RESUMO: Através da análise da doutrina e da jurisprudência, busca-se analisar a compatibilização material e formal do Estatuto do Desarmamento com a Constituição da República Federativa do Brasil.
Palavras-chave: Constitucional. Penal. Desarmamento. Compatibilidade. Constituição.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Fundamentos. 3. Posição do Supremo Tribunal Federal. 4. Outros pontos controvertidos: 4.1. Competência; 4.2. Vigilância privada. 5. Considerações finais. 6. Referências
A Lei nº 10.826 de 22 dezembro de 2003, conhecida como o Estatuto do Desarmamento, dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, além de criar novos tipos penais relacionados a armas de fogo.
Fazendo um breve histórico de sua concepção, remota à 1997 os primeiros movimentos pró-desarmamento no Brasil, quando o controle de armas de fogo começou a entrar na pauta de preocupações nacionais. Neste mesmo ano, foram registradas algumas mudanças legislativas pertinentes ao tema, bem como a estatística de que mais de 80% dos crimes cometidos, o eram por armas de fogo.
Em junho de 2003, ano em que foi organizada uma Marcha Silenciosa, com sapatos de vítimas de armas de fogo em frente ao congresso nacional, os legisladores criaram uma comissão mista de deputados federais e senadores para formular uma nova lei, analisando todos os projetos que falavam sobre o tema nas duas casas e reescrevendo uma lei conjunta, a qual culminou na Lei nº 10.826/03.
No mesmo ano o Estatuto foi aprovado no Senado, tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados em outubro. Voltou para o Senado novamente, onde outra vez foi aprovado rapidamente. No dia 23 de dezembro o Estatuto do Desarmamento foi sancionado pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva, tendo sido vetado somente o § 4º do art. 25.[1]
Em 2005, seguindo o disposto no art. 35, § 1º, da Lei[2], foi realizado plebiscito a fim de determinar se o comércio de armar de fogo e munição seria suspenso, o que foi descartado pela população, continuando o comércio a ser realizado, porém somente dentro dos parâmetros fixados na Lei.
O Estatuto foi modificado pelas Leis: 10.884/04, 10.867/04, 11.501/07 e 11.706/08.
2 FUNDAMENTOS
Segundo os defensores do desarmamento, essa política atende aos mandamentos da Constituição, especialmente ao art. 144, o qual prevê como responsabilidade do Estado a segurança pública, exercida através das polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e corpos de bombeiros militares.
Entretanto, a Constituição não afirma se os cidadãos poderão ou não portar armas de fogo. Logo, a constitucionalidade da liberação ou não da venda de armas de fogo passa por acirrada discussão teleológica: a possibilidade de os cidadãos terem armas de fogo melhora ou piora a segurança pública?
Para aqueles que defendem o desarmamento, o rastreamento de armas de fogo seria condição fundamental para a tutela do sistema de segurança pública e de persecução penal[3]. Apesar de se falar somente em rastreamento, a verdade é que poucas são as possibilidades de se ter porte de arma hoje no Brasil, de acordo com o Estatuto atualmente em vigor.
Já quem defende a posição contrária, baseia-se na premissa de que o desarmamento atinge somente os cidadãos, sendo a maioria dos crimes cometidos com armas contrabandeadas e roubadas (das polícias, das forças armadas, etc.). Ademais, utilizam-se de dados estatísticos, como por exemplo, no Brasil temos 26 homícidos por 1.000 habitantes, contra as seis mortes por 1.000 nos EUA, onde a posse de armas de fogo tanto é liberada como faz parte da cultura[4].
Nesse sentido, o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB) apresentou este ano, projeto de lei que visa revogar o Estatuto de Desarmamento, instituindo novas normas de compra e cadastramento de armas, tornando-as mais acessíveis à população[5].
Assim, vemos que a essência da Lei nº 10.826/03, qual seja, a possibilidade de o cidadão portar ou não armas de fogo não passa por uma análise constitucional, e sim sociológica e ética. Entretanto, analisando-se os demais aspectos da Lei, podemos destacar alguns pontos controversos quanto à constitucionalidade, os quais analisaremos a seguir.
Contra a nova Lei foram intentadas várias ações declaratórias de insconstitucionalidade (3112, 3137, 3198, 3263, 3518, 3535, 3586, 3600, 3788, 3814), tendo sido as mesmas julgadas pelo STF em maio de 2007. Na ocasião, três dispositivos da Lei foram considerados inconstitucionais: os arts. 14, 15 e 21.
O parágrafo único do art. 14[6] e o parágrafo único do art. 15[7], que previam a inafiançabilidade para os tipos penais porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e disparo de arma de fogo, respectivamente, foram julgados inconstitucionais por constituírem “crimes de mera conduta que, embora reduzam o nível de segurança coletiva, não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade”[8], acolhendo entendimento exarado pelo Ministério Público.
Perceba-se que a CF/88 define alguns crimes como inaficançáveis[9], devendo tal rol ser considerado taxativo em razão do princípio da presunção de inocência. Assim, a única legislação infraconstitucional que define crimes inafiançáveis é a Lei nº 8.072/90 – que dispõe sobre os crimes hediondos – conforme expressa previsão constitucional[10].
Também foi considerado inconstitucional o art. 21 da Lei, o qual negava liberdade provisória aos acusados dos crimes de posse ou porte ilegal de arma de uso restrito, comércio ilegal de arma e tráfico internacional de arma. A maioria do Tribunal considerou que o dispositivo vai de encontro aos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal.
Quanto ao art. 35, também questionado, foi este declarado prejudicado, isto por ter perdido o objeto em 2005, quando foi realizado plebiscito sobre o qual já se comentou.
A ADI 3112 ainda tratava de aspectos formais. Alegou-se que o Congresso não poderia dispor sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos ou criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, sendo tal iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, II, a e e). Tal argumento foi rejeitado, entendendo-se que a Lei não trata desses pontos.
A controvérsia pairava sobre o Capítulo 1 da Lei, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, definindo suas competências. Entretanto, tal Sistema já existia desde 1997[11], não tendo a Lei criado nenhum órgão, cargo, função ou emprego público, mas somente definindo competências e procedimentos para dar efetividade à Lei.
4 OUTROS PONTOS CONTROVERSOS
4.1 Competência
Segundo o Estatuto, em seu Capítulo I, as armas de fogo de uso civil devem ser registradas perante a Polícia Federal, no Sistema Nacional de Armas – Sinarm. Já o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas – Sigma, tem o objetivo de cadastrar armas institucionais das Forças Armadas, Polícias Militares Estaduais, Corpo de Bombeiros Militares, Agência Brasileira de Inteligência, armas de representação de outros órgãos públicos, além das armas de uso individual de seus integrantes[12].
As armas cadastradas no Sigma também deveria ser fiscalizadas pela Polícia Federal, “mas, para haver o controle, é preciso que o Exército efetive a integração do Sigma ao Sinarm, o que, após seis anos de vigência da lei, não aconteceu”[13].
Assim,
as armas militares estão fora do alcance do controle da Polícia Federal, em violação ao espírito do Estatuto [...] o que dificulta inclusive investigações e persecução criminal nos casos de comércio irregular de armas militares, extravio de armas militares e uso dessas armas em crimes tipificados no Código Penal, entre outros[14].
Esse é, portanto, um ponto que, embora não seja inconstitucional, torna a Lei falha, devendo ser corrigido para que esta possa atingir seus objetivos.
4.2 Vigilância privada
Várias foram as críticas feitas ao Estatuto pelo setor da vigilância privada. Isto porque tal ramo é regido por legislação própria, tendo necessidade de compra a manuseio de armas de fogo para atingir sua finalidade.
Assim, um ponto da Lei que entrou claramente em conflito com o que estava estabelecido na legislação regente dessa atividade foi o art. 28, o qual prevê que “É vedado ao menor de 25 (vinte e cinco) anos adquirir arma de fogo, ressalvados os integrantes das entidades constantes dos incisos I, II, III, V, VI, VII e X do caput do art. 6o desta Lei”.[15]
Entretanto, “A legislação que trata da vigilância privada, permite o exercício da profissão de vigilante, armado ou desarmado, a partir dos 21 (vinte e um) anos de idade”[16]. Ademais, a justificativa da limitação de idade seria a suposta imaturidade das pessoas abaixo da idade limite, embora a maioridade civil e penal seja obtida aos 18 anos.
Assim, tal artigo seria inclusive inconstitucional, ao prever diferenciação entre membros da segurança pública e as demais pessoas, em razão da idade, quando tal diferenciação não está constituionalmente prevista.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que a Lei em tela foi editada em face de certo clamor social, como o são tantas outras leis em nosso país. Ademais, esta causou diversas polêmicas, tendo sido alvo de diversas ações frente ao STF, todas decididas em 2007.
Entretanto, alguns pontos ainda geram controvérsia, apesar de não se tratarem obrigatoriamente de inconstitucionalidades. Ainda assim, merecem tais pontos atenção especial da doutrina, a fim de que esclarecimentos sejam formulados e mudanças sejam propostas.
Por fim, e mais relevante, é que o ponto principal da Lei não passa por uma análise constitucional somente, pois que aspectos sociológicos e éticos são os principais a se considerar quando se quer decidir se os cidadãos devem ou não ter acesso a armas de fogo.
6 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em . Acesso em 03 de abr. 2018.
BRASIL. Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2012.
De olho no Estatuto do Desarmamento. Histórico: o que aconteceu? Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2012.
De olho no Estatuto do Desarmamento. Filtragem constitucional do Estatuto do Desarmamento. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2012.
MAGALHÃES, Luiz Carlos. A prevenção, o controle, o combate e a erradicação do tráfico ilícito de armas pequenas e leves no Brasil e o Programa de Ação da Organização das Nações Unidas. Celso Ferro (Orientador), George Felipe de Lima Dantas (Co-orientador), Cláudio Medeiros Leopoldino (Co-orientador). Brasília: União Pioneira de União Social – UPIS, 2006.
PEREIRA, Rodrigo. Projeto pretende regularizar porte de armas de fogo no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 31 mai. 2012.
Revista Segurança Privada. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2012. Págs. 15/17.
Supremo Tribunal Federal. Supremo declara inconstitucionalidade de três dispositivos do Estatuto do Desarmamento. Disponível em: . Acesso em: 25 mai. 2012.
VARGAS, André. Demétrio Magnoli: "Mudar Estatuto do Desarmamento por massacre em Realengo é oportunismo". Disponível em: . Acesso em: 31 mai. 2012.
VIEIRA, Walderês Martins. Breves apontamentos sobre o Decreto nº 5.123, de 1º de julho de 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 mai. 2012.
[1] Informações disponíveis em:
< http://www.deolhonoestatuto.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=41&Itemid=59 > . Acesso em: 24 mai 12.
[2] Art. 35 É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei. § 1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
[3] Disponível em:< http://www.deolhonoestatuto.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=715&Itemid=60 > . Acesso em: 24 mai 2012.
[4] Disponível em:
< http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/demetrio-magnoli-realengo-e-desculpa-para-suprimir-direitos >.. Acesso em: 31 mai 2012.
[5] Disponível em:
< http://www.observadorpolitico.org.br/grupos/opiniao/forum/topic/projeto-pretende-regularizar-porte-de-armas-de-fogo-no-brasil/?topic_page=2 >. Acesso em: 31 mai 2012.
[6] “O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente”.
[7] “O crime previsto neste artigo é inafiançável”.
[8] Disponível em:
< http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=69810&caixaBusca=N >. Acesso em: 25 mai 2012.
[9] Art. 5º, XLII, XLIII e XLIV
[10] Art. 5º [...] XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis [...] os definidos como crimes hediondos
[11] Disponível em:
< http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=88 >. Acesso em: 29 mai 2012.
[12] Informações presentes em monografia, disponível em: .
< portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID=%7B59DF8533-9B92-4772-9A31-2543B98986E2%7D&ServiceInstUID=%7BB78EA6CB-3FB8-4814-AEF6-31787003C745%7D >. Acesso em: 31 mai 2012.
[13] Disponível em:
< http://www.deolhonoestatuto.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=715&Itemid=60 >. Acesso em: 31 mai 2012.
[14] Idem.
[15] Art. 6º […] I – os integrantes das Forças Armadas; II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal; III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei […]
[16] Disponível em:
< http://www.sindesp-rj.com.br/frame/revista09/desarmamento.pdf >. Acesso em: 24 mai 2012.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará; Pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá e Assessor I no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará;<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Samuel Gonçalves de. O Estatuto do Desarmamento à luz da Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51616/o-estatuto-do-desarmamento-a-luz-da-constituicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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