RESUMO: O presente artigo tem como propósito principal a elucidação de dois relevantes fenômenos do Direito Civil, quais sejam: a sucessão do cônjuge e a do companheiro. Analisando com afinco as conceituações e particularidades desses institutos, serão reconhecidas contraposições e semelhanças, objetivando delinear um esquema comparativo entre ambos. Ao final, será destacado o recente entendimento consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral.
PALAVRAS-CHAVE: Regimes sucessórios. Cônjuge. Companheiro. Diferenciação. Inconstitucionalidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da sucessão do cônjuge. 3. Da sucessão do companheiro. 4. Comparativo entre os institutos. 5. Da inconstitucionalidade da distinção dos regimes sucessórios dos cônjuges e companheiros. 6. Conclusão.
1. Introdução
O Código Civil de 2002 apresenta o Direito das Sucessões em seu último livro, estruturação que se encontra em sintonia com o aspecto cronológico das relações humanas, uma vez que trata da parte do Direito Civil referente às sucessões decorrentes da morte. Segundo os ensinamentos de José de Oliveira Ascensão, o Direito das Sucessões possui a finalidade institucional de assegurar a continuidade da pessoa humana.
A sucessão mortis causa, portanto, encontra seu fundamento na primordialidade em dar a continuidade possível ao descontínuo causado pela morte[i]. Os atos praticados pelo de cujus quando vivo repercutem, após sua morte, não apenas sob um viés jurídico, mas também em função da relevância social que este teve enquanto ente ativo de uma comunidade dinâmica e interativa. O reconhecimento da sucessão, por conseguinte, além de representar corolário da garantia do direito à propriedade, conforme exposto na CF/88 em seu art. 5º, caput, XXII e XXIII, é fundamental para a certeza no tempo quanto ao adimplemento de obrigações.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka por sua vez, aduz que o fundamento do Direito das Sucessões reside na necessidade de alinhamento entre o Direito de Família e o direito de propriedade, in verbis:
o fundamento da transmissão causa mortis estaria não apenas na continuidade patrimonial, ou seja, na manutenção pura e simples dos bens da família como forma de acumulação de capital que estimularia a poupança, o trabalho e a economia, mais ainda e principalmente no ‘fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família’[ii].
Traçados os pertinentes respaldos teóricos acerca da imprescindibilidade de regulação das sucessões mortis causa, tem-se que duas são suas modalidades essenciais, nos termos do art. 1.786 do CC/02: a sucessão legítima, a qual, diante de ausência de testamento, decorre da própria lei, que define a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do falecido; e a sucessão testamentária, que, como o nome já adianta, tem origem em ato de última vontade do autor da herança, em exercício de sua autonomia privada antes do falecimento.
A regra, então, é que primeiro se proceda à busca de algum mecanismo sucessório válido e eficaz do autor da herança e, inexistindo tal disposição, seja levada em conta a ordem de sucessão legítima em lei estabelecida.
Entre as inúmeras peculiaridades dessa seara do Direito Civil, dois aspectos ganham maior projeção, mormente por conta das inovações trazidas pelo legislador com o Novo Código Civil, de 2002, a saber, a sucessão do cônjuge e a sucessão do companheiro.
2. Da sucessão do cônjuge
Historicamente, registra-se que desde a última fase do Direito Romano, com a codificação justinianéia, já se reconhecia à mulher o direito de sucessão do marido. No Direito Brasileiro, aponta-se a longa trajetória percorrida na sucessão cônjuge até chegar-se aos dias atuais, marcados pelas inovações trazidas pelo Código Civil de 2002.
Anteriormente à vigência do Código Civil de 1916, a sucessão do cônjuge era marcada por profunda injustiça, visto que se situavam em quarto lugar na ordem de vocação hereditária, depois, portanto, dos colaterais, que eram chamados a suceder até o décimo grau. Tal conjuntura só veio a ser modificada com o advento da Lei nº 1.039/1907 (“Lei Feliciano Pena”), que foi responsável por colocar o cônjuge em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária.
O Código Civil de 1916 manteve a ordem preestabelecida, condicionando, portanto, a sucessão do cônjuge à ausência de descendentes e ascendentes e à manutenção da sociedade conjugal, ou seja, não podia estar o casal legalmente separado. Em tal ordem legal, o cônjuge não se figurava entre os herdeiros necessários e, portanto, o de cujus podia, através de testamento, dispor de todos os seus bens, negando ao cônjuge supérstite participação em sua herança.
Contudo, tal sistema foi sendo modificado aos poucos. Inicialmente, com a Lei nº 833/1949, que permitiu o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, foi possível que o cônjuge casado sob o regime de separação de bens concorresse com os filhos reconhecidos, recebendo metade dos bens deixados pelo de cujus.
Com o advento da Lei nº 4.121/62 (“Estatuto da Mulher Casada”), estabeleceu-se a sucessão usufrutuária do cônjuge supérstite, em quota variável a depender da existência de descendentes ou ascendentes do falecido, salvo se casado sob o regime de comunhão de bens. Muito é discutida a natureza do usufruto vidual; normalmente esse é considerado como um legado “ex lege”, porém muitos autores o identificam como uma herança necessária, já que não pode ser afastado por testamento e recai sobre fração abstrata do patrimônio. Contudo, diferentemente da herança, que é perpétua, a sucessão em usufruto é temporária e condicional, pois só permanece enquanto viúvo for o cônjuge supérstite.
Registra-se que importante é análise do sistema anterior ao Código Civil de 2002, tendo em vista que este ainda se aplica a todas as sucessões abertas até 10 de janeiro de 2003; ou seja, desde que o óbito haja ocorrido na vigência da lei revogada, é esta que se aplica, independentemente do inventário e da partilha realizar-se após aquela data.
Diversas foram as inovações trazidas pelo novel Código Civil, mormente no que diz respeito à sucessão do cônjuge. Neste sentido, registra-se que o legislador de 2002 consagrou a qualidade de herdeiro necessário do cônjuge, assim como melhorou a sua posição da ordem de vocação hereditária, permitindo-lhe concorrer com os descendentes e ascendentes. Vejamos, portanto, a redação do art. 1.829 do CC/02:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.[iii]
Da análise do mencionado artigo, infere-se que o cônjuge supérstite, a depender do regime de bens, pode ser excluído da herança quando concorre com os descendentes do de cujus, justificando-se a primeira e terceira hipóteses (regime de comunhão universal e parcial quando o falecido não houver deixado bens particulares) no direito à meação e a segunda hipótese (regime de separação obrigatória) na decorrência lógica da exigência legal de separação dos bens quando da constituição da sociedade conjugal. Logo, quando configurada a situação do inciso I do art. 1.829, o cônjuge herda se casado com o falecido no regime de separação convencional, no regime de comunhão parcial quando tiver o de cujus bens particulares e no regime de separação final nos aquestos.
No que se refere à possibilidade do cônjuge herdar os bens do falecido quando casado no regime de separação final nos aquestos, Caio Mario da Silva Pereira expõe pertinente crítica, consubstanciada na hipótese do cônjuge sobrevivente ser meeiro e herdeiro dos mesmos bens quando não houver entre esses os indicados no três incisos do art. 1.674, CC/02[iv].
Cumpre ressaltar que o art. 1.830, CC/02 expressa uma condição à sucessão do cônjuge, qual seja, a inexistência de separação judicial ou de fato há mais de dois anos quando do óbito. Ressalva-se, contudo, a herança do cônjuge supérstite, se a separação de fato não decorrer de sua culpa.
Assim com previsto no Código Civil de 1916, a partir das alterações implementadas pela Lei nº 4.121/62 (“Estatuto da Mulher Casada”), a novel legislação traz, em seu art. 1.831, o direito real de habitação sobre o imóvel residencial familiar, desde que este seja o único daquela natureza a inventariar. Diferentemente da legislação anterior, atualmente tal direito independe do regime de bens do casal e perdura a despeito da cessação do estado de viuvez.
A partilha da herança entre o cônjuge e descendentes dá-se na forma dos artigos 1.832 a 1.835 do CC/02. Via de regra, cabe ao cônjuge quinhão igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça, ou seja, a legítima é dividida igualmente entre o cônjuge e os filhos do de cujus. Concorrendo o cônjuge com descendentes de graus distintos, a herança será dividida em tantos quinhões quantos sejam as cabeças (no caso de herdeiros por direito próprio – cônjuge e filhos) ou estirpes (no caso de herdeiros por representação – netos/filhos do filho pré-morto do de cujus). Por fim, caso o cônjuge concorra com descendentes de graus mais remotos, sucedendo todos eles por direito próprio – como no caso de haver apenas netos –, a herança será dividida por cabeça, em quinhões idênticos.
Neste diapasão, registra-se uma exceção à regra da partilha por cabeça, consubstanciada na reserva da quota mínima da quarta parte da herança para o cônjuge quando este for ascendente dos herdeiros com quem concorrer. Tal benefício não se aplicaria, portanto, quando o cônjuge concorresse apenas com descendentes exclusivos do falecido. Em razão da lacuna normativa, grande é a celeuma em torno da sucessão na hipótese de haver tanto descendentes comuns como exclusivos do falecido. Diversas são as soluções apresentadas, porém aquela que se mostra mais adequada, por respeitar tanto o princípio constitucional da igualdade jurídica de todos os filhos, quanto a legislação infraconstitucional, é a apresentada por Flávio Augusto Monteiro de Barros, in verbis:
O problema deve ser solucionado pelas regras de proporção matemática. A propósito, apresentamos a seguinte fórmula:
a) divide-se a herança pela soma dos herdeiros, isto é, elo total de filhos e o cônjuge;
b) subtrai-se da herança a parte dos filhos incomuns;
c) apura-se ¼ sobre a herança, sem a parte dos filhos incomuns, encontrando-se, desse modo, o quinhão do cônjuge;
d) subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado pelo número de filhos.[v]
O inciso II do art. 1.829, CC/02 refere-se à partilha da herança entre o cônjuge e os ascendentes do de cujus, hipótese esta configurada quando da ausência de descendentes. É importante frisar que, diferentemente do que ocorre na concorrência do cônjuge com os descendentes do falecido, aqui, o regime de bens do casal é irrelevante. A partilha neste caso é regulada pelos artigos 1.836 e 1.837 do CC/02. Prevê o art. 1.836 que na classe dos ascendentes, o grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas, assim como em havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra metade aos da linha materna. De acordo com o art. 1.837, concorrendo o cônjuge com os ascendentes de primeiro grau (pais), à cada um caberá um terço da herança; em havendo apenas um ascendente, independente do grau, ou havendo mais de um, de grau superior ao primeiro, ao cônjuge caberá metade da herança, repartindo-se a outra metade por linhas entre os ascendentes.
3. Da sucessão do companheiro
Em análise histórica, compreende-se que o direito de herança não era atribuído aos companheiros antes da regulamentação legal da união estável. No Código Civil de 1916, a ordem de vocação hereditária fazia menção apenas ao cônjuge sobrevivente, mas que só era chamado a suceder depois haver dos descendentes e dos ascendentes. Na ausência de cônjuge, sucediam os colaterais, restando o companheiro supérstite, portanto, excluído de qualquer referenciação.
Com a Súmula 380 do STF, foi consolidado o entendimento jurisprudencial que atribuía aos até então ditos concubinos somente o direito de partilha dos bens adquiridos com esforço comum, em sociedade de fato norteada pelo Direito das Obrigações. O direito de herança não era garantido ao companheiro, que recebia apenas a participação patrimonial de acordo com sua efetiva contribuição. Para que lhes fosse atribuída a herança, era necessário haver disposição testamentária, vedada a outorga por homem casado à sua companheira, nos termos dos arts. 1.117 e 1.719, III do Código Civil de 1916.
O advento da Constituição de 88 conferiu destaque à figura da união estável, aspecto de grande avanço em favor dos direitos do companheiro, com aproximação aos direitos do cônjuge no plano sucessório. Assim, de acordo com o art. 2º da Lei nº 8.971/94, o companheiro participa da sucessão do falecido em condições similares às do cônjuge, havendo a sucessão usufrutuária, em quota variável a depender da existência de descendentes ou ascendentes do falecido e sucessão da totalidade da herança na ausência daqueles. O art. 7°, parágrafo único da Lei n° 9.278/96, por sua vez, regulamentou o direito real de habitação do companheiro sobrevivente e assegurou que “dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.
Quando da edição do Código Civil de 2002, a matéria foi regulada, entretanto, de modo distinto. Para melhor compreender o funcionamento atual da sucessão do companheiro, passemos à leitura do art. 1.790 do Código Civil:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.[vi]
O dispositivo foi introduzido nas disposições gerais do livro concernente ao Direito das Sucessões, o que já demonstra, logo de início, a anormalidade empregada na elaboração do comando normativo, que deveria pertencer ao capítulo relativo à ordem de vocação hereditária.
Ainda, o caput do comando propaga que somente existirão direitos concernentes aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Assim sendo, são objetos da sucessão os bens contraídos pelo trabalho de um ou de ambos durante a vigência da união estável, excluindo-se bens recebidos a título gratuito, por doação ou sucessão. Os demais bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável, ou durante ela, a título gratuito, não serão objeto de sucessão pelo companheiro. Isso representa um retrocesso se comparado à Lei nº 8.971/94, posto que essa norma finda por frustrar a finalidade de apoio ao companheiro sobrevivente.
Grande celeuma doutrinária formou-se em torno da questão dos bens adquiridos pelo companheiro a título gratuito, como a doação, por exemplo. Se o de cujus apenas possui bens recebidos a esse título, não deixando descendentes, ascendentes ou colaterais, discute-se se tais bens devem ser destinados ao companheiro, em interpretação mais abrangente do dispositivo, ou ao Estado. A doutrina majoritária filia-se ao posicionamento de destino ao companheiro, pela nitidez do art. 1.844 do CC, o qual atesta que os bens somente serão destinados ao Estado se o falecido não deixar cônjuge, companheiro ou outro herdeiro[vii].
A redação dos dois primeiros incisos é turva, posto que o primeiro menciona os filhos, enquanto o segundo faz referência aos descendentes. A respeito do assunto, o Enunciado 266 CJF/STJ a III Jornada de Direito Civil estipulou que “aplica-se o inc. I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns".
Contudo, o dispositivo normativo não prevê uma situação comum nos dias de hoje: a sucessão híbrida[viii], isso é, hipótese em que o companheiro concorre, simultaneamente, com descendentes comuns e exclusivos do de cujus. Três são as vertentes que disciplinam a problemática: a primeira corrente recomenda a aplicação do inciso I do art. 1.1790, tratando todos os descendentes como se fossem comuns, entendimento que prevalece na doutrina brasileira.
Ademais, estipula o inciso III que, se o companheiro concorrer com outros parentes sucessíveis, isto é, ascendentes e colaterais até quarto grau, terá direito a um terço da herança. Há muito, em sede jurisprudencial, diversos julgados reconhecem a inconstitucionalidade de tal previsão legal, por prejudicar o companheiro em função de parentes longínquos, com os quais diversas vezes não há relação afetiva firmada.
O inciso IV, por sua vez, consagra que, não havendo parentes sucessíveis, o companheiro terá direito à totalidade da herança. O comando, entretanto, deve ser lido conjuntamente com o caput do artigo, ou seja, restam excluídos os bens adquiridos antes da união estável e aqueles contraídos a título gratuito.
4. Comparativo entre os institutos
A inclusão do cônjuge como herdeiro necessário é uma das grandes inovações do CC 2002. No regime anterior ao novo Código Civil, o companheiro, assim como o cônjuge, não era considerado herdeiro necessário, segundo entendimento consolidado do STJ, sendo lícito, portanto, ao testador, excluí-lo de sua herança mediante disposição de última vontade, senão vejamos:
CIVIL. TESTAMENTO. Se não houver herdeiros necessários (ascendentes ou descendentes), o companheiro pode, em testamento, dispor livremente de seus bens; a companheira só tem o direito de reclamar a meação, não o direito que resultaria da condição de herdeira.[ix]
Diferentemente do cônjuge, que foi expressamente incluso no rol de herdeiros necessários do art. 1.845, o Código Civil de 2002 deixa uma lacuna legislativa no que se refere à situação do companheiro, que, não foi mencionado do artigo supramencionado e nem no art. 1.850, que dispõe a respeito da possibilidade de exclusão dos colaterais da herança através de testamento.
Ademais, o companheiro encontra-se em posição inferior até mesmo em relação aos colaterais de 4º grau do de cujus, posto que somente recebe a herança integralmente se eles não existirem. Não parece plausível que, numa sociedade que não mais estimula a composição familiar estendida, seja concedida maior proteção a parentes que podem sequer ter conhecido o falecido ou com ele mantido relação afetiva em detrimento do companheiro, que com ele dividiu a integralidade de sua vida.
Não bastasse a gritante diferença existente no art. 1.790 quanto à ordem de vocação hereditária do companheiro, quando comparado ao cônjuge, registra-se outra discrepância no tratamento da sucessão de tais entidades familiares, qual seja, aquela relacionada ao conteúdo da herança. Diferentemente do cônjuge, que tem direitos sucessórios a todos os bens do patrimônio do de cujus (salvo às exceções acima citadas relacionadas ao regime de bens), o companheiro apenas participa da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Ou seja, o companheiro não terá direito à sucessão dos bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável ou aqueles adquiridos a título gratuito.
No que se refere ao direito real de habitação, tem-se que o art. 1.831 do CC/02 apenas faz referência ao cônjuge, deixando margem para dúvidas acerca da aplicação de tal instituto em relação ao companheiro. Registra-se, nesse sentido, que a Lei nº 9.278/1996 regulamentava o direito de habitação do companheiro, afirmando que “dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família” (art. 7º, parágrafo único). Logo, a doutrina majoritária passou a considerar a aplicabilidade do parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/1996.
Diversas outras diferenças no tratamento da sucessão do cônjuge e do companheiro podem ser observadas quando analisadas as regras de partilha da herança. Anota-se que o cônjuge, esteja concorrendo com descendentes comuns ou com descendentes exclusivos do de cujus, tem direito igual quinhão ao dos que sucederem por cabeça, de acordo com o art. 1.832 do CC/02. Já em relação ao companheiro, notamos que caso concorra com descendentes apenas do autor da herança, tocar-lhe-á apenas metade do que couber a cada um daqueles (art. 1.790, II). Nesse sentido, registra-se, ainda, que, diferentemente do cônjuge, ao companheiro não é garantido, o benefício da quota mínima de um quarto da herança se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Por fim, de acordo com o art. 1.790, III, o companheiro tem direito à um terço da herança caso concorra com outros parentes sucessíveis (ascendentes e colaterais). Tal regra também difere do tratamento conferido ao cônjuge, não só pelo fato deste preferir aos parentes colaterais, pois, quando concorre com os ascendentes, pode ter direito à metade da herança, caso haja um único ascendente ou caso sejam de maior grau que o primeiro.
5. Da inconstitucionalidade da distinção dos regimes sucessórios dos cônjuges e companheiros.
Diante de tal contexto, grande era a celeuma doutrinária acerca da definição do regime sucessório dos companheiros. Discussões eram travadas acerca da inclusão do companheiro enquanto herdeiro necessário, havendo autores que o consideravam herdeiro facultativo – podendo ser preterido por força de testamento – e outros que comungavam de opinião contrária, sob o argumento de que:
A união estável, no direito brasileiro, constitui modalidade de família (Constituição Federal, art. 226, § 3º), à qual se estende, pois, aquela “especial proteção do Estado”, prometida no texto constitucional (art. 226, caput). Se, na hipótese de ora se cogita, for permitido a um dos companheiros dispor da totalidade de seu patrimônio, o exercício dessa irrestrita liberdade de testar poderá comprometer, em muitos caso, a sobrevivência do mais próximo de seus familiares – o resultado, manifestadamente indesejável, parece condenar qualquer interpretação em sentido contrário.[x]
Ademais, diversos eram os autores que sustentavam a inconstitucionalidade do art. 1.790 por completo, por este trazer menos direitos sucessórios ao companheiro, se contraposto com os direitos sucessórios do cônjuge. Zeno Veloso é um dos inúmeros juristas a criticar a redação da norma, defendendo que:
as famílias são iguais, dotadas da mesma dignidade e respeito. Não há, em nosso país, família de primeira classe, de segunda ou terceira. Qualquer discriminação, neste campo, é nitidamente inconstitucional. O art. 1.790 do Código Civil desiguala as famílias. É dispositivo passadista, retrógrado, perverso. Deve ser eliminado, o quanto antes. O Código ficaria melhor – e muito melhor – sem essa excrescência[xi].
Visando por um fim a tal discussão, o Supremo Tribunal Federal concluiu, em sede de repercussão geral, que o art. 1.790 do Código Civil é inconstitucional. Nesse sentido, vejamos a ementa do referido julgado:
Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Aplicação do artigo 1.790 do Código Civil à sucessão em união estável homoafetiva. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros.
1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011) 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. 3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002.[xii]
Portanto, atualmente, a união estável deve receber o mesmo tratamento conferido ao casamento, por meio da aplicação ao companheiro das regras da sucessão causa mortis do cônjuge, previstas no art. 1.829 do Código Civil.
6. Conclusão
De um modo geral, a tendência atual presente no Direito de Família é a da flexibilização da estrutura familiar. Desse modo, o casamento não é mais entendido como a entidade familiar por excelência, conjuntura em que ganhou destaque e legitimidade a união estável, principalmente após o advento da Constituição de 1988, a qual, em seu art. 226, § 3º, dispõe que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”[xiii].
O tratamento legal conferido ao companheiro da união estável por ocasião da abertura de sucessão, contudo, destoa diametralmente dessa proposta mais ampla das estruturas familiares, uma vez que, conforme analisado no presente artigo, as regras sucessórias previstas no Código Civil do cônjuge e do companheiro encontram diferenças abissais.
Não obstante tal constatação, o Supremo Tribunal Federal, a partir dos valores afirmados pela Constituição Federal de 1988, em especial o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, conclui pela inconstitucionalidade das diferenças existentes na tutela sucessória do cônjuge e do companheiro, corrigindo-se as diversas distorções existentes no sistema de sucessão do casamento e da união estável no âmbito do direito legislado.
Assim, diante da constatação da inconstitucionalidade do direito codificado, imperioso faz-se que o legislador proceda à reforma do Código Civil a fim de adequá-lo à nova realidade e ao entendimento consagrado pela Corte Suprema.
Referências
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______ Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília – DF, 05 out.1988. Disponível em .
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STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp nº 191.393/SP. Relator: Ministro Waldemar Zveiter. Terceira Turma. DJ: 29/10/2001, p. 201. Jurisprudência do STJ, 2001. Disponivel em:
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STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 646721, Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Ministro Roberto Barroso. Tribunal Pleno. DJ: 08/09/2017. Buscador Dizer o Direito, 2018. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/34186e9eb70e30487210b962e867b742>.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011.
VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
[i] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Sucessões. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 13.
[ii] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 2ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5.
[iii] BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília – DF, 11 jan. 2002. Disponível em . Acesso em: 10 jan.2018.
[iv] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume VI. Direito das Sucessões. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 133.
[v] BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Civil. Volume 4. São Paulo: Método, 2004, p. 208 e 209.
[vi] BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília – DF, 11 jan. 2002. Disponível em . Acesso em: 10 jan.2018.
[vii] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011.
[viii] Expressão criada por Giselda Maria Fernandes Hironaka.
[ix] STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp nº 191.393/SP. Relator: Ministro Waldemar Zveiter. Terceira Turma. DJ: 29/10/2001, p. 201. Jurisprudência do STJ, 2001. Disponivel em: . Acesso em: 10 jan. 2018.
[x] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume VI. Direito das Sucessões. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, pág. 150.
[xi] VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. Coord. Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 6ª Edição, 2008, p. 1955.
[xii] STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 646721, Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Ministro Roberto Barroso. Tribunal Pleno. DJ: 08/09/2017. Buscador Dizer o Direito, 2018. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/34186e9eb70e30487210b962e867b742>. Acesso em: 20 jan.2018.
[xiii] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília – DF, 05 out.1988. Disponível em . Acesso em: 10 jan.2018.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JULIA ESTEVES GUIMARãES, . Regimes sucessórios do cônjuge e do companheiro: divergências e inconstitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51622/regimes-sucessorios-do-conjuge-e-do-companheiro-divergencias-e-inconstitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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