Resumo: O presente trabalho tem como desígnio investigar alguns aspectos da constitucionalização do direito do consumidor no contexto do Brasil e da Constituição Federal de 1988. Busca-se analisar como a hermenêutica pode resolver a colisão do princípio da defesa do consumidor inserto no art. 5º, XXXII, e no art. 170, V, ambos da Constituição Federal com o princípio da livre iniciativa ou da livre concorrência, previsto no art. 170, IV, da CF. Será proposto que a autonomia da vontade, ou seja, a liberdade de contratar não é absoluta, pois encontra limitação no Direito do Consumidor e no fato de que o risco da atividade deve ser assumido pelo fornecedor, como contrapartida da livre iniciativa. A hermenêutica constitucional fornecerá as diretrizes para resolver os conflitos de consumo, através de uma visão principiológica contida nos preceitos constitucionais, consoante uma metodologia operacional e interpretativa reflexa da Lei Fundamental.
Palavras-chave: Hermenêutica Constitucional. Constitucionalização do Direito Infraconstitucional. Defesa do Consumidor. Livre Iniciativa.
Abstract: Abstract: The present study aims to investigate some aspects of the constitutionalization of consumer law in regard of Brazil’s and the Federal Constitution of 1988’s contexts. It seeks to analyze how hermeneutics can resolve the collision of the principle of consumer protection insert in art. 5, XXXII, and art. 170, V, both of the Federal Constitution with the principle of free initiative and free competition laid down in art. 170, IV of the Constitution. It will be proposed that the autonomy of the will, or freedom of contract, is not absolute, since it is limited in consumer law by the fact that the risk of the activity must be assumed by the supplier, as a downside of for free initiative. The constitutional hermeneutics provide guidelines for resolving consumer’s disputes, through a principled vision contained in the constitutional provisions, as an operational and interpretative methodology reflection of the Fundamental Law.
Key-words: Constitutional Hermeneutics. Constitutionalization of ordinary law. Consumer Protection. Freedom of Contract. Free Initiative.
Sumário: Introdução. 1. Proteção Constitucional do Consumidor no Brasil: Da Constituição Imperial de 1824 à Constituição de 1988. 2 Do Princípio Fundamental da Defesa do Consumidor e Dos Princípios Gerais da Ordem Econômica - da Defesa do Consumidor e da Livre Iniciativa e Concorrência 3. A Colisão entre os Princípios Constitucionais da Defesa do Consumidor e da Livre Iniciativa e a Aplicação da Nova Hermenêutica Constitucional na Interpretação Constitucional Protetiva ao Direito do Consumidor. Considerações Finais. Referências.
Introdução
O presente artigo trata do aparente conflito entre dois princípios constitucionais: a defesa do consumidor e a livre iniciativa ou livre concorrência, mais especificamente no âmbito das relações de consumo.
Com efeito, a defesa do consumidor constitui norma fundamental desde sua inserção no art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal de 1988, ocasionando uma imposição ao Estado de tutelar os direitos do consumidor, como forma de garantia da própria dignidade da pessoa humana.
No entanto, não se pode olvidar da previsão do princípio da livre concorrência no art. 170, IV na CF/88, no tocante aos princípios da ordem econômica. Tal princípio não possui valor absoluto, uma vez que o legislador constitucional prescreveu a defesa do consumidor no inciso seguinte, como limite à atividade capitalista.
Diante da possível colisão entre o princípio da livre concorrência e o da defesa do consumidor, a hermenêutica constitucional tem que intervir no sentido de resolver qual princípio deve prevalecer. Todavia, já se acena, pela própria dinâmica constitucional de proteção à dignidade humana, que a conduta do fornecedor nunca poderá atentar contra os direitos básicos dos consumidores, por se tratar de um direito fundamental.
A questão aventada se torna mais evidente quando se analisa o direito do consumidor no Comércio Eletrônico.
O Direito do Consumidor no âmbito digital é situação relativamente nova no ordenamento jurídico brasileiro, que ainda não possui uma codificação própria até o presente momento, em que pese a notícia de que haverá inúmeros dispositivos legais sobre o assunto numa futura reforma do Código de Defesa do Consumidor[1].
O consumidor atual já é digital e as normas do mundo real são obviamente aplicáveis ao ambiente virtual, com as devidas adaptações. Portanto, a discussão que ali se trava é fundamentalmente de interpretação jurídica e não de defesa de uma atuação do legislador infraconstitucional para elaborar um código de comércio eletrônico.
Em realidade, a base do problema corresponde a uma simples questão de contratos entre fornecedores e consumidores e a ponderação de qual princípio constitucional deve prevalecer: a livre iniciativa ou a defesa do consumidor.
O problema de colisão de princípio existe porque a própria defesa do consumidor como princípio da ordem econômica infiltra-se como valor na iniciativa privada e na intervenção estatal no domínio econômico, de maneira que se torna indissociável à atividade econômica. Destarte, o intérprete não pode aplicar cegamente o princípio da defesa do consumidor em todo caso concreto, sob pena de inviabilizar a livre iniciativa, igualmente protegida através de princípio constitucional.
Propõe-se, assim, neste trabalho, analisar a colisão dos princípios da livre concorrência e a defesa do consumidor, buscando modos de harmonizá-los por meio da nova hermenêutica constitucional, uma vez que se defende que ambos, como princípios da ordem econômica, são fundamentais para se alcançar um Estado Social e Democrático de Direito.
Ademais, justifica-se a escolha do tema do presente estudo em virtude do fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional, que, com a subordinação do Direito Privado ao Direito Público – evidenciando a intervenção estatal própria do Estado Social – impôs ao Direito do Consumidor, como direito positivo infraconstitucional, a busca de seus fundamentos de validade nos preceitos constitucionais.
1. A Proteção Constitucional do Consumidor no Brasil: Da Constituição Imperial de 1824 à Constituição de 1988.
Para Adolfo Mamoru Nishiyama, historicamente, a proteção do consumidor está relacionada com o aparecimento da sociedade de consumo, quando houve o reconhecimento de que aquele é vulnerável em face dos grandes grupos econômicos.[2]
A inserção de dispositivos de proteção ao consumidor nos textos constitucionais, consoante Nishiyama, é um fenômeno recente, cuja primeira aparição, para o autor, ocorreu na Constituição espanhola de 1978.[3]
No Brasil, por seu turno, a proteção constitucional do Direito Consumidor foi efetivamente prevista na Constituição Federal de 1988. Contudo, algumas normas de constituições anteriores podem ser apontadas como preceitos precursores da preocupação do legislador constituinte em propiciar um mínimo de cobertura à parte hipossuficiente na relação de consumo.
A primeira previsão de norma constitucional que conferia certa proteção consumerista, embora de maneira indireta, foi encontrada na Constituição de 1824:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
(...)
XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.[4]
A norma supra não consiste em pura norma consumerista, mas pelo fato de proibir comércio, indústria, cultura e trabalho que atentem contra os cidadãos em sua segurança e saúde, bem como contra os costumes públicos, já estabelecia aquela Lei Fundamental do Império um núcleo básico de direito fundamental da dignidade humana, que também acabava por atingir o consumidor, apesar de que, à época, tal princípio jurídico não fora contemplado no texto constitucional.
Segundo Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana é o valor e o princípio referente ao mandamento de respeito ao próximo, denotando-se aí sua origem religiosa, que foi transformado por Kant, na filosofia em imperativo categórico.[5]
Com efeito, para Barroso, o princípio da dignidade da pessoa humana está na origem dos direitos fundamentais e representa o núcleo essencial de cada um deles: individuais, políticos e sociais[6].
Nesse diapasão, o direito do consumidor, obviamente inserido nesses direitos fundamentais como veremos adiante, tem como seu núcleo a dignidade da pessoa humana, a qual neste caso exerce o papel de consumidora.
Nesse sentido, Bruno Miragem esclarece que o reconhecimento dos direitos básicos do consumidor, assim como também dos direitos da personalidade dos consumidores em uma relação de consumo, está voltado para o sentido de proteção, via legislativa, da integridade da pessoa humana, nas diferentes posições jurídicas que assume na vida de relações, pois, no caso dos direitos básicos do consumidor, o objetivo é preservar a pessoa humana consumidora em suas relações jurídicas e econômicas concretas, protegendo seu aspecto existencial e seus interesses legítimos no mercado de consumo.[7]
A proteção conferida pela Carta Magna de 1824 aos cidadãos em seus costumes públicos, em sua segurança e saúde transparece, portanto, um núcleo mínimo de direito do consumidor, mesmo que pareça restrito à integridade física e psicológica, pois aqueles são os sujeitos que assumem as posições jurídicas de consumidores na vida de relações como aduziu Miragem.
Em sequência, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891, que inaugurou o período republicano no País, nada prescreveu acerca de garantias aos consumidores.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934 foi a primeira Lei Fundamental do País a tratar de direito de consumidor, in verbis:
Art. 5º - Compete privativamente à União:
(...)
XIX - legislar sobre:
(...)
i) comércio exterior e interestadual, instituições de crédito; câmbio e transferência de valores para fora do País; normas gerais sobre o trabalho, a produção e o consumo, podendo estabelecer limitações exigidas pelo bem público;[8]
Trata a norma constitucional supra da competência privativa da União para legislar em normas gerais sobre consumo, de maneira que reconhece a relação de consumo como uma área merecedora de legislação específica, com autonomia própria. Tal dispositivo merece destaque como norma precursora do Direito das Relações de Consumo.
Oportuna ainda a transcrição dos seguintes dispositivos da Constituição de 1934:
Art. 115 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.
Art. 117 - A lei promoverá o fomento da economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos bancos de depósito. Igualmente providenciará sobre a nacionalização das empresas de seguros em todas as suas modalidades, devendo constituir-se em sociedades brasileiras as estrangeiras que atualmente operam no País.
Parágrafo único - É proibida a usura, que será punida na forma da Lei.[9]
Os preceitos constitucionais supracitados acabam proteger o consumidor indiretamente ao limitar a liberdade econômica, de maneira que seja possível uma existência digna a todo, e ao fomentar a economia popular, bem como ao proibir a usura.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937, mais conhecida como a Constituição Polaca, implantada por Getúlio Vargas, quando da ditadura do Estado Novo, nada prescrevia expressamente acerca de Direito do Consumidor. Todavia, pode-se citar um dispositivo que indiretamente poderia ser utilizado para proteger o hipossuficiente consumidor:
Art. 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta. (grifo nosso).[10]
Com efeito, o dispositivo supra poderia ser utilizado para resolver os conflitos advindos dos fatores da produção, que geralmente se finda, como sabemos, na relação de consumo. Todavia, diante do caráter autoritário do regime ditatorial da época, a intervenção estatal preconizada em verdade atendia apenas interesses de grupos políticos dominantes e que se colocavam ao lado de Vargas.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 foi bem menos tímida na proteção do consumidor, uma vez que representou o fim da ditadura Vargas, com a retomada da democracia e das liberdades individuais dos cidadãos. Sobre a defesa do consumidor, direta e indiretamente, no texto constitucional, pode-se elencar tais dispositivos:
Art. 5º - Compete à União:
(...)
XV - legislar sobre:
(...)
c) produção e consumo;
Art. 15 - Compete à União decretar impostos sobre:
(...)
II - consumo de mercadorias;
(...)
§ 1º - São isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como o mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica.
Art. 145 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.
Art. 146 - A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição.
Art. 148 - A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.
Art. 154 - A usura, em todas as suas modalidades, será punida na forma da lei. [11]
As normais constitucionais citadas demonstram que a Constituição de 1946 tinha como objetivo conciliar a liberdade de iniciativa com e a justiça social e o interesse público, o que acentuou o caráter de norma programática[12] de tais preceitos.
De fato, a Constituição de 1946 trouxe em seu bojo praticamente todas as disposições que haviam sido previstas nas constituições anteriores e foi além: abriu caminho para uma maior intervenção estatal no âmbito do direito concorrencial, protegendo, assim, o consumidor hipossuficiente, conforme art. 148 supra.
Todavia, antes que tais normas pudessem ser efetivamente e amplamente implementadas através da citada intervenção estatal ou da edição de normas infraconstitucionais, ocorreu o Golpe Militar de 1964. A partir daí a Constituição de 1946 começou a ser emendada a ponto de se descaracterizar. Com a suspensão de sua vigência pelo Ato Institucional nº 1, a Constituição de 1946 foi por fim substituída pela Constituição de 1967, instituída por força do comando do Ato Constitucional n.º 4.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 foi um retrocesso para a defesa do consumidor. Apenas os seguintes dispositivos podem ser citados:
Art. 24 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal decretar impostos sobre:
II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 40, de 1968)
§ 6º - Os Estados isentarão do imposto sobre circulação de mercadorias a venda a varejo, diretamente ao consumidor, dos gêneros de primeira necessidade que especificarem, não podendo estabelecer diferença em função dos que participam da operação tributada.[13]
Sobre a ordem econômica, a Constituição de 1967 assim prescreveu:
Art. 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
I - liberdade de iniciativa;
II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade;
IV - harmonia e solidariedade entre os fatores de produção;
V - desenvolvimento econômico;
VI - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.[14]
Como se depreende dos dispositivos colacionados acima, a Constituição de 1967 estava pautada pela intervenção estatal no domínio econômico, com o escopo de estabelecer monopólios, mormente por motivo de segurança nacional ou para organizar setores da economia pouco produtivos.
Nesse raciocínio, a Constituição de 1967 estava essencialmente voltada para o Direito Concorrencial, visando o equilíbrio econômico, principalmente quando prescreve no inciso IV do art. 157 como princípio a - harmonia e solidariedade entre os fatores de produção. Todavia, a defesa do consumidor realmente ficou em segundo plano.
A Emenda Constitucional n° 1/69 - que deu nova redação à Constituição de 1967 e é, por isso, considerada por muitos, apesar ser formalmente uma emenda, uma nova Constituição de caráter outorgado - manteve o mesmo paradigma intervencionista da Constituição de 1967, com ênfase no direito concorrencial, e apenas reproduziu quase literalmente os preceitos do texto constitucional anterior.
Com a redemocratização do País, a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tratou da proteção de consumidor com grande destaque, consagrando o Direito Consumerista explícita e implicitamente em diversos dispositivos constitucionais.
Em que pese a existência de normas constitucionais anteriores precursoras do direito do consumidor, como foi proposto neste artigo, autores como o já citado Nishiyama e Cláudia Lima Marque atribuem à Constituição Vigente a inauguração de uma nova figura jurídica: o Direito das Relações de Consumo.[15]
Consoante Nishiyama, de fato, são inúmeros dispositivos da Constituição de 1988 que merecem destaque no tocante ao Direito do Consumidor, desde o art. 5º, inciso XXXII, art. 170, inciso V, e 48 do ADCT que expressamente prescrevem a proteção ao consumidor, como também o art. 24, inciso VIII, que estabelece competência concorrente à União, aos Estados e Distrito Federal para legislar sobre responsabilidade por dano ao consumidor; o art. 150, parágrafo 5º, consoante o qual a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços; o art. 175, parágrafo único, inc. II, o qual determina que a lei disporá sobre o direito dos usuários de serviços públicos; o art. 220, parágrafo 4, o qual prescreve que a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso e o art. 221 que dispõe sobre as diretrizes a serem observadas na produção e difusão de programas e rádio e televisão. [16]
Acerca dos princípios consumeristas implícitos na Constituição Nishiyama aponta o direito à igualdade, o direito de resposta, o direito ao acesso à informação, ao devido processo legal, como outros instrumentos de proteção ao consumidor.[17]
No próximo tópico serão discutidos mais especificamente dois específicos princípios constitucionais de defesa do consumidor inseridos no art. 5º, inciso XXXII, que transformaram a proteção ao consumidor em direito fundamental, e no art. 170, inciso V, o qual prescreveu a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, ambos em contraponto com o princípio da livre iniciativa (art. 1º inciso IV e art. 170, caput) e da livre concorrência (art. 170, inciso IV).
2. Do Princípio Fundamental da Defesa do Consumidor e Dos Princípios Gerais da Ordem Econômica - da Defesa do Consumidor e da Livre Iniciativa e Concorrência.
Como já apontado, a Constituição Federal de 1988 incluiu a defesa do consumidor como direito fundamental no seguinte dispositivo do TÍTULO II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais – e Capítulo I – dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;[18]
O legislador constituinte, ao prescrever a defesa do consumidor no Título II da Constituição Federal 1988, no qual estão situados os direitos e garantias fundamentais, conferiu àquela o status de norma fundamental[19].
Nesse sentido, leciona Bruno Miragem que a caracterização da defesa do consumidor como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro surge da sua localização na Constituição de 1988, no artigo 5º, XXXII, que determina expressamente: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Insere-se a determinação constitucional, pois, no Capítulo I, “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, do Título II. “Dos direitos e garantias fundamentai”. Para o Autor, como primeiro efeito desta localização topográfica do direito do consumidor no texto constitucional, tem-se assentado na doutrina e na jurisprudência brasileira que a localização do mencionado preceito constitucional neste setor privilegiado da Constituição, a rigor, coloca-o a salvo da possibilidade de reforma pelo poder constituinte instituído.[20]
Tal dispositivo constitucional existe em razão de ter a tutela ao direito do consumidor surgido como resposta à massificação social, denotando-se daí o seu caráter intervencionista, uma vez que busca proteger a parte hipossuficiente do fornecedor representado pelas grandes corporações.
Nesse ponto explica Sérgio Cavalieri Filho que a massificação da produção, do consumo e da contratação deixou o consumidor em desvantagem, porque à medida que o fornecedor se fortaleceu técnica e economicamente, o consumidor teve o seu poder de escolha enfraquecido e até praticamente eliminado. Como o consumidor passou a não ter acesso direto ao fabricante, aquele ficou submisso aos contratos por adesão, cujas cláusulas e condições eram preestabelecidas ao gosto do fornecedor, de sorte a não lhe deixar alternativa que não aquela de aceitar as condições preestabelecidas, sob pena de não ter acesso aos produtos e serviços de que necessitava.[21]
O resultado desse contexto de hipossuficiência do consumidor, por conta da desigualdade na sociedade de consumo, explica a existência do direito consumerista, destinado a regular as trocas econômicas massificadas, protegendo a parte vulnerável, ou seja, as pessoas que adquirem produtos ou serviços.
A proteção constitucional do consumidor que colocou a sua defesa como direito fundamental traz como escopo, destarte, eliminar essa desigualdade entre fornecedor e o consumidor, restabelecendo o equilíbrio entre as partes nas relações de consumo, vinculando o Estado Brasileiro a uma atuação positiva, que é a defesa do consumidor na forma da lei, consoante o próprio art. 5º, inciso XXXII da Constituição.
A lei mencionada no dispositivo supra é repetida pelo art. 48 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias:
Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.” [22]
O prazo do artigo supracitado não foi cumprido, vez que a Constituição foi promulgada em 05.10.1988 e a Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, somente entrou em vigor em 11 de março de 1991, conforme art. 118 do próprio Código de Defesa do Consumidor, três anos depois.
O art. 1º da citada Lei nº 8078/90 - Código de Proteção e Defesa de Consumidor - também faz remissão expressa à Constituição, mais especificamente ao art. 5º, XXXII, regulamentando, conforme comando constitucional, a defesa do consumidor como direito fundamental:
Art. 1º - O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal, e artigo 48 de suas disposições transitórias. [23]
Consoante o artigo supracitado, o Código de Defesa do Consumidor está imbuído de princípios imperativos, em razão da origem constitucional do Código.
Segundo o art. 1º do Código Consumerista, as normas do CDC são de ordem pública e de interesse social. Desta forma, as normas de proteção ao consumidor possuem natureza de normas cogentes, indisponíveis e inafastáveis, de aplicação imperativa, que independente da vontade das partes, podendo o juiz aplicá-las de ofício.
A prescrição do legislador infraconstitucional ao dispor que as normas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor são de ordem pública e de interesse social, teve como escopo evidenciar a função social da Lei 8.078/90.
Tal função social significa que as normas de proteção ao consumidor possuem o intuito de restaurar ou assegurar o equilíbrio entre consumidor e fornecedor nas relações de consumo.
Como dito anteriormente, a defesa do consumidor do consumidor é um direito fundamental. Portanto, tal direito confere ao consumidor um direito subjetivo público geral aplicável às relações privadas, ou seja, não devem ser respeitados somente pelo Estado, que deve tutelar os interesses dos consumidores, atuando positivamente, mas também devem ser observados nas relações indivíduos e /ou empresas privadas.
Nesse sentido, Cláudia Lima Marques entende que o Direito Privado sofreu uma influência direta da Constituição, da nova ordem pública por ela imposta e que muitas relações particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, ganharam uma relevância jurídica nova e um consequente controle estatal, que já outrora chamado de “publicização o direito privado” é, hodiernamente denominado de Direito Civil Constitucional, a denotar o domínio das linhas de ordem pública constitucional sobre as relações privadas.[24]
Ademais, o art. 170, inciso V, a defesa do consumidor também é prevista, mas ali como princípio da atividade econômica[25].
Bruno Miragem aduz que se verifica caráter de maior relevo da defesa do consumidor também quando se observa esta determinação elevada pela Constituição a princípio fundamental da ordem econômica, pois, segundo ele, no texto constitucional, como princípio da ordem econômica não se observa exclusivamente com conteúdo proibitivo ou limitador da autonomia privada, mas, ao contrário, com caráter interventivo e promocional, de efetivação dos preceitos constitucionais que o estabelecem como direito e como princípio.[26]
Nishiyama também pontua que a defesa do consumidor do consumidor consagrada na Magna Carta é um tipo de princípio programático que necessita de uma ampla política pública através das chamadas normas-objetivo, acarretando que os poderes públicos possuem certa liberdade para atingir esse objetivo com a implementação de normas.[27]
Logo, a localização da defesa do consumidor no art. 170 confirma o caráter de direito fundamental e acrescenta uma imposição ao Estado de desenvolvimento de uma política nacional de relações de consumo, que atenda as necessidades dos consumidores e vise harmonizar os conflitos com os fornecedores.
Ocorre que há dois outros princípios da ordem econômica previstos na Constituição de 1988 que deverão ser considerados no momento da aplicação da liberdade de atuação do Estado no tocante tanto à relação de consumo quanto à regulação de mercado: o princípio da livre iniciativa (art. 1º inciso IV e art. 170, caput) e da livre concorrência (art. 170, inciso IV), in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
IV - livre concorrência;[28]
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Como se depreende dos dispositivos acima colacionados, a livre iniciativa é um valor social previsto como fundamento da República Federativa do Brasil no inciso IV do art. 1º da CF, mas também é princípio da ordem econômica, no inciso IV do art. 170.
Indaga-se o motivo de ter o Legislador Constituinte de 1988 disposto sobre a livre iniciativa em dois dispositivos constitucionais, de maneira a soar como repetição.
José Afonso da Silva escreve que o princípio da livre iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Para o Autor, este princípio consta do artigo 170 como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgão públicos, salvo casos previstos em lei.[29]
O tratamento constitucional dado à livre iniciativa deve ser compreendido de acordo com a lição de Eros Roberto Grau: “A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. (...) Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”.[30]
A previsão da livre iniciativa pela Constituição de 1988 tanto no artigo 1º, inc. IV, como fundamento da República Federativa do Brasil, quanto no artigo 170, caput, como fundamento da ordem econômica, portanto, possibilita o entendimento de que aquela não se restringe apenas à liberdade de desenvolvimento da empresa, consoante ditame de fundo capitalista.
A livre iniciativa, então, além de consistir em liberdade de empresa e de trabalho, também é um valor social que precisa se harmonizar com o Estado Democrático de Direito e com a dignidade da pessoa humana (art. 1º), e tem como fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170).
O princípio da livre iniciativa, portanto, enseja obrigações de caráter negativo e positivo para o Estado. Nas obrigações de cunho negativo, o Estado tem que se abster de intervir, salvo quando ordenado pela Constituição, de maneira a respeitar a autonomia da esfera privada. Nas obrigações de caráter positivo, Estado terá que intervir, com estímulo à economia, quando necessário para garantir a existência da liberdade de contratar, da autonomia privada.
Ademais, o princípio da livre iniciativa tem como corolário o princípio da livre concorrência, que também é princípio da ordem econômica (art. 170, inciso IV da CF).
Significa livre concorrência a situação em que se busca proporcionar chance iguais aos particulares para a disputa e êxito nas leis de mercado e no desenvolvimento nacional. É o chamado direito de permanecer no mercado.
Paulo Sandroni sintetiza aduzindo que a livre concorrência é “uma situação do regime da iniciativa privada em que a empresas competem entre si, sem que nenhuma delas goze da supremacia em virtude de privilégios jurídicos, força econômica ou posse exclusiva de certos recursos”.[31]
Diante dos princípios fundamentais e de ordem econômica acima expostos, como então compatibilizar a interpretação constitucional da livre iniciativa e da livre concorrência com o princípio da defesa do consumidor? Haveria realmente uma colisão de princípios? Tais questionamentos serão a seguir analisados.
3. A Colisão entre os Princípios Constitucionais da Defesa do Consumidor e da Livre Iniciativa e a Aplicação da Nova Hermenêutica Constitucional na Interpretação Constitucional Protetiva ao Direito do Consumidor
Aparentemente, haveria uma antinomia, uma colisão entre o intervencionismo estatal de proteção ao consumidor com a livre iniciativa, pois não há hierarquia entre tais princípios, de forma que a solução de qual deve prevalecer não se encontra nas regras da hermenêutica tradicional. A nova hermenêutica prega que ambos devem ser harmonizados.
Nessa altura do trabalho será necessário, portanto, um mergulho mais profundo no campo da nova hermenêutica constitucional para que se entenda como deve ser empreenda tal harmonização para solucionar o impasse de qual princípio deve prevalecer na interpretação jurídica.
Desde a promulgação do Código de Proteção Defesa do Consumidor, momento em que o princípio constitucional da Defesa do Consumidor ganhou realmente vida, iniciaram-se grandes discussões judiciais acerca de sua aplicação ou não em determinadas situações.
Pontue-se, novamente, como foi defendido no tópico anterior, que as normas do CDC são de ordem pública e de interesse social e são, destarte, normas cogentes, indisponíveis e de aplicabilidade imperativa, justamente em decorrência da própria origem constitucional.
Logo, os antigos critérios de interpretação jurídica (anterioridade, especialidade e temporalidade), não são suficientes nem se coadunam com o perfil das normas consumerista.
Nesse ponto, a interpretação jurídica necessita seguir o paradigma da interpretação constitucional que, hodiernamente, segue um novo paradigma, em que a colisão de normas constitucionais é solucionada através de técnicas de ponderação, de harmonização de princípios, com a utilização do princípio da proporcionalidade[32] e seus critérios da proporcionalidade em sentido estrito, da adequação e da necessidade, pois a Constituição é uma unidade sistêmica que impõe respeito à coerência de seus preceitos.
Em outras palavras, quando o método sistemático é aplicado fora do âmbito da Constituição, o intérprete pode se orientar por critérios cabalmente hierárquicos. Entretanto, quando aquele método é aplicado à própria Constituição, o intérprete já não pode se servir dele, porque as normas constitucionais originárias não se relacionam por graus hierárquicos, pois todas possuem o mesmo perfil impositivo e a mesma hierarquia em razão de que uma não retira da outra o seu fundamento de validade.
Nesse sentido, Carlos Ayres Brito aduz que dentro da Constituição, cada norma vai buscar sua justificativa axiológica e sua raison d’être operacional em outra norma, não de hierarquia superior, porém de mais dilargado raio de alcance material, em razão de sua maior densidade valorativa. Para o mencionado Autor, de preceito para princípio e de princípio menor para princípio maior, a Constituição ganha unidade sistêmica.[33]
Diante desse entendimento, a primeira indagação que se faz é: qual seria o princípio maior e o menor no caso de colisão entre defesa do consumidor e livre iniciativa?
Para Britto, ambos os princípios são menores em relação ao princípio base por excelência de toda constituição: a democracia. A democracia para ele é o megaprincípio. Diante dessa perspectiva o Autor aduz que a Democracia é o único valor que perpassa os poros todos da axiologia constitucional (valor subjacente a tudo o mais), no sentido de que enquanto processo ou via de formação e deliberação de norma jurídico-primária (Democracia Formal), compreende e legitima a produção em si de todas as leis em sentido material, sejam quais forem os conteúdos dessa leis e enquanto fim ou objetivo de toda norma jurídico-primária mesma (Democracia Substancial), incorpora a positivação de valores que se marquem por uma densa vertente popular (tanto no campo institucional como na área das franquias individuais e dos direitos sociais).[34]
Se para Carlos Ayres Britto, em sua obra Teoria da Constituição, o megaprincípio da Constituição de 1988 é a democracia, para grande parte da doutrina brasileira, o valor fundamental do ordenamento jurídico do País é o princípio da dignidade da pessoa humana, corrente a qual este trabalho segue, uma vez que se percebe no valor da dignidade humana um postulado, um valor muito mais amplo do que o valor da democracia.
Nesse sentido preleciona Daniel Sarmento que o princípio da dignidade da pessoa humana é o epicentro axiológico da ordem constitucional, que irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e baliza não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado.[35]
José Afonso da Silva corrobora o pensamento de Sarmento explicando que o princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III) e se propaga por toda a Constituição. Para ele, se é fundamento é porque consiste num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Logo, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas é também da ordem política, social, econômica e cultural, decorrendo daí a natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.[36]
A teoria da colisão de princípios, portanto, vai ao sentido de que não existe um princípio absoluto: nem o princípio da defesa do consumidor nem o princípio da livre iniciativa o são. De fato, existem apenas princípios prioritários que vão prevalecer a depender do caso concreto desde que realizem ou não perturbem o valor fundamental da dignidade da pessoa humana.
Segundo Eros Grau, o momento de atribuição de maior peso a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele pondera-se o direito inteiro, como totalidade.[37] Em outras palavras Grau quis dizer que a escolha do intérprete tem que se pautar pela sistemática do Direito, que no caso em tela, significa a unidade sistemática da própria Constituição, uma vez que a discussão tratada aqui se refere a princípios constitucionais.
Voltando à colisão dos princípios da defesa do consumidor com o da livre iniciativa, importa mencionar que também o art. 170 da Constituição Federal de 1988 menciona a existência digna em seu caput.
Logo, a dignidade humana além de ser um dos fundamentos da República Brasileira, em razão do art. 170, também acarretará implicações na ordem econômica do País.
Consequentemente, a dignidade da pessoa humana desponta não só como fundamento da Constituição, mas como finalidade da própria ordem econômica: pois esta deve concretizar, ou no mínimo contribuir para, uma existência digna a todos.
Cláudia Lima Marques concorda aduzindo que prevê o art. 170 efetivamente que a ordem econômica tem como fundamento a livre iniciativa e como um dos seus limites constitucionais justamente a defesa do consumidor (inc. V), assim como a livre concorrência (inc.IV). Para a Autora, em face da nova força da Constituição, a determinar a ordem pública e a interpretação de todas as normas do sistema, a coerência deste mesmo sistema exige que o aplicador da lei harmonize os princípios constitucionais aparentemente contraditórios como a defesa do consumidor e liberdade de iniciativa econômica. Marques conclui que antinomia entre eles é aparente e desejada pelo próprio Constituinte, pois da tese e antítese nascerá a síntese, ou seja, a interpretação do ordenamento jurídico conforme a Constituição, com a consequente relativização de dogmas e postulados considerados absolutos, como a própria autonomia da vontade nos contratos e a liberdade de contratar.[38]
Assim, a Autora traduziu o intuito do Legislador Constituinte de 1988 ao prescrever os princípios da defesa do consumidor e da livre iniciativa e da livre concorrência: não há hierarquia entre eles, pois todos estão voltados para os objetivos do texto constitucional: o de conferir uma existência digna a todos. Essa avaliação de qual princípio deve prevalecer terá que ser feita pelo intérprete no caso concreto, mas com observância da dignidade da pessoa humana.
Nesse diapasão, a nova hermenêutica constitucional proporciona uma melhor harmonização de princípios em colisão. Luís Roberto Barroso esclarece que nela se assenta “um modelo de princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à interação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentadas, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa para o caso concreto.”[39]
Assim, é possível aplicar uma norma do Direito Civil em detrimento de uma norma do Código de Defesa do Consumidor, quando aquela se mostrar mais adequada em atender à sistemática da Constituição de atender ao princípio fundamental da pessoa humana.
Exemplo disso é a Súmula nº 412 do STJ, segundo a qual a ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto se sujeita ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil. Nesse caso há relação de consumo entre usuários e concessionárias de água e esgoto, mas no Código Civil o prazo prescricional é de 10 anos, conforme art. 205 do CC/02[40]. Para o CDC, o prazo nesse tipo de ação é de 5 anos (art. 27 do CDC). Pela Súmula, a jurisprudência tem decidido aplicar o prazo decenal do Novo Código Civil por ser mais favorável ao consumidor, em combinação com o art. 7º e 27º do próprio CDC[41].
A tarefa do intérprete em analisar qual princípio deve prevalecer nas relações de consumo é mais densa do que aparenta, pois o direito do consumidor não existe para acabar com a livre iniciativa. Pelo contrário, a defesa do consumidor, quando harmonizada com a liberdade de contratar, pode trazer um aperfeiçoamento à economia.
Consoante Marques, quando a liberdade contratual era considerada um princípio absoluto, inúmeros abusos ocorriam, originados pela liberdade plena de um dos contratantes – o fornecedor – e da ausência de liberdade do outro – o fornecedor.[42]
À luz desse entendimento, a defesa dos consumidores está vinculada ao principio da livre iniciativa e consequentemente da livre concorrência, e devem ser interpretados no contexto constitucional, reitere-se, harmonicamente, com o fim de uma existência digna para todos.
A harmonização das relações de consumo e da própria ordem econômica de acordo com o sentido da Constituição obedece assim ao que Lênio Streck preconizou de ver na Constituição um existencial, pois segundo ele: “quando interpreto um texto, o sentido da Constituição já está comigo, manifestando-se no meu modo de compreender o mundo.”[43] Streck propõe que a tarefa da hermenêutica é justamente trazer a manifestação do fenômeno da Constituição, para desvelar eu conteúdo, seu significado.[44]
A grande virada da nova hermenêutica constitucional, segundo Barroso, deu-se a partir da constatação de que as normas jurídicas em geral[45], e as constitucionais em particular, não possuem um único sentido, cabendo ao intérprete ponderar nesses casos difíceis de inúmeras soluções, e fazer concessões recíprocas entre os princípios, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em colisão, para proceder à escolha do bem ou direito que irá prevalecer em concreto, por ser mais adequado à vontade constitucional.[46]
O sentido da Constituição ao dispor sobre a defesa do consumidor, a livre iniciativa e da livre concorrência foi de impor ao intérprete um esforço intelectual de buscar qual a solução mais consentânea com a vontade do Constituinte. Essa vontade pode não ser imediatamente clara no texto em abstrato ou em cada caso concreto, mas ela necessariamente está voltada para o projeto de existência digna para todos.
Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi demonstrar que desde a Constituição Imperial de 1824 até a Constituição Federal de 1988, a defesa ao consumidor e a livre iniciativa foram instituídos como princípios, mesmo que indiretamente como nas primeiras leis fundamentais, que traduziam a vontade dos legisladores constituintes de buscar uma harmonia social e econômica para o Brasil.
A colisão dos princípios, todavia, somente ganhou contornos mais definidos com a Constituição de 1988, a qual prescreveu com maior ênfase normas de cunho consumerista.
As normas constitucionais de defesa ao consumidor foram complementadas abundantemente pelo CDC, que tornou ainda mais palpável a proteção conferida pelo texto constitucional.
A conclusão a que se chega é a de que a Constituição Federal de 1988 objetivou a compatibilização entre a livre iniciativa com a ideia de dignidade humana, denotando-se, destarte, tanto uma preocupação de manter equilibrada a economia de mercado, quanto uma preocupação com o consumidor, que no texto constitucional não é visto singularmente, mas como uma comunidade, uma coletividade merecedora de proteção.
Com efeito, é mais que óbvio que o consumidor representa o destinatário final da economia e da própria concorrência dos fornecedores. Logo, para haver um equilíbrio econômico, é necessária a proteção dos interesses dos consumidores através de políticas públicas que possibilitem uma harmonização, pois um interesse não pode se sobrepor ao outro sob pena de ferir a meta constitucional de construir uma ordem econômica justa.
A defesa do consumidor, como princípio da ordem econômica e como direito fundamental, representa o núcleo da dignidade humana aplicada à ordem econômica, de modo a mitigar os abusos que a aplicação absoluta dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência poderia ocasionar.
Assim, a política econômica desejada pela Constituição de 1988 e aplicada às relações de consumo e concorrenciais importará sempre na proteção à dignidade humana.
Referências
Agência Senado. Anteprojeto de Reforma do Código de Defesa do Consumidor é apresentado no Senado. Revista Eletrônica Ultima Instância. Disponível em: Acesso em 02.05.2012.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de Março de 1824). Disponível em: > Acesso em: 20.05. 2012.
[1]Agência Senado. Anteprojeto de Reforma do Código de Defesa do Consumidor é apresentado no Senado. Revista Eletrônica Ultima Instância. Disponível em: Acesso em 02.05.2012. Sobre o comércio eletrônico pontua o relator do anteprojeto Herman Benjamin: “O comércio eletrônico representa hoje não apenas bilhões de reais, mas seu crescimento é exponencial. Ele favorece o consumidor, mas, para crescer, é necessário privacidade das informações do consumidor e segurança nas transações”.
[2] NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. A Proteção Constitucional do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 23-24.
[3] Idem, p. 26.
[4] BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de Março de 1824). Disponível em: > Acesso em: 20.05. 2012.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 250.
[6] Idem, p. 251.
[7] MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. Fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consumidor. Prefácio: Cláudia Lima Marques. São Paulo: Editora Revisa dos Tribunais, 2008, p. 118.
[8] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm. Acesso em: 24.05.2012.
[9] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm. Acesso em: 24.05.2012.
[10]BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm. Acesso em 25.05.2012.
[11] BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm. Acesso em: 25.05 2012.
[12] Para José Afonso da Silva, as normas programáticas ou normas de eficácia limitada de princípio programático são aquelas que denotam o caráter compromissório das constituições que estão inseridas num contexto de transição de um Estado Liberal para um Estado Interventor. In: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 106 e seguintes.
[13]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm. Acesso em: 26.05.2012.
[14]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm. Acesso em: 26.05.2012.
[15] Nesse sentido: NISHYAMA aduz: “(...) Se antes da Constituição Federal de 1988 as relações de consumo eram regidas pelas leis civil e comercial, agora o Poder Constituinte originário criou um novo ramo do direito nas relações de consumo, dando maior destaque à parte mais vulnerável, que é o consumidor. As relações de consumo, a partir da Carta de 1988, passaram a ter autonomia própria, sendo a sua regulamentação distinta do direito comum. Essa autonomia é verificada expressamente na própria Lei Maior, no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determinou ao Congresso Nacional a elaboração do Código de Defesa do Consumidor.” (In: A proteção constitucional do Consumidor, 2002, p. 3). No mesmo entendimento, MARQUES: “A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros, dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identificando-os como grupo a ser especialmente tutelado através da ação do Estado (Direitos Fundamentais, art. 5º, XXXII)”. In: MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o regime das relações contratuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 510.
[16] Ver BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 27.05.2012 e NISHYAMA, 2002, p. 83.
[17] NISHIYAMA, 2002, p. 83/84.
[18] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 27.05.2012.
[19] Robert Alexy escreve sobre norma de direito fundamental: “Mais conveniente que basear o conceito de norma de direito fundamental em critérios substanciais e/ou estruturais é vinculá-lo a um critério formal, relativo à forma de sua positivação”. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 68.
[20] MIRAGEM, 2008, p. 35.
[21] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 7.
[22]BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 03.06. 2012
[23] BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 03 jun. 2012.
[24] MARQUES, 2002, pag. 512.
[25] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 03.06. 2012.
[26] MIRAGEM, 2008, p. 41.
[27] NISHIYAMA, 2002, p. 141.
[28]BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: . Acesso em: 03.06. 2012.
[29] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª Edição, São Paulo, Melhoramentos. 2005, p. 767.
[30] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 34.
[31] SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. 2ª ed. São Paulo. Editora Best Seller, 1999, p. 118-119.
[32] Segundo Barroso: o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (vedação ao excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha. (BARROSO, 2009, p. 283)
[33] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 82.
[34] Idem, p. 89.
[35] SARMENTO apud Barroso, p. 251 (nota de rodapé).
[36] SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Disponível em: . Acesso em: 02.06.2012.
[37] GRAU, 2002, p. 177.
[38] MARQUES, 2002, p. 514.
[39] BARROSO, 2009, p. 386.
[40] Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor. Ver: Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 08.06.2012.
[41] Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 03 jun. 2012.
Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 03 jun. 2012.
[42] MARQUES, 2002, p. 11.
[43] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002, p. 197.
[44] Idem, p. 198-199.
[45] Sobre normas jurídicas e sua divisão entre normas e princípios, sintetiza Eros Grau: “Norma jurídica é gênero que alberga, como espécies, regras e princípios - entre estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais do direito.” (p. 39). As regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada.’ (p. 152). “Já os princípios jurídicos atuam de modo diverso: mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automática e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam.” (p. 152). “Já o princípio, ao contrário, é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações.” (pág. 158). In: GRAU, 2002.
[46] BARROSO, 2009, p. 207-3011.
Advogada, formada em direito pela Universidade Federal de Sergipe (2008) e pós-graduanda em Direito do Consumidor pela Universidade Anhanguera - UNIDERP /REDE LFG. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial e do Consumidor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Déborah Barreto de. A Limitação da Livre Iniciativa nas Relações de Consumo pela Constituição Federal de 1988 sob a perspectiva da Nova Hermenêutica Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51567/a-limitacao-da-livre-iniciativa-nas-relacoes-de-consumo-pela-constituicao-federal-de-1988-sob-a-perspectiva-da-nova-hermeneutica-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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