RESUMO: O presente artigo busca fazer uma análise da nova hipótese de dispensa de licitação inserida na Lei 8.666/1993 pela Lei 13.500/2017. Fazendo uso da doutrina especializada, da jurisprudência e da legislação correlata, apresenou-se um panorama atual sobre a interferência judicial na realização de políticas públicas e sobre os requisitos para a utilização da nova espécie de dispensa de licitação.
PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas; Licitação; Dispensa; Presídios.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. IMPOSIÇÃO JUDICIAL DA REALIZAÇÃO DE OBRAS EM PRESÍDIOS. 3. NOVA HIPÓTESE DE DISPENSA DE LICITAÇÃO. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 5. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
A função de administrar os recursos públicos e assegurar os direitos e a realização das políticas públicas previstas na Constituição Federal cabe, precipuamente, ao Poder Executivo (CARVALHO FILHO, 2014, p. 3). A alocação desses recursos é considerada uma atividade discricionária, que deve ser realizada de acordo com a conveniência e a oportunidade dos representantes eleitos pela sociedade.
Como é cediço, os recursos públicos são limitados. Por esse motivo, o administrador público tem a tarefa de realizar as chamadas “escolhas trágicas” na alocação desses recursos, de modo que o atendimento de uma necessidade muitas vezes implicará no não atendimento de outra (NOVELINO, 2017, p. 479). Com isso, invariavelmente alguns indivíduos são prejudicados por essas escolhas, nem sempre corretas, o que leva à judicialização dessas políticas públicas, com fundamento na inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CF).
O princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, foi usado por muito tempo como argumento para impedir a interferência do Poder Judiciário nessa atividade de alocação de recursos. No entanto, esse princípio vem passando por uma releitura e ganhando novo significado, conforme leciona Marcelo Novelino:
A doutrina liberal do início do século XIX preconizava uma rigorosa separação de funções a serem atribuídas com exclusividade a cada órgão da soberania. No entanto, esta rígida separação, diversamente da fórmula elaborada por Montesquieu, mostrou-se inadequada, sendo que atualmente a ideia de limitação da soberania por meio da repartição das competências distribuídas por diversos órgãos perdeu grande parte de seu valor. Hoje, o princípio não apresenta a mesma rigidez, e a ampliação das atividades estatais impôs novas formas de inter-relação entre os Poderes, de modo a estabelecer uma colaboração recíproca. Atualmente há uma tendência de considerar que a teoria da separação dos poderes engendrou um mito, consistente na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados, no qual cada poder recobriria uma função própria sem qualquer interferência dos outros. (NOVELINO., 2017, p. 259).
Nesse contexto, o Poder Judiciário vem assumindo um papel de protagonista na realização dos direitos fundamentais dos indivíduos sem que haja violação do princípio da separação dos poderes, por meio do chamado ativismo judicial, relacionado à teoria do não interpretativismo (NOVELO, 2017, p. 153). Isso vem sendo aceito pela jurisprudência e pela doutrina sob o argumento de que certos direitos constitucionalmente assegurados não podem estar sujeitos à atividade discricionário do administrador público na alocação de recursos.
São cada vez mais comuns as decisões judiciais que impõem ao Poder Executivo obrigações relacionadas à satisfação de direitos previstos na Constituição. Uma das situações que tem recebido destaque é a imposição da realização de obras para melhoria das condições de estabelecimentos prisionais, que notadamente encontram-se em situações precárias. Conforme será demonstrado, a jurisprudência vem aceitando a legitimadade dessa interferência judicial, o que influenciou o Poder Legislativo na edição da Lei 13.500/2017, objeto do presente estudo, que incluiu nova uma hipótese de dispensa de licitação na Lei 8.666/93 relativa a obras em presídios.
2 IMPOSIÇÃO JUDICIAL DA REALIZAÇÃO DE OBRAS EM PRESÍDIOS
Conforme exposto, há uma tendência atual de permitir-se uma maior interferência do Poder Judiciário no âmbito do Poder Executivo, especificamente no exercício da função administrativa. Diversas decisões judiciais vêm impondo obrigações de fazer à Administração Pública como propósito de efetivar direitos fundamentais, o que já levou os Tribunais Superiores a firmarem entendimentos sobre o tema.
Um dos problemas mais sensíveis é aquele relacionado às situações precárias dos estabelecimentos prisionais, seja em razão de más escolhas políticas na alocação dos recursos ou da própria ausência desses recursos.
O precedente mais relevante sobre o tema para o presente estudo é a decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE nº 592.581, que teve a seguinte ementa:
REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS. INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL. I - É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. II - Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial. III - Sentença reformada que, de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal. IV - Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes. V - Recurso conhecido e provido. (STF - RE: 592581 RS, Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 13/08/2015, PLENÁRIO, Data de Publicação: DJe 01/02/2016)
Nesse julgamento, realizado sob a sistemática da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal passou a permitir que o Judiciário imponha ao Poder Executivo a realização emergencial de obras em estabelecimentos prisionais em situação de precariedade. Para a Corte Suprema, essa decisão não viola o princípio da separação dos poderes, uma vez que o direito à integridade física e moral do preso, prevista expressamente no art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, é indisponível e não pode estar sujeito às decisões dos administradores públicos na alocação de recursos. Dessa maneira, é possível afirmar que a discricionariedade na alocação de recursos públicos encontra limite nos direitos fundamentais básicos dos indivíduos, especialmente os derivados diretamente da dignidade da pessoa humana.
A reserva do possível é um contra-argumento utilizado pelo Poder Público para impedir a interferência judicial na realização de políticas públicas. Segundo essa teoria, as decisões judiciais que imponham obrigações à Administração pública devem levar em consideração as limitações fáticas e jurídicas existentes em relação aos recursos públicos.
Sobre a origem dessa teoria e sua relação com os direitos fundamentais de cunho prestacional, leciona Marcelo Novelino:
A reserva do possível pode ser compreendida como uma limitação fática e jurídica oponível, ainda que de forma relativa, à realização dos direitos fundamentais, sobretudo os de cunho prestacional. A expressão foi difundida a partir da decisão paradigmática proferida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em 1972, quando se discutiu o direito de acesso gratuito ao ensino superior, cujo número de vagas era menor que o de candidatos (Caso numerus clausus). Apesar do direito fundamental à educação não estar consagrado expressamente na Constituição Alemã, o Tribunal entendeu que a liberdade de escolha profissional exigia, em certa medida, o acesso ao ensino universitário. Não obstante, na decisão ficou estabelecido que a prestação reclamada deveria corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, cabendo ao legislador, em primeiro plano, avaliar quais interesses da coletividade devem ser prioritariamente atendidos pelo orçamento, em razão da reserva do possível. (NOVELINO, 2017, p. 481).
É perceptível, dessa forma, a estreita ligação entre o argumento da reserva do possível e os direitos fundamentais prestacionais, como a educação. Foi por esse motivo que o Supremo Tribunal Federal afastou esse argumento ao decidir o RE nº 592.581. O que está em jogo na precária situação dos presídios não é um direito a uma prestação estatal, mas sim um direito fundamental do indivíduo de manter sua integridade física e moral durante a prisão. Esse direito está previsto expressamente no art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal e compõe o que a doutrina chama de “mínimo existencial”, o qual, conforme afirma Marcelo Novelino, limita a possibilidade invocação do argumento da reserva do possível (NOVELINO, 2017, p. 483).
O Supremo Tribunal Federal firmou, inclusive, o entendimento de que é possível condenar o Poder Público a indenizar os danos morais sofridos por presos em situações degradantes, em razão da custódia estatal:
Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão Geral. Constitucional. Responsabilidade civil do Estado. Art. 37, § 6º. 2. Violação a direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários. Indenização. Cabimento. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato de agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicável. Ocorrendo o dano e estabelecido o nexo causal com a atuação da Administração ou de seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado. 3. "Princípio da reserva do possível". Inaplicabilidade. O Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto permanecerem detidas. É seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir danos que daí decorrerem. 4. A violação a direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários não pode ser simplesmente relevada ao argumento de que a indenização não tem alcance para eliminar o grave problema prisional globalmente considerado, que depende da definição e da implantação de políticas públicas específicas, providências de atribuição legislativa e administrativa, não de provimentos judiciais. Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios como o de que trata a presente demanda. 5. A garantia mínima de segurança pessoal, física e psíquica, dos detentos, constitui dever estatal que possui amplo lastro não apenas no ordenamento nacional (Constituição Federal, art. 5º, XLVII, “e”; XLVIII; XLIX; Lei 7.210/84 (LEP), arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88; Lei 9.455/97 - crime de tortura; Lei 12.874/13 – Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), como, também, em fontes normativas internacionais adotadas pelo Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14; Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25; Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas – Resolução 01/08, aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros – adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955). 6. Aplicação analógica do art. 126 da Lei de Execuções Penais. Remição da pena como indenização. Impossibilidade. A reparação dos danos deve ocorrer em pecúnia, não em redução da pena. Maioria. 7. Fixada a tese: “Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”. 8. Recurso extraordinário provido para restabelecer a condenação do Estado ao pagamento de R$ 2.000,00 (dois mil reais) ao autor, para reparação de danos extrapatrimoniais, nos termos do acórdão proferido no julgamento da apelação. (STF - RE: 580252 MS, Relator: Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 16/02/2017, PLENÁRIO, Data de Publicação: DJe 11/09/2017) (grifamos)
Percebe-se, portanto, que é plenamente possível a condenação da Administração Pública a realizar obras em presídios, assim como é possível a condenação ao pagamento de danos morais aos presos em situações degradantes. Por conseguinte, são necessários mecanismos para facilitar o cumprimento dessas decisões, tendo em vista as regras e os princípios a que está sujeita a atuação da Administração Pública, considerando-se, especialmente, a obrigação de realizar licitações para firmar contratos administrativos. Um desses mecanismos é a hipótese de dispensa de licitação criada pela Lei 13.500/2017.
3 NOVA HIPÓTESE DE DISPENSA DE LICITAÇÃO
A realização de licitações é uma obrigação da Administração Pública que decorre expressamente do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal. É por meio da licitação que o interesse público pode ser alcançado nas contratações administrativas, tanto em relação aos particulares quanto em relação ao Poder Público.
Com efeito, o art. 3º da Lei 8.666/93 indica expressamente as finalidades das licitações públicas, que abrangem a observância do princípio da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa do ponto de vista da Administração e a promoção do desenvolvimento sustentável. Além disso, o dispositivo mencionado relaciona diversos princípios básicos que devem ser observados.
Nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, apenas nos casos expressamente previstos na legislação será possível realizar contratações administrativas sem a necessidade de licitação pública. Existem três casos, de acordo com a doutrina, em que a contratação direta é possível: I- Licitação dispensada, nos casos do art. 17 da Lei 8.666/93; II- Licitação dispensável, nos casos do art. 24 da Lei 8.666/93; e III- Licitação inexigível, nos casos do art. 25 da Lei 8.666/93 (CARVALHO, 2017, p. 497).
Nos casos de licitação dispensada, o adminsitrador público não poderá optar por realizar a licitação, sendo obrigado a realizar a contratação direta, por determinação legal (CARVALHO, 2017, p. 498). Por sua vez, nos casos de licitação dispensável, caberá ao administrador, em juízo de discricionariedade, decidir se realizará a licitação ou a contratação direta (CARVALHO, 2017, p. 498). Os casos que permitem a dispensa de licitação são aqueles previstos no art. 24 da Lei 8.666/93, cujo rol é taxativo (DI PIETRO, 2013, p. 394). Por fim, licitação será inexigível quando não for possível a realização da competição entre interessados (CARVALHO, 2017, p. 497).
Por meio da Lei 13.500/2017, que resultou da conversão da Medida Provisória nº 781/2017, foi incluído o inciso XXXV no art. 24 da Lei 8.666/93, criando nova hipótese de dispensa de licitação. Além disso, a Lei 13.500/2017 alterou a redação do inciso I do parágrafo único do art. 26 da Lei 8.666/93, que trata de um dos elementos que devem instruir o processo de dispensa.
A redação atual do dispositivo que contém a nova hipótese de dispensa é a seguinte:
Art. 24. É dispensável a licitação:
[…]
XXXV- para a construção, a ampliação, a reforma e o aprimoramento de estabelecimentos penais, desde que configurada situação de grave e iminente risco à segurança pública.
Essas modificações representam, claramente, uma reação legislativa provocada pelo entendimento jurisprudencial firmado pelo STF no RE nº 592.581. Tendo em vista que a Administração Pública está sujeita à observância obrigatória da licitação para realizar contratações, ressalvados os casos previstos na legislação, nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, a alteração legislativa em análise afigura-se como um instrumento para permitir a celeridade na observância das decisões judiciais que imponham a realização de obras em estabelecimentos prisionais. Dessa forma, a Lei 13.500/2017 busca atender aos anseios da sociedade.
Cumpre asseverar que o Regime Diferenciado de Contratações também pode ser utilizado para realizar contratações de obras e serviços de engenharia no âmbito dos estabelecimentos penais, conforme prevê expressamente o art. 1º, inciso VI, da Lei 12.462/2011. Esse regime constitui uma nova modalidade de licitação (DI PIETRO, 2013, p. 417), que tem o propósito de ser mais célere do que os procedimentos previstos na Lei 8.666/93 (CARVALHO, 2017, p. 581). No entanto, a dispensa de licitação com certeza constitui um procedimento mais simplificado e que pode atender de forma mais eficiente a necessidade decorrente de uma situação de iminente segurança pública. Dessa forma, parece pertinente a criação da nova hipótese de dispensa em exame, que será utilizada a critério da Administração Pública, tendo em vista que a dispensa de licitação nos casos do art. 24 da Lei 8.666/93 é discricionária (CARVALHO, 2017, p. 499).
Para a realização da contratação direta com base no art. 24, inciso XXXV, da Lei 8.666/93, é necessário que a situação possa ser enquadrada na previsão desse dispositivo. Por conseguinte, a contratação direta somente pode ter por objeto construção, ampliação, reforma ou aprimoramento do estabelecimento prisional, não cabendo ampliação desse rol pela via interpretativa, uma vez que o art. 24 da Lei 8.666/93, como visto, é taxativo .
Ademais, deve haver situação de grave e iminente risco à segurança pública. Nesse ponto, a lei fez uso de conceitos jurídicos indeterminados, uma vez que não é possível definir de forma apriorística todas as situações que sejam graves e que possam gerar risco à segurança pública. De acordo com Matheus Carvalho, a utilização pelo legislador desses conceitos vagos ou indeterminados permite a utilização do poder discricionário da Administração Pública (CARVALHO, 2017, p. 123). Cabe, portanto, ao administrador público, com uma certa margem de discricionariedade, identificar a gravidade da situação e enquadrá-la no dispositivo legal.
É importante ressaltar que a hipótese de dispensa de licitação em análise difere daquela prevista no art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/93:
Art. 24. É dispensável a licitação:
[…]
IV- nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos.
No caso do dispositivo transcrito, a dispensa de licitação ocorre em uma situação de emergência ou calamidade pública, de forma semelhante ao que ocorre na dispensa para obras em estabelecimentos prisionais. Entretanto, no caso do inciso IV, os contratos possuem uma limitação de duração de até 180 (cento e oitenta) dias. Essa limitação não existe no caso do inciso XXXV, de modo que a contratação direta para obras em presídios deve obedecer aos limites de duração previstos no art. 57 da Lei 8.666/93.
Sendo possível enquadrar a situação que demande obras em estabelecimento prisional na hipótese do art. 24, inciso XXXV, da Lei 8.666/93, será necessário observar o art. 26 do mesmo diploma normativo. Apesar de a licitação poder ser dipensada, não é possível dispensar o procedimento licitatório (CARVALHO, 2017, p. 507). A licitação consiste apenas na competição entre as propostas dos concorrentes habilitados. Por outro lado, o procedimento licitatório é sempre essencial, como decorrência do devido processo legal (art. 5º, IIII, da CF) e dos princípios que regem a Administração Pública (art. 37, caput, da CF).
É esse também o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. VÍCIOS NO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. ANULAÇÃO. POSSIBILIDADE. SÚMULA 473/STF. 1. A impetrante foi contratada em 20.08.07, por inexigibilidade de licitação, para fornecimento de livros didáticos ao Estado do Maranhão. Todavia, identificando vícios no procedimento de contratação, o ente estatal editou a Portaria nº 840, de 14.09.07, anulando o certame. A recorrente afirma que a administração pública cometeu ilegalidade, pois o desfazimento do vínculo, após a assinatura do contrato, apenas pode ser realizada em duas situações: interesse público ou ocorrência de fato superveniente devidamente comprovado. 2. A contratação direta por inexigibilidade de licitação exige uma série de providências formais, de modo a justificar a regularidade da qualificação jurídica do contratante, a necessidade do bem ou serviço pretendido, a inviabilidade de competição e a razoabilidade dos preços. 3. Na hipótese dos autos, foram detectados vícios procedimentais que impossibilitaram a continuidade do vínculo contratual. A dúvida existente sobre a autenticidade dos documentos que justificaram a contratação direta (como por exemplo, pareceres da assessoria jurídica sem a assinatura do advogado parecerista, bem como, sem assinatura do Chefe da Assessoria Jurídica à época, o certificado de exclusividade com selo indicando data posterior à ratificação do instrumento)é situação apta a ensejar a nulidade do contrato. Aplicação da Súmula 473/STF. 4. A anulação do certame público autoriza o interessado a buscar eventuais perdas e danos, pelos meios cabíveis em direito. 5. Recurso ordinário em mandado de segurança não provido. (STJ - RMS: 28552 MA 2008/0286292-5, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 17/03/2011, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/03/2011) (grifamos)
Nesse sentido, caberá ao administrador público instruir o procedimento de dispensa com a devida caracterização da situação de grave e iminente risco à segurança pública, nos termos do art. 26, parágrafo único, da Lei 8.666/93, com a redação dada pela Lei 13.500/2017, realizando o enquadramento na previsão do art. 24, inciso XXXV, da Lei 8.666/93. Caso a realização das obras tenha sido imposta por decisão judicial que afirme haver necessidade emergencial, conforme permite o STF (RE nº 592.581), será necessário instruir o procedimento também com essa decisão, para que seja devidamente demonstrada a motivação da contratação.
Além da devida caracterização da situação grave, deverá o administrador instruir o procedimento com os demais elementos previstos no art. 26, parágrafo único, da Lei 8.666/93: razão da escolha do fornecedor ou licitante, justificativa do preço e documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados. Em seguida, será necessário dar publicidade ao procedimento, como condição de eficácia, de acordo com o caput do art. 26 da Lei 8.666/93 (CARVALHO, 2017, p. 507).
Observadas essas imposições legais, será possível a contratação direta de empresas para a construção, a ampliação, a reforma e o aprimoramento de estabelecimentos prisionais, com o propósito de solucionar situações graves e que gerem iminente risco à segurança pública.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando-se o estágio atual do entendimento jurisprudencial e doutrinário, é plenamente possível ao Poder Judiciário obrigar o Poder Executivo a realizar obras ou tomar medidas em estabelecimentos prisionais com o propósito de assegurar a integridade dos presos. Há, dessa maneira, uma grande judicialização das políticas públicas. Vale ressaltar que esse tipo de decisão, conforme definido pelo Supremo Tribunal Federal, não fere o princípio da separação dos poderes, bem como não cabe ao Poder Público utilizar o argumento da reserva do possível, em razão da necessidade de observância do direito fundamental dos presos à integridade física (art. 5º, XLIX, da CF).
O ativismo judicial vem criando uma nova dinâmica de interação entre os três Poderes da República, mediante uma releitura do princípio da separação dos poderes insculpido no art. 2º da Constituição Federal, e tendo como pano de fundo os direitos fundamentais previstos no texto da Constituição. O Poder Judiciário vem assumindo um papel cada vez mais importante no cumprimento dos mandamentos constitucionais, podendo impor obrigações ao Poder Público. Dessa forma, é necessário que o Estado procure novas formas de atender de forma eficiente às decisões judiciais e aos anseios da sociedade.
Parece ter sido esse o propósito da edição da Lei 13.500/2017, que passou a permitir a contratação direta para a realização de obras em estabelecimentos prisionais em situações graves e de risco. Com essa nova ferramenta, o administrador público, desde que observe todas as imposições legais, poderá realizar de forma mais célere as contratações e solucionar mais rapidamente os problemas.
Essa inovação legislativa foi uma resposta necessária aos novos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários e será de grande valia para o Poder Executivo, desde que, frise-se, seja utilizada da forma correta e de acordo com as leis e os princípios que regem a atividade da Administração Pública.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Recurso Ordinário no Mandado de Segurança nº 28.552 - MA (2008/0286292-5). Relator: Ministro Castro Meira. Disponível em > Acesso em 26 de abril de 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252 - MS. Relator: Ministro Alexandre de Moraes Disponível em > Acesso em 26 de abril de 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 592.581 - RS. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em > Acesso em 26 de abril de 2018.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
CUNHA Jr., Dirley da. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
Advogado, graduado em Direito pelo Instituto de Educação Superior da Paraíba - IESP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Caio Felipe Caminha de. Obras em presídios: análise da nova hipótese de dispensa de licitação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51617/obras-em-presidios-analise-da-nova-hipotese-de-dispensa-de-licitacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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