RESUMO: O presente artigo procura fazer uma análise acerca da interpretação das regras jurídicas sob o ponto de vista da teoria da interpretação das regras e a teoria da textura aberta do autor Herbert Hart.
SUMÁRIO: 1. Introdução – Legislação e Precedente. 2. Textura Aberta. 2.1 Textura Aberta e Legislação. 2.2 Textura Aberta e Precedente. 3. Ceticismos Sobre as Regras. 4. Decisão Jurídica – Definitividade e Infalibilidade. 5. Regras de Reconhecimento. 6. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO – LEGISLAÇÃO E PRECEDENTE
A interpretação das leis sempre foi um tema corrente nos estudos jurídicos devido a sua importância para a compreensão global do que é um sistema legal.
Antes de estudar o ato de interpretar a lei, é preciso que se suponha ser a lei um possível alvo de interpretação, portanto, para que isso assim seja, é preciso que a lei, em sua estrutura, esteja organizada de tal maneira que permita essa possível interpretabilidade. Depois de confirmada essa estrutura passível de interpretação, a atenção do estudioso desloca-se para o estudo das diversas maneiras possíveis de interpretação da lei.
Nesse estudo presente, será feito uma análise, sob o ponto de vista do autor Herbert Hart, sobre a teoria da interpretação das regras. Como se verá, Hart pressupõe uma estrutura da lei, chamada de textura aberta, que permite que haja uma forte interpretabilidade das regras por parte dos juízes. Depois de estudada esta estrutura, Hart falará dos diversos ceticismos sobre as regras e da decisão judicial, consequência diretas da existência da textura aberta das leis.
Para o autor Brian Bix, uma das preocupações principais de Hart é o controle social dado através das leis[1]. Então, não é se de espantar, que Hart comece seu estudo em O Conceito de Direito definindo como deve se dar esse controle.
Hart defende que o controle social deve ser dado através de regras gerais, padrões e princípios, portanto, via classificações gerais e não particulares. Essa generalidade das regras é fundamental para que variados casos particulares possam ser objeto de controle social. Seguindo esse pensamento, Hart distingue duas maneiras principais de existência desse controle: através de “examples, analogous to precedent, and verbal instructions, analogous do legislation”[2].
A comunicação dos padrões de conduta através do exemplo, precedente, quando comparada a das instruções verbais, é muito menos clara e determinante[3]. Isso se dá porque, quando alguém (autor, dotado de autoridade) diz a um outro alguém (agente) que sua conduta deve ser seguida, o agente pode não saber exatamente o que fazer ou que conduta deve imitar, logo, acaba por ser guiado pelo senso comum e pelo ambiente circunstancial em que está no momento do ato, fatores que são muito variáveis, o que explícita ainda mais o alto grau de dúvida e incerteza que existe na comunicação de padrões de conduta através de exemplos.
Já a comunicação desses mesmos padrões através de instruções verbais, legislação, é bem mais clara e determinada pois, a conduta que deve ser seguida está escrita, e descreve com clareza a ação que deve ser tomada em dado momento. O agente não precisa mais deduzir através de elucidações o que deve fazer, basta interpretar e reconhecer o que está escrito como sendo o padrão correto para o momento tal. Resumindo nas palavras de Michael D. Bayles:
“There are, Hart says, primarily two methods for communicating standards or norms of conduct – rules and examples. [...] Rules use gerenal classifying words. Examples use few general classifying words; instead they rely on analogy and comparison with a standard case”[4].
Contudo, depois de expor essas duas ideias, Hart mostra que a distinção entre elas, na jurisprudência do século XX, já não é tão aceitada quanto parece ser[5]. Ele mostra que, também a comunicação através de uma linguagem dotada de autoridade, é incerta e deixa dúvidas pois a linguagem geral, ela própria, é suscetível a dúvidas. Uma regra geral só é claramente aplicável à um caso real quando esse caso é um caso simples, ou seja, um caso em que as expressões linguísticas são perfeitamente aplicáveis, ou, dito de outra maneira, um caso que se adequa claramente ao que é dito pela regra, seja pela sua adequação aos termos, seja pelo consenso que se tornou devido a sua ocorrência. Sobre esse último ponto, Hart diz os classifica de casos familiares, na explicação de Bix:
“Sometimes the extension of a general term from the original paradigm case to a different case is clear, not because there are no differences between the two cases, but because the problem of extension hás come up many times before, and a consensus hás developped as to wether the term should apply”[6].
Outros casos que não os simples, gerarão dúvida a respeito da aplicação ou não da regra.
Daí conclui-se os porquês das regras verbais, mesmo que um tanto mais precisas, serem incertas como o precedente: primeiramente porque a conclusão tirada da linguagem geral não é necessariamente a coisa certa a se fazer; o que está escrito se comporta mais como um exemplo delimitado linguisticamente, e cuja interpretação pelo agente pode ser tão enganadora e dúbia quanto no caso do precedente. Em seguida, porque, para se adequar esta regra escrita à outro caso que não seja um caso simples, o agente deve, através de uma escolha (poder discricionário), considerar se o caso presente se assemelha suficientemente ao caso descrito ou não.
Considerar-se-á cada uma dessas formas de comunicação de padrões, legislação e precedente, sob a perspectiva do conceito de textura aberta.
2. TEXTURA ABERTA
A textura aberta reside exatamente na incerteza de aplicação tanto do precedente quanto da legislação, vistos acima. Segundo Hart, essa incerteza na linha de fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos classificatórios gerais.
Este conceito de textura aberta, utilizado por Hart, foi introduzido no pensamento filosófico por Wittgenstein quando esse fez um estudo sobre a linguagem e a gramática. Posteriormente, o conceito foi aprofundado por Waismann.
1.2. Textura Aberta e Legislação
Primeiramente ligaremos o conceito de textura aberta às leis, à legislação. A textura aberta das leis são “qualities of rules which follow from the fact that rules are framed and stated in ordinary natural languages by the use of general words and phrases”[7]. O uso da linguagem é intrinsecamente dotado de textura aberta, e mesmo que fosse feita uma regra tão detalhada que não houvesse possibilidade de não saber quando deveria se aplicar ou não, ainda assim, haveria a incerteza. Segundo Hart, é da natureza humana a relativa ignorância dos fatos, e a impossibilidade de pré-determinabilidade da finalidade, pois este não é um mundo perfeito. Waismann tem uma passagem interessante sobre esse fato:
“Try as we may, no concept is outlined in such a way that there is no room for any doubt. We introduce a concept and limit it in some directions; [...] This suffices for the most practical purposes, and we do not probe any farther. We forget that there are other directions in which we have not limited our concept. [...] Are our concepts therefore incomplete, inexact? But when then would be an exact concept? One which anticipated all cases of doubt, one which is outlined with such precision that every nook and cranny is blocked against entry of doubt? But then we have to own, that no concept satisfies this demand; and we begin to see that there is something utopian in the demand for absolute precision”[8].
Para Hart, essa indeterminação de finalidade acontece antes de se determinar o núcleo da regra. Esse é mais um conceito de Hart, a qual deve-se dar atenção. Para esse pensador, toda regra tem um núcleo, a parte clara da regra, que deve está presente no ato para que esse possa ser identificado com a regra, é a parte certa da regra. E, juntamente com o núcleo, existe uma parte de penumbra, onde a regra já não é tão determinada. Esse conceito é melhor entendido se explicado o exemplo que o próprio Hart oferece: Supõe-se que uma lei local proíbe veículos de entrarem no parque público da cidade. Ao se analisar essa regra, compreende-se que o veículo está diretamente ligado ao termo automóveis e não aos termos “banana” ou “cachorro”. Mas, já não é tão claro se esse termo refere-se ou não, também, à bicicletas. Ora, as bicicletas também são um meio de transporte. Nesse caso, o agente teria que considerar se o caso presente tem similitudes suficientes ao núcleo da regra para configurar-se ou não como sendo parte da mesma. Hart afirma que todo termo geral tem um núcleo central de significado determinado, e uma “penumbra” ao redor, de significado indeterminado. Todo ítem que se aplique diretamente ao núcleo do termo, é verdadeiro, nesse caso, automóvel está ligado diretamente à veículo; todo ítem que extrapolar até mesmo a parte da penumbra, é falso, nesse caso, os ítens “banana” e “cachorro”; e todos os ítens que são contemplados pela penumbra não são nem verdadeiros, nem falsos, nesse caso, o ítem bicicleta. Hart continua dizendo que, para que os tribunais possam resolver casos de penumbra, eles precisam desenvolver as regras. Ou seja, o fato de decidir, escolher, se bicicletas fazem parte de veículos ou não vai expandir o núcleo da regra, determinando-o ainda mais. Essa regra reformulada vai ser, assim, capaz de resolver casos similares[9]. Assim, determina-se a finalidade da regra.
Uma maior ou menor abertura em relação a esse tipo de escolha externa à regra vai ser definida a depender do sistema jurídico em questão. Em geral, procura-se dar uma menor abertura. Um dos meios de restringir essa possibilidade de escolha externa é justamente definir o núcleo primário da regra. Tal como definir o item “veículo” como sendo o núcleo da regra exemplificada acima. A perfeição deste processo, Hart chama-o de “paraíso de conceitos”, quando o significado-núcleo dado a um termo, em uma aplicação particular, será o mesmo significado-núcleo deste termo em todo o sistema jurídico. Mas, apesar da possibilidade de discordância dos sistemas jurídicos nesse ponto, todos respeitam, de uma forma ou de outra, duas necessidades sociais: a necessidade de certas regras gerais de aplicabilidade segura, sem se precisar ponderar sobre elas, e a necessidade de deixar abertura para escolha futura sobre questões que só podem se analisadas quando efetivadas. Novamente, depende do sistema jurídico que nível de enfoque casa uma dessas necessidades vai ter.
Notando-se que essas duas necessidades descritas acima são dois extremos frutos da incapacidade humana de antecipar acontecimentos, os sistemas jurídicos criam técnicas para regular essas condutas variáveis.
A primeira técnica seria traçar padrões bem amplos (para os casos muito variáveis) e delegar um corpo administrativo para moldar essas regras às necessidades do caso específico. Vale ressaltar que os casos não contemplados por essas regras são muitos, o que acaba fazendo com que o corpo administrativo exerça um importante poder discricionário, onde nunca há uma única resposta correta. A segunda maneira de regular os extremos dessas necessidades seria através da razoabilidade da ação. Quando é impossível pré-determinar um padrão base para a regra, por mais amplo que seja, recorre-se ao que é razoável fazer na ação, ou ao chamado, no inglês, due care. “Due care is a duty imposed on each one of us to protect society from unnecessary danger”[10]. Nesse caso, cabe ao indivíduo ser razoável no momento da ação sem nem mesmo conhecer quais as especificações exigidas para aquela ação pois, a especificação do padrão exigivel só é dado a posteriori, nos tribunais, depois de violado. Segundo Neil MacCormick: “Over and above the cases of “open texture” where general terms fait to have clean-cut edges, there are cases of vagueness where, for example, a commom law ruel of statute imports some general standard such as that os ‘reasonableness’ or ‘fairness’”[11]. Pode não ficar claro o significado de diligência devida, ou due care, mas a definição é simples: diligência devida é uma ação realizada tendo em vista a tomada de certas precauções que evitarão qualquer mal, e que, ao mesmo tempo, não prejudicarão nenhum interesse importante. Diligência devida, é, então, o mesmo que ‘o que é razoável’. Portanto, nos casos em que não houver especificação sobre como se deve agir, deve-se guiar pela diligência devida, e, em caso de violação, os tribunais decidirão, a posteriori, o que é exigível nesses casos, qual é a finalidade da regra.
As técnicas expostas acima são referentes às condutas indeterminadas e variáveis. É um pouco diferente quando se fala em condutas controladas com êxito, condutas que são de tamanha importância prática que seu reconhecimento e identificação com a regra são imediatos. O que importa nesses casos é, então, que haja um processo facilmente identificável e uniforme na regra, e também que haja adesão pois, uma grande adesão determina que certas circunstâncias que ainda desafiam a lei, sejam vistas como exceções e sejam reduzidas às regras.
2.2. Textura Aberta e Precedente
Até o momento presente, só se abordou a textura aberta das regras no tocante as regras da legislação, ou regras escritas. Faz-se, então, necessário, ligar o conceito de textura aberta ao precedente. Aqui, as indeterminações das regras são mais complexas. Sabe-se que o precedente funciona como autoridade de uma determinada regras mas, não há um único método para reconhecer qual é a regra a qual esse precedente funciona como autoridade. Essa é a primeira observação que se faz quando se trata de textura aberta no precedente. A segunda afirma que não há nenhuma formulação unicamente correta ou dotada de autoridade da regra extraída do caso, só uma escolhida, e a última observação diz que, seja qual foi a autoridade da qual foi emanada a regra do precedente, ela, ainda assim, é suscetível ao exercício dos tribunais pois: - Os tribunais podem decidir de forma oposta ao precedente. – Os tribunais podem ampliar a regra para que ela se torne aplicável um caso específico.
Conclui-se que a textura aberta consiste em um espaço de penumbra da regra que está suscetível à interpretação dos tribunais quando se defrontam com um caso específico que deve ser interpretado para que se adeque à regra. Sobre a textura aberta
“Hart added that the ‘open texture’ of legal rules should be considered an advantage rather than a disavantage, in that it allows rules to be interpreted reasonably when they are applied to situations and to type of problems that their authors did not forsee or could not have forseen”[12].
O papel dos tribunais é de extrema importância, visto que não só interpretam, mas criam leis. Nas palavras de Neil MacCormick: “In modern legal opinion it has become a more or less commonplace view that in deciding such problem cases judges do not simply find and apply law, they make it”[13].
É esta característica das leis, a textura aberta, que abre caminho ao próximo problema: o ceticismo sobre as regras. É porque existe a textura aberta, que existem os céticos em relação as leis, que afirmam que as regras são aquilo que dizem os tribunais.
3. CETICISMOS SOBRE AS REGRAS
Hart classifica três correntes céticas e nega todas elas. Os ceticismos formam suas teorias tendo por base a ideia de textura aberta das regras.
(1) O primeiro ceticismo sobre as regras baseia-se na crença de que as regras resumem-se às decisões dos tribunais, portanto, nega a existência de qualquer regra legal. Hart nega essa premissa pois, é necessária a existência de regras para que se tenha um tribunal dotado de autoridade. Uma variante dessa, mais moderada, aceita as regras que estabelecem os tribunais, mas nega todas as outras ao dizer que, as leis não são direito até que sejam aplicadas pelos tribunais. Hart também a nega.
As teorias do ceticismo também são inválidas se observadas do ponto de vista social. A sociedade se conduz de acordo com o direito, o direito como sendo padrões jurídicos de comportamento, e não como hábito ou predições das decisões dos tribunais. Até porque, os padrões jurídicos de comportamento são vistos pela sociedade como sendo estáveis, algo que dita como deve ser as condutas, e que faz com que os indivíduos sigam uma linha de comportamento certa.
No tocante a teoria da função das regras na decisão judicial, os céticos têm uma posição plausível; afirmam que os juízes não estão sujeitos nem vinculados às regras, e que, assim, para os tribunais, não há um padrão de comportamento judicial correto, não havendo, portanto, nada característico, do ponto de vista interno, a aceitação das regras por parte dos mesmo. Assim eles podem, ao decidir um caso, restringir ou alargar qualquer limite de qualquer conceito para que seja resolvido o caso da maneira que mais convir, já que não estão vinculados a nenhuma outra regra que os restrinja.
Para explicar o cético e sua posição diante desse problema, Hart diz que o cético só pode ser um absolutista desapontado cujas ideias sobre o que é necessário para a existência de uma regra são ideais inatingíveis que quando descobertas não atingíveis pelas regras existentes, o cético nega que haja regras. O cético é um extremista, ou as regras seguem o padrão formalista, ou não existem regras. Argumentar desse modo, diz Hart, é ignorar que uma regra ainda é uma regra mesmo com exceções inesperadas. Uma regra que termina com “a menos que...” é ainda uma regra. Sobre esse extremismo, Hart afirma que a verdade sobre as regras reside no meio das ideias do formalismo e do ceticismo, não se resumindo a nenhuma delas.
(2) A segunda forma de ceticismo “rests on a confusion between a person’s following rules and certain psychological considerations”[14]. Distingue-se, aqui, entre um comportamento genuinamente observante da regra, ou seja, quando se faz uma ação tendo em mente a regra que dita que essa ação deve ser feita, e entre um comportamento meramente intuitivo, que faz a ação mais sem considerar a regra em questão, por intuição. O primeiro seria o comportamente exigido na sociedade. O cético analisa, então, o comportamento de um juiz na hora de decidir um caso e diz que esse decide intuitivamente, sem considerar a regra existente, e depois que decide escolhe uma regra para fundamentar o que já decidiu. Michael Bayles faz um critica aos céticos quando discorre: “when adding two and two to get four one does not consciously apply rules of adition but simply gives the answer. This in no way shows that one is not following rules of addition. That one is following rules is shown by citing them as justification for decisions”[15].
(3) A terceira e última forma de ceticismo, que Hart aceita como sendo a mais plausível, acredita que, quem quer que seja que tenha autoridade absoluta para interpretar e aplicar leis é, para todos os fins, a pessoa que as cria. Hart vai discutir e descordar dessa premissa ao abordar o tema da definitividade e infalibilidade na decisão jurídica.
4. DECISÃO JURÍDICA – definitividade e infalibilidade
Continuando a análise do último tipo de ceticismo, afirma-se que o supremo tribunal tem a palavra final ao dizer o que é direito, e mesmo que alguém negue esse fato, a negação torna-se inválida. “O direito (ou a constituição) é o que os tribunais dizem que é”, suas decisões são, portanto, definitivas e infalíveis. Hart, como já exposto anteriormente, nega esse fato. Ele faz uma analogia com um jogo de futebol para explicar o que realmente acontece e como acontece a decisão jurídica, mas a explicação extensa do jogo aqui é dispensável, só uma rápida conclusão é necessária.
Um jogo de futebol sem marcador é “regulado” pelos próprios jogadores com base em regras de pontuação pré-definidas por eles próprios. Esse tipo de regulamento pode levar a certas confusões, então, institui-se um marcador oficial. Torna-se verdade a frase “o resultado do jogo é aquilo que o marcador diz que é” mas é importante lembrar que para que isso aconteça é importante que as regras pré-determinadas de pontuação ainda existam, pois se não existissem, o marcador escolheria suas decisões discricionariamente. A decisão do marcador é sim final, definitiva, porém, não é infalível. O marcador pode cometer erros, mesmo que não intencionalmente e é preciso prever formas de correção para esses erros via instâncias superiores, que, por sua vez, também serão suscetíveis a erros na hora da decisão. Vale ressaltar que, depois de instituído o marcador, as afirmações dos jogadores não passam de aplicações não-oficiais da regra de pontuação. Não poderia ser de outro modo, a não ser que o jogo fosse o da discricionariedade do marcador, mencionada acima. O jogo da discricionariedade do marcador consiste em que não haja regras pré-estabelecidas de pontuação e, são essas mesmas que caracterizam um jogo normal de futebol. Essa regra, como outras, têm também uma área de textura aberta, mas também um núcleo de significado estabelecido. É, pois, esse núcleo que permite dizer que as determinações do marcados não são infalíveis, embora sejam definitivas. É certo afirmar que o marcador procura seguir as regras de pontuação, mas se não o fizer de forma alguma, o jogo torna-se o da discricionariedade do marcador. Todas essas considerações valem no âmbito to direito, e aplicando-as ao pensamento da lei conclui-se o seguinte.
É verdade que a ação dos tribunais no espaço deixado em aberto pela textura aberta do direito é grande, sendo todas as suas decisões mantidas a não ser quando modificadas pela legislação, que, será também interpretada pelos tribunais tendo esse a palavra final, como já afirmado aqui anteriormente. Ainda assim, continua existindo uma distinção entre uma constituição que dita normas a serem seguidas pelos tribunais, como uma constituição moderna do século XX, e uma que permite aos tribunais fazer o que quer que seja que desejem.[16] No primeiro caso, o real, existe um padrão de decisão judicial determinado e dotado de autoridade e que deve servir de guia para os juízes em suas decisões. As regras jurídicas determinadas atuam como sendo uma cobertura verbal para o exercício de uma discricionariedade e também servem de base para a criação de regras genuinamente consideradas pelos tribunais como padrões de decisão correta. Ora, a afirmação da existência dessas regras supõe que exista um consenso geral de aceitabilidade das mesmas, e que, assim, qualquer tipo de violação dessas será vista como uma ação de desvio do padrão aceitável, vê-se que “this is not merely a metter of the efficiency or health of the legal system, but is logically a necessary condition of our ability to speak of the existence of a single legal system”[17]. Porém, é preciso que fique claro que essas regras só existem pois são aceitas pelos juízes em geral. O juiz não cria os padrões, mas sua manutenção enquanto padrão vinculante e dotado de autoridade depende da adesão dos juízes. Se, por exemplo, em um dado momento os juízes se juntassem e decidissem que os padrões atuais não seriam mais aceitos, isso acarretaria em uma transformação de sistema, o que, vale salientar, é muito raro que aconteça, mas não é impossível. Resume-se: os juízes,
“although their decisions are final, they are not engaged in judge’s discretion. Judges have to exercise discretion in cases when laws are indeterminate, but they are not free from norms determining which rules are relevant and limiting their range of discretion to indeterminate or hard cases under thoses rules”[18].
A essas regras, ou padrões de decisão judicial determinados, Hart dá o nome de Regras de reconhecimento, e faz uma profunda análise sobre as tais.
5. REGRAS DE RECONHECIMENTO
“There are [...] two minimum conditions necessary and sufficient for the existence of a legal system. On the one hand those rules of behaviour which are valid according to the system’s ultimate criteria of validity must be generally obeyed, and, on the other hand, its rules of recognition specifying the criteria of legal validity and its rules of change and adjudication must effectively accepted as common public standards of official behavious by its officials”[19].
As regra de reconhecimento são, segundo Hart, os critérios últimos usados pelos tribunais para identificar as regras de direito válidas. São as regras que permitem que não haja, ou haja em menor grau, uma incerteza quanto ao critério que deva ser utilizado para identificar uma regra como sendo uma regra do sistema. Diferente da incerteza quanto a uma regra concreta, pois, por mais que essa seja clara, pode, ainda assim, suscitar dúvidas sobre o poder do legislador de legislar de tal ou tal maneira. Essas dúvidas dizem respeito aos critério últimos de validade jurídica, ou seja, à competência jurídica do próprio poder legislativo supremo.
Cada sistema define como deve ser dada a sua validade e o poder que deve ter o legislativo, o que vai depender, basicamente, da regra que o sistema tem por base. Na Inglaterra de Hart, por exemplo, a regra básica é “seja o que for que a Rainha no Parlamento promulga, é lei” e essa, como qualquer outra, pode ser alvo de constantes dúvidas a respeito do seu significado e âmbito de aplicação, ou seja, a regra-base de uma organização jurídica é tão indeterminada quanto as outras regras do sistema.
Hart faz, então, uma análise aparentemente paradoxal sobre o sistema legal e as regras últimas. Para ele, são os tribunais que determinam a regra última de validade do sistema, assim, a afirmação de que “a constituição é aquilo que os juízes dizem ser” para ser cabível, porém, não significa que as decisões dos supremos tribunais não possam ser postas em causa. Paradoxal? Sim, como podem os tribunais criarem critérios últimos pelos quais a validade das próprias regras que lhe dão jurisdição e autoridade como juízes devem elas próprias serem testadas? Mas Hart classifica a forma de especificar os critérios de validade jurídica de um sistema como sendo análoga a forma que os tribunais exercem uma escolha criadora de direito, ao interpretarem uma lei concreta que se revelou indeterminada, a única diferença reside no fato que, nesse último caso, a escolha do juiz é delimitada por um leque de alternativas deixadas pela lei existente, e quando vai especificar os critérios últimos de validade, não existe essa previsibilidade. Argumenta, porém, que em um sistema jurídico existente admite que as regras sejam duvidosas em alguns pontos, mas é uma condição necessária a esses, que elas não o sejam em todos os pontos.
Confirmando mais uma vez que sua concepção ideal de regras jurídicas reside entre as ideias dos céticos e dos formalistas, e esclarecendo o paradoxo acima exposto, Hart faz uma critica a esses últimos ao dizer que é um erro pensar que cada passo percorrido pelo tribunal está coberto por uma regra geral que confira, antecipadamente, autoridade para esse percorrer. Ainda sobre o paradoxo, afirma que a aceitabilidade das escolhas feitas pelos tribunais vem depois que essas resoluções tiverem obtido êxito no sistema jurídico, o poder adquire autoridade ex post facto a partir do êxito. Portanto, a afirmação que o tribunal sempre esteve “coberto” por regras gerais anteriores serve apenas como uma forma de fazer o processo parece um pouco mais organizado.
Aqui, depois das diversas criticas feitas a esses, Hart saúda o cético, mas, concluindo seu pensamento e confirmando mais uma vez sua posição intermediária entre os extremos, formalismo e ceticismo, diz que a ação cética só é bem vinda na zona limítrofe da regra, e desde que essa ação não impeça o reconhecimento de que grande parte dos avanços feitos em termos de regras fundamentais, foram frutos do prestígio obtido pelos tribunais através de atos regidos pelas regras sobre as zonas vastas e centrais do direito.
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[1] BIX, B.. Law, language and legal determinacy. Oxford Press University, 1995.
[2] Id. Ibid. p. 8.
[3] Id. Ibid.
[4] BAYLES, M. D.. Hart’s Legal Philosophy: an examination. Springer, 1992, p. 86.
[5] BIX, B.. Law, language and legal determinacy. Oxford Press University, 1995.
[6] Id. Ibid. p. 7.
[7] MACCORMICK, N.. H. L. A. Hart. Stanford University Press, 1981, p. 124.
[8] WAISMANN, F. apud BIX, B.. Law, language and legal determinacy. Oxford Press University, 1995, p.13.
[9] LYONS, D.. Open Texture and the possibility of legal interpretation. Working Paper Series, BU Law Working Paper, n. 99-9, 1999.
[10] MORRIS, H.. Freedom and responsibility: readings in philosophy and law. Stanford University Press, 1961, p. 289.
[11] MACCORMICK, N.. H. L. A. Hart. Stanford University Press, 1981, p. 124.
[12] BIX, B.. Law, language and legal determinacy. Oxford Press University, 1995, p. 8.
[13] MACCORMICK, N.. H. L. A. Hart. Stanford University Press, 1981, p. 125.
[14] BAYLES, M. D.. Hart’s Legal Philosophy: an examination. Springer, 1992, p. 90.
[15] Id. Ibid.
[16] Id. Ibid.
[17] MANN, C. J.. The function of judicial decision in European economic integration. BRILL, 1972, p. 102.
[18] BAYLES, M. D.. Hart’s Legal Philosophy: an examination. Springer, 1992, p. 92.
[19] HART, H. apud SILTALA, R.. A theory of precedent: from analytical positivism to post-analytical philosophy of law. Hart publishing, 2000, p. 8.
Graduada em Direito pela UFPE. Pós Graduanda em Direito Processual Tributário pela UFPE. Pós Graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Sofia Ramos. A textura aberta e suas consequências Estudo do filosofia legal de Hart Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51594/a-textura-aberta-e-suas-consequencias-estudo-do-filosofia-legal-de-hart. Acesso em: 23 dez 2024.
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