concepção atual de universidade difira muito dessa antiga, o advento da universidade medieval representou um grande marco no campo do conhecimento.
As universidades dispunham de duas linhas de ensino: as artes liberais e as artes mecânicas. As primeiras desenvolveriam a escrita e a leitura, enquanto as segundas serviriam aos trabalhadores manuais. Segundo Le Goff, as bases do estudo eram as artes liberais, elas precediam o estudo das disciplinas maiores, que são direito, teologia e medicina[24].
Nesse cenário se desenvolvem universidades que representam verdadeiros centros de excelência. As universidades de Paris e a de Bolonha, por exemplo, vão se destacar no ensino do direito, que se dará de formas diferentes em cada uma. Em Paris existe a faculdade de decretos, que leciona direito canônico, uma vez que o ensino do direito romano foi proibido em Paris. Bolonha representava o centro dos juristas, lecionando tanto direito romano quanto direito canônico[25]. Conforme explica Lopes, o ensino do direito era feito da seguinte forma:
O direito dividia-se em estudo de cânones (direito canônico) e leis (direito civil, ou imperial, ou cesáreo, ou romano, conforme se chamava em lugares diferentes). Podia-se obter o título simultaneamente em direito romano e canônico, dependendo da universidade em que se estivesse estudando, daí a denominação de doctor utriuesque iuris (doutor nos dois direitos). (LOPES, 2009, P. 104).
As universidades vão gradativamente consolidando os cânones metodológicos do saber científico. Aqui se consubstancia a preocupação com o método, que se desenvolve adjacente à valorização dos padrões universais, em busca da objetividade. “É o ceticismo metodológico, que implica considerar a ciência um saber aberto.” (LOPES, 2009, p. 105).
Diante desse contexto, o ensino jurídico irá contribuir com o ius commune, o direito comum a todos, que é o direito romano interpretado pelos doutores. O ius commune tem significativa importância, realizando a tarefa de harmonização, que sobrevive aos direitos nacionais dos Estados e perdura até o século XVIII. Assim, com o advento das universidades medievais surgem os juristas, que são homens letrados. O ensino do direito nas universidades traz a possibilidade de se discutir as disputas entre o direito secular e o canônico e entre os direitos reais e feudais. Também se discute acerca de elementos centrais para o direito, como justiça e legalidade[26]. Os juristas se empenhavam, fazendo uso do método escolástico, em encontrar a harmonia lógica e racional do direito enquanto sistema coerente.
Uma vez explicitada a forma de ensino das universidades, é importante entender o modo como as universidades surgem, em que figura elas se encaixam. À época, se presenciava um contexto de surgimento de muitas corporações, que nasciam junto com as cidades. Com as universidades sucede da mesma forma, elas surgem enquanto corporações, são associações de professores – representando profissionais de mesmo ofício – e alunos. As primeiras universidades, de Bolonha e Paris, surgem espontaneamente e sem sede fixa nem data determinada.
Ainda que o ambiente gerador das universidades fosse majoritariamente religioso, a estrutura corporativa das universidades, como o caso de Bolonha e Paris, permitiu sua autonomia em relação à Igreja e ao rei. Muitas universidades nascem com a bula papal, mas com o tempo se desvencilham da influência religiosa. A autonomia se configura através da criação de um órgão judicante próprio e de um “governo” próprio, composto pelos reitores[27].
Por fim, importa ressaltar que o direito romano tinha como objeto de estudos o Digesto, enquanto o direito canônico tinha como base o texto de Graciano (Decretum) e as Decretais de Gregório IX, que surgiram depois. Esse é um dos aspectos que diferencia o ensino do direito nas universidades de Bolonha e de Paris[28].
3.2.1 Dos textos ao sistema
O direito enquanto sistema se construiu em um ambiente de debates, em um meio acadêmico de disputas intelectuais, em que toda decisão ou norma vai integrar como parte o todo denominado direito. O todo auxilia na interpretação da parte e vice-versa. Assim o sistema surge, com contradições, lacunas e que carece de interpretação. Os juristas, que vão trabalhar em cima desse direito, têm uma formação que passa pelas artes liberais e chega ao direito, tendo como base de estudo o Digesto[29].
O papel do jurista consiste na construção da unidade do texto, da razão jurídica. Dessa forma, era necessário conferir ao texto uma interpretação livre de contradições, que se inserisse no todo, pois a verdade se encontrava no todo e não na parte. Com efeito, o método desenvolvido apresenta como ponto de partida o texto de autoridade e pressupõe que o texto é potencialmente lacunoso e contraditório, o que será resolvido através da dialética, que trará a solutio. “Autoridade do texto, rigor na demonstração (dialética) e rigor no uso das palavras (conceitos), nisto se fundava o método” (LOPES, 2009, P. 113).
O sistema do direito e o ensino jurídico medieval se constroem e se consolidam em um ambiente de disputas intelectuais, nas universidades. A tradição jurídica vai se fundar no texto de Justiniano e também nos textos das disputas, agregando a autoridade do passado e as autoridades do presente. A discussão (disputatio), portanto, caracteriza o método argumentativo dos juristas. Esse debate se coloca de tal forma, com tamanha intensidade no ensino do direito, que é possível afirmar que a atividade docente precedeu a ciência[30].
4. Conclusão
O renascimento do direito romano é um fenômeno que apresenta grandes proporções e que influenciou inclusive a forma como se desenvolveu o direito no Ocidente. É importante ressaltar que esse ressurgimento não se deu ao acaso e que os influxos romanos sempre se fizeram presentes no continente europeu, em maior ou menor grau, devido ao profundo enraizamento das marcas da civilização romana nesse território.
A incipiente civilização europeia, desprovida de uma estrutura social desenvolvida e de uma cultura consolidada, se demonstrava altamente suscetível ao recebimento dos influxos da civilização romana. Assim, assumem elevada importância as instituições e a tradição romanas, que influenciam a conformação dos ordenamentos jurídicos dos recém-formados Estados nacionais e a consolidação de estruturas estatais mais elaboradas.
A influência romana se processa não na forma de imposição, mas na forma de uma simbiose, em que uma cultura diferente assimila elementos romanos, mas sem perder sua identidade própria. Para tanto, são necessárias adaptações, uma vez que se trata de elementos de uma civilização já extinta, construída em um contexto diverso daquele no qual ela será resgatada.
Ademais, é de suma importância a retomada do direito romano para o ensino jurídico e para a consolidação de um sistema de direito, o que se dará no âmbito acadêmico. Não se resumindo essa importância, no entanto, ao período do surgimento da universidade medieval, pois as consequências da influência da jurisprudência romana se fazem presentes até hoje. Assim, o grande legado deixado pelo direito romano é impossível de ser mensurado, sua importância é tamanha que não pode ser exaurida exemplificativamente neste espaço. Importa elucidar sua significativa contribuição em diversos âmbitos, escapando ao campo do direito, que se verifica até os dias atuais.
5. Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.
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HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: Forum da história, 2003.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009.
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
[1] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 212.
[2] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. 158024/8293. ed. Lisboa: forum da história, 2003, p. 104.
[3] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 212.
[4] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 105.
[5] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 105.
[6] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 107.
[7] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 107.
[8] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 213.
[9] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 61.
[10] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 214.
[11] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 214.
[12] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 106.
[13] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um milênio. Lisboa: forum da história, 2003, p. 106.
[14] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 219.
[15] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 220.
[16] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 218.
[17] O Dominato corresponde ao último período do Império romano, que vai de 280 d.C. até aproximadamente 486 d.C., que marca o fim do Império do Ocidente.
[18] MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O Direito Romano e seu ressurgimento no Final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 218.
[19] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 97.
[20] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 97.
[21] CUNHA, Paulo Ferreira da; SILVA, Joana Aguiar; SOARES, Antonio Lemos. História do Direito: do Direito Romano à Constituição Europeia. Coimbra: Almedina. 2005, p. 163.
[22] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 99.
[23] CUNHA, Paulo Ferreira da; SILVA, Joana Aguiar; SOARES, Antonio Lemos. História do Direito: do Direito Romano à Constituição Europeia. Coimbra: Almedina. 2005, p. 160.
[24] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 104.
[25] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 104.
[26] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 105.
[27] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 108.
[28] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 109.
[29] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 112.
[30] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: Lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 114.
Acadêmica pela Universidade de Brasília (UnB).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Marcele Marques. O Ressurgimento do Direito Romano na Baixa Idade Média Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51510/o-ressurgimento-do-direito-romano-na-baixa-idade-media. Acesso em: 23 dez 2024.
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