Cena cotidiana no Brasil é aquela em que alguém, diante de um fato que lhe pareça injusto, clama em bom som pela necessidade da elaboração de uma lei para solucionar a questão. Este pedido de socorro ao legislador, embora ainda possa carregar o espírito romântico difundido nos séculos XVII e XVIII, há muito tempo perdeu o seu brilho, exceto para aqueles que preferem os aplausos do discurso enfadonho em detrimento do raciocínio.
Muitas leis são escritas para dizer o óbvio, ou seja, tudo aquilo que já foi dito inúmeras vezes por suas antecessoras, mesmo quando ainda em vigor, sem qualquer utilidade prática ou teórica. Em alguns casos a leitura não é somente redundante e despicienda, como também deveras irritante. Podemos destacar como exemplo diversas leis que, na parte introdutória, repetem os direitos fundamentais contemplados pela Constituição da República. É o caso, por exemplo, da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que estabelece, em seu art. 3.º, que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. Por sua vez, o art. 2.º, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), traz expresso que “o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. E, finalmente, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), neste mesmo diapasão, dispõe, no art. 2.º, que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.”. Ora, se crianças, adolescentes, mulheres e idosos são seres humanos, a Constituição da República já não asseguraria a eles todos estes direitos? E aqueles que ainda não foram contemplados com um diploma legal específico não teriam as mesmas proteções supracitadas? Se a resposta é positiva, então qual seria a relevância da distinção por gênero e por idade?
Entre tantas dezenas de exemplos pleonásticos, o Código de Processo Penal não ficou para trás. No que diz respeito à prisão preventiva, estabelece como um dos seus requisitos a garantia da ordem econômica, precedido da garantia da ordem pública. Em que pese alguns autores colocarem em dúvida a constitucionalidade das hipóteses mencionadas, em virtude de uma suposta invasão da lei processual às questões de mérito, o certo é que a distinção entre a ordem pública e ordem econômica era totalmente dispensável. Se o magistrado determina a prisão de um indivíduo para garantia da ordem econômica, ou seja, a fim de impedir a prática reiterada de delitos dessa natureza, obviamente estará decretando a constrição da liberdade como forma de salvaguardar a ordem pública.
Em outros temas relacionados à matéria processual, a falta de serenidade torna-se reincidente. No que tange ao interrogatório, por exemplo, há uma regra que merece ser destacada como hors concours, quando passamos a tratar da incrível capacidade de se falar o óbvio. O art. 192 do Código de Processo Penal disciplina o interrogatório do surdo, do mudo e do surdo-mudo. Diz que o ato processual deverá ser realizado da seguinte forma: I- ao surdo serão apresentadas por escrito as perguntas, que ele responderá oralmente (ninguém duvida de que ao surdo não se deve fazer perguntas oralmente, e, se ele não é mudo, pode perfeitamente usar suas cordas vocais); II- ao mudo as perguntas serão feitas oralmente, respondendo-as por escrito (claro, ele é mudo, não é surdo, por isso podemos fazer as perguntas oralmente; em contrapartida, para que ele as responda do mesmo jeito, somente sob a intervenção da divina providência); III- ao surdo-mudo as perguntas serão formuladas por escrito e do mesmo modo dará as respostas (cremos que, se a testemunha não ouve, nem fala, ressalvada a técnica da telepatia, só lhe restará a via escrita).
Por falar em interrogatório aproveitemos a oportunidade para a demonstração do que pode ser considerada malícia ou pura falha legislativa. Ao admiti-lo por videoconferência, com a entrada em vigor da Lei 11.900/2008, o legislador elencou os casos em que a medida extrema poderá ser executada, a fim de evitar abusos por parte dos magistrados, tomando-se como regra a exceção. Todavia, no final do rol taxativo disposto no art. 185, do Código de Processo Penal, em seu inciso IV, ficou definido que o juiz poderá determinar o interrogatório por vídeo conferência para “responder à gravíssima questão de ordem pública”. Tendo em vista a ausência de norma explicativa capaz de estabelecer os parâmetros para que determinados situações pudessem ser assim consideradas, abriu-se um campo infinito ao magistrado, viabilizando o uso irrestrito do instituto sob o fundamento vazio da “gravíssima questão de ordem pública”.
Em outras situações, o legislador cria normas que somente serão capazes de promover justiça quando não observadas. É o caso do Código de Obras, que dispõe sobre a área mínima do banheiro de empregada fixada em 1,5 m2. Se a regra for cumprida na literalidade, o arquiteto criará um ambiente no qual a trabalhadora doméstica deverá tomar banho sentada no vaso. E, por incrível que pareça, é o retrato da realidade. Isso porque o texto legal foi aprovado pelas comissões parlamentares defensoras dos Direitos Humanos, que, vale a pena frisar, não contava com a participação do arquiteto Albert Speer, o preferido do III Reich. A imagem é tão perturbadora que qualquer pessoa com um grau de instrução mais apurado relutaria em rodar a torneira pelo receio do que dali poderia sair. Por sua vez, o quarto destinado ao repouso noturno precisa conter ventilação, não necessariamente janela; pode ser um vão quatro vezes menor do que as demais janelas da casa, composta por três esquadrias de metal sobrepostas, sustentando lâminas de vidro canelado, reguláveis por uma alavanca que não permite uma abertura completa, e sem qualquer chance do indivíduo olhar para fora ou para dentro (talvez para evitar que prefira a queda livre à asfixia). Em contrapartida, usando ainda o Código de Obras, quando se constrói uma loja ou um banco, na maioria dos casos deve ser oferecida uma vaga de garagem para cada 50 m2 executados, que jamais serão usados, nem pelos funcionários, muito menos pelos clientes, restando ao condomínio firmar contrato de locação com uma empresa de parqueamento, que cobrará por hora a qualquer pessoa, mesmo não tendo nenhuma relação com aqueles estabelecimentos comerciais.
Alguns dispositivos mostram-se tão grosseiros que o bom senso sugere ao intérprete o agravamento espontâneo da hipermetropia. Fingir não ter visto talvez seja a melhor saída. Pode-se adotar como exemplo o caso da própria Constituição da República que, em seu preâmbulo, assegura a todos os brasileiros o bem-estar, como se por intermédio de um texto impresso em folhas de papel, contendo meia dúzia de palavras, o ser humano fosse capaz de se apropriar daquilo que a maioria não consegue alcançar sequer por alguns dias: a felicidade. E se para todo direito há uma ação correspondente, por que não demandar contra o Estado a fim de obrigá-lo ao cumprimento do preceito constitucional?
A cegueira voluntária também é indicada para quem examina a Lei 7.716/1989 (Lei de Racismo), que, em seu art. 10, garante ao cidadão o livre acesso às termas ou casas de massagem, independentemente de sua raça, cor, etnia ou procedência nacional. Alguns autores sustentam que o legislador quis se referir às saunas existentes no país, bem como às clínicas de massoterapia ou outras do gênero. Será? Então se tivesse sido incluída a antiga expressão “casa da luz vermelha” deveríamos interpretar como clínica de cromoterapia? Entretanto, há de convir que o espanto não é nada comparado ao gerado pelo tipo penal do art. 32, § 1.º, da Lei 9.605/98 (Lei Ambiental), que exige a realização de “experiência dolorosa ou cruel em animal vivo”. No dia em que alguém conseguir realizar a mesma conduta em animal morto já não mais precisaremos do legislador, mas sim de exorcistas veterinários.
Dizem que as leis são muitas quando o Estado é corrupto, devendo ser entendida tal qualidade no sentido original da expressão latina corruptus, isto é, deteriorado, podre, o que se deixou estragar. Infelizmente, diante de tudo que foi acima apresentado, além de tantas outras pérolas legislativas não “homenageadas” neste texto, o Brasil se enquadra perfeitamente na referida máxima, cuja autoria foi atribuída à Tácito, político e historiador romano.
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