ADEMIR GASQUES SANCHES
(Orientador)[1]
RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir a questão da prisão antes do trânsito em julgado no processo penal em vista do princípio da presunção da inocência.
Palavras-chave: Prisão. Trânsito em julgado. Processo penal.
1 INTRODUÇÃO
Cabe considerar inicialmente, que o princípio da presunção de inocência representa uma garantia processual penal e objetiva à tutela da liberdade do indivíduo de forma a garantir a utilização de outros princípios presentes na Constituição, tal qual o da dignidade da pessoa humana.
O artigo 5º da Constituição Federal dispõe que: “LVII-ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” (BRASIL, 1988, p.23) contemplando, de modo efetivo, o princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico nacional.
De acordo com Milanezi (2016) está posto no ordenamento jurídico brasileiro a preponderância da liberdade em detrimento da prisão. Desse modo, o autor de um crime poderia ficar em reclusão apenas quando for estritamente necessário, em face de risco para a ordem pública ou econômica, bem como para a aplicação da lei penal ou conveniência da instrução criminal. Nessa perspectiva, a permissão para a ocorrência de prisão provisória, significa a violação do princípio da presunção de inocência, tendo em vista que a prisão cautelar de alguém é decorrência de não se considerar mais esse alguém como inocente. De modo específico, materializa-se em compreender que o cidadão é culpado, sem que seja proferida a decisão final do Estado.
O artigo 283 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) determina que nenhum indivíduo poderá ser preso a não ser em razão de flagrante delito, bem como em decorrência de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, em função de se verificar sentença condenatória transitada em julgado, bem como no curso da investigação ou do processo, em vista de prisão temporária ou prisão preventiva. Nessa perspectiva entende-se que o processo penal deverá garantir que o processo ocorra de forma justa e igualitária, tendo o indivíduo direto à ampla defesa, sustentado pelas garantias constitucionais.
De forma fundamental, é importante compreender que a segregação cautelar antes do trânsito em julgado viola o disposto tanto na Constituição Federal como no Código de Processo Penal.
2 Discussão acerca do princípio de presunção de inocência
2.1 Fundamentação da presunção de inocência
No contexto nacional, a questão da presunção de inocência do indivíduo acusado de um crime, no âmbito do processo penal, está disposto nos direitos e garantias de que trata o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, revelando-se como uma garantia a que tem direito o cidadão, sendo que apesar de ser similar, não poderá ser entendido com um direito.
De fato, as garantias poderão ser analisadas sob a ótica da legalidade, atendendo a intenção de defender os direitos em desfavor da ameaça de determinados tipos de violações. Nesse contexto, há que se destacar que a finalidade das garantias está relacionada com a de efetivar os direitos constitucionais, que por sua vez são originários dos princípios assumidos pelo Estado. Note-se que as mencionadas garantias constitucionais confirmam-se com princípios supralegais que devem sempre ser observados na aplicação das leis, pois se orientam pela Constituição Federal.
De modo particular, a maneira como as garantias foram delimitadas na Constituição Federal (BRASIL, 1988) abre espaço para discordâncias doutrinárias que argumentam que o texto constitucional abarca a questão da não-culpabilidade, e não necessariamente a presunção de inocência. Dessa forma, a questão da não-culpabilidade, se configuraria como uma formulação negativa, em vista de o cidadão se considerado não-culpado e não inocente, até que finde a instrução processual.
Illuminati (2008) discute a inadmissibilidade da redução do princípio da presunção de inocência a um enunciado retórico em que o acusado passa da condição de inocente a ser não culpado, colocando em risco uma noção fácil de ser compreendida e amplamente reconhecida como correta. Ou seja, realizar a diferenciação entre a presunção de inocência e presunção de não culpabilidade se revela danoso, em vista de se abandonar uma definição detalhada em favor de uma solução arbitrária. Além disso, cabe mencionar o fato de o Brasil ser signatário da Convenção de San José da Costa Rica, cujo texto determina a garantia de presunção de inocência de forma pontual, sendo que a Constituição Federal (BRASIL, 1988), estabelece que o tratado internacional que versa a respeito de direitos humanos apresenta força normativa infraconstitucional e supralegal.
Dessa forma, entende-se que princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro materializa-se como uma garantia fundamental, a qual irradia seus valores em todas as esferas e que, portanto, deve ser sempre aplicado. Moraes (2008) menciona que a garantia do estado de inocência engloba uma norma de tratamento, relacionada à figura do imputado, à uma norma de juízo e uma norma probatória.
No que concerne à norma probatória, esta se relaciona ao campo particular da norma constitucional, direcionado à questões referentes ao tipo de prova, de quem e por meio de quem deve provar, aquilo que demanda ser provado.
No que tange à norma de juízo, a mesma se pauta na averiguação do material probatório que já se produziu, de modo a identificar a sua consistência, para afastar a presunção de inocência, a fim de condenar o imputado.
De modo específico, a garantia do estado de inocência, entendida como uma norma probatória, estabelece o ônus probatório no âmbito do processo penal, de modo a direcionar-se para a acusação. Ou seja, o ônus de provar[2] os elementos do crime e a possibilidade de aplicação da pena no que tange ao caso concreto estabelecem-se sobre a acusação. Dessa forma, o acusador apenas poderá utilizar provas lícitas, que obedeçam os padrões estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Nesse contexto, não se pode aderir à compreensão de que no processo penal, cabe à acusação comprovar a existência de um fato penalmente ilícito, além de sua efetivação pelo denunciado e a culpa. À defesa urgirá explicitar a inexistência de dolo, causas extintivas da punibilidade, causas excludentes de antijuridicidade e eventuais excluidoras de culpabilidade.
Moraes (2008) menciona que com o intuito de examinar o direito constitucional de presunção de inocência como norma de juízo, insta compreender como certo que o órgão de acusação cumpriu seu ônus probatório, sendo que a prova a que se atem é lícita e incriminadora. As duas formas de se compreender a materialização do estado de inocência como norma probatória e como norma de juízo são mais efetivas na estruturação do processo penal em consonância com a Constituição Federal.
2.2 A presunção de inocência e o processo penal brasileiro
A Declaração Universal dos Direitos Humanos preconiza diante da perspectiva dos direitos humanos, a presunção de inocência, ao ser inserida na Constituição Federal de 1988, configura-se em uma referência a ser seguida na aplicação das normas de processo penal. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948)
Nessa perspectiva, configura-se uma nítida relação entre a humanista presunção de inocência e o inquisidor processo penal. Tal relacionamento começou bastante controversa Entretanto, uma vez que a força dos ideais inquisitoriais do processo penal até então vigente era algo difícil de ser ultrapassada. Entretanto, existe a compreensão cotidiana de que com o tempo, a compatibilidade da leitura constitucional sobre o processo penal e seus comandos, traria ambiente mais acolhedor aos direitos fundamentais relacionados à persecução penal, assim como aos acusados condicionados à mesma, não se mostra verdadeira.
De acordo com Stein (2015) a questão da contaminação dos princípios fundamentais em relação ao processo penal não tem ocorrido, mas ao contrário, tem se verificado uma influência inquisitória no processo penal por parte da doutrina e legisladores.
Cabe reiterar que não existe referência à palavra inocente na estruturação do princípio e tampouco se utiliza as expressões qualificadoras apresentadas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948), de cujo texto originou a introdução da garantia de presunção de inocência na legislação pátria.
Existe uma compreensão do sensu comum defende a ideia de quanto mais o Estado possuir e utilizar poder de punir, mais consistente e célere será a punição, ocasionando diminuição da criminalidade.
Diante desse contexto, reforça-se a lógica de funcionamento do sistema inquisitório, quais sejam a presunção de culpabilidade e o direito penal do inimigo. Stein (2015) destaca que em função de tais questões, a relação entre a garantia da presunção de inocência e o processo penal transparece instabilidade, seguindo perspectivas distintas, estruturando uma situação propícia para a configuração de uma situação de instabilidade política e social.
O princípio da presunção de inocência acabou por se tornar, como bem o vem adjetivando a doutrina processual penal contemporânea, um mito, um ilustre desconhecido, onde a sociedade o conhece, por ouvir falar, mas não o percebe como algo real e concreto, é ciente de sua presença em processos penais, garantindo ao acusado o “status de inocente” até sentença final irrecorrível, mas, ignora os possíveis resultados processuais e sociais da sua inobservância. (STEIN, 2015, p. 53).
De acordo com a autora, a questão do princípio da presunção de inocência é pouco valorizado, não só pelos integrantes do processo, que precisariam entendê-lo como questão central para a vida humana desde os primeiros momentos da persecução penal, bem como na forma extraprocessual, em que os indivíduos pautam seus comportamentos em uma lógica fundada no ódio e na intolerância para com aqueles que respondem como réus o processo penal.
É importante discutir que a doutrina processual penal contemporânea, ao centrar-se na questão da interconexão entre a garantia e o processo, estrutura, fundamenta e produz estabilidade no processo criminal, constituindo-se em princípio de efetivação do processo penal, podendo-se avaliar a qualidade processual por meio do nível de eficácia da garantia.
Há que se considerar que quando o processo penal assume a sua instrumentalidade constitucional acaba por representar um direcionamento para se chegar à pena. Ou seja, uma indicação de como deve ser o poder de punir do Estado por meio da percepção das regras do processo penal.
Segundo Stein (2015) o processo penal contemporâneo demanda a mediação da perspectiva constitucional, tendo em vista que representa um instrumento de efetivação das garantias constitucionais. Assim, torna-se necessário que se criem mecanismos capazes de materializar no plano concreto o princípio da presunção de inocência, a fim que seja retirado do plano teórico e se materialize no campo prático, a fim de evitar qualquer forma de insegurança jurídica ou instabilidade social.
O processo penal nunca participou tanto do dia-a-dia da sociedade, e esta, por seu turno, nunca se interessou tanto por ele. As facilidades de propagação das notícias, através das mais diversas mídias, fizeram com que a população passasse a discutir o processo criminal, como se folhetim fosse, deixando emergir seus anseios mais primitivos por vingança e julgamentos públicos. (STEINS, 2015, p. 54).
O direcionamento fundamental para a persecução penal não pode abandonar o conhecimento de que o homem nasce livre, ocorrendo apenas um afastamento situacional do estado de inocência, em situações em que para o acusado, em face do processo penal, recai condenação definitiva.
Nesse contexto, a questão da inocência deve ser afastada, aos poucos, por intermédio de sentença penal irrecorrível. De forma efetiva, a condenação não poderá utilizar-se de momentos específicos da vida do acusado, que não tenham relação direta com os fatos dos quais é acusado ou que se verifique na prática. Pois a questão posta refere-se ao processo penal e não a um processo de formação de juízo de valor.
De modo fundamental no momento em que é iniciada a persecução penal sem que se considere a inocência como ponto de partida, verifica-se o risco de que o indivíduo que investiga, e quem depois acusa e procure produzir provas que amparem o seu prévio juízo, ignorando toda e qualquer outra percepção dos fatos, que afaste a presunção de culpa já estabelecida.
Deve-se compreender que a intersecção do Estado, detentor do poder de punir, e as garantias conferidas aos réus no processo penal, que são limitadoras do poder estatal é oferecem a real dimensão de quão instável pode ser tornar o bem estar social em havendo desequilíbrio de ambos os lados. Em primeira instância, em sua função por parte do Estado, em reiteradamente não fazer valer o peso das garantias que em teoria oferece aos réus; e como resultado desta ação negativa do ente político, através de seus órgãos, dos réus, e das pessoas em geral, em demonstrarem desprezo e descrença no sistema processual penal.
A questão do princípio do justo processo ou do devido processo legal, tem um conteúdo a um tempo penal e processual penal, pressupondo a prática de uma conduta penal punível (crime ou contravenção) apurada, processada e julgada na forma da lei. Sem crime, não há processo; sem processo, não há pena. Crime-processo-pena formam, pois, uma trindade-unidade. (QUEIROZ, 2018)
3 CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 estabelece uma estrutura democrática para a perspectiva legal no país. Há que se considerar a demanda, no texto constitucional, pelo respeito às garantias constitucionais, assim como ao modelo constitucional de processo penal, apesar de a prática judiciária ainda utilizar-se de parâmetros opostos aos preceitos constitucionais.
A Constituição estabelece que no que tange à condição do acusado, o estado de inocência, deve ser analisado e utilizado em sua totalidade, na condição de norma de tratamento, norma probatória e norma de juízo.
Tal delimitação, demanda que certo afastamento dos dispositivos legais inerentes ao Código de Processo Penal, em vista dos mesmos se mostrarem incoerentes com a referida garantia, assim como o compromisso dos sujeitos processuais em adotar uma postura concernente aos preceitos constitucionais e não uma compreensão inquisitorial do processo.
No que tange à atividade de decisão do Estado, entende-se que reconhecer que o regramento estabelecido no artigo 386 do Código de Processo Penal não se materializa no modelo mais adequado sob a ótica constitucional, pois em lugar de assegurar a obediência à garantia do estado de inocência, incute possibilidades para a ofensa à referida garantia.
De modo efetivo, caso o ônus da prova, no âmbito do processo penal, venha a recair apenas sobre o acusador, sendo que o juízo venha simplesmente medir ou não a satisfação do ônus quando da decisão, não sobra espaço normativo para se estabelecer regra limitadora da possibilidade de improcedência do pedido. De fato, o texto legislativo entende o acusado deverá ser absolvido pelo juiz.
Quando estabelece no artigo em questão que o juiz deverá absolver o acusado em casos específicos, o julgador se direciona mais para o acusado e para a possibilidade de a defesa afastar as teses de acusação do que no fato que é objeto de julgamento. Ou seja, direciona-se muito mais para os argumentos em função dos quais a acusação demanda a obtenção de uma decisão de veracidade do pedido.
Nessa perspectiva emerge a demanda fundamental por reestruturação do título XII do livro I do Código de Processo Penal e de modo fundamental, do artigo 386, a fim de tornar mais clara a compreensão da norma de juízo para garantia do estado de inocência.
Para que tal objetivo seja cumprido é necessário que ocorra a estruturação de um novo conjunto de normas capaz de esclarecer os pontos estabelecidos acima, de forma que o juiz apenas poderá julgar procedente o pedido condenatório formulado pelo órgão de acusação quando forem comprovados os distintos fundamentos que orientam o mesmo. Ou seja, no momento em que estiverem explicitados de forma clara a autoria, materialidade, tipicidade, ilicitude, culpabilidade, bem como a punibilidade do acusado.
Há que se destaca que os diferentes pontos considerados no crime, assim como os pré-requisitos, para efeito de atribuição da pena, estabelecidos no Código Penal.
Cabe mencionar que não pode haver contentamento em se aplicar o estabelecido no artigo 386, em vista de sua dissonância com a demanda por garantia do estado de inocência. A força normativa da Constituição Federal (BRASIL, 1988) traz a possibilidade de seu emprego nos casos concretos, mesmo diante da inexistência de lei específica para tratar da temática ou quando a mesma está em discordância com o texto superior.
No que tange às garantias expressas na Constituição Federal, bem como no modelo constitucional de processo penal, e de modo elementar, a garantia do estado de inocência, é fundamental que a decisão condenatória gerada seja proferida quando validados todos os argumentos, apresentados pela acusação como fundamento do pedido condenatório.
Entende-se que o princípio da presunção de inocência representa um dos pressupostos fundamentais do Estado de Direito, sendo que na condição de garantia processual penal, considera a questão da tutela da liberdade pessoal, destacando a demanda para que o Estado venha a comprovar a culpabilidade do indivíduo, que de acordo com a Constituição Federal é presumidamente inocente, a fim de que não se incorra no erro de estabelecer uma lógica arbitral de funcionamento por parte do Estado.
Mencione-se que se materializa em um princípio expresso de forma implícita no ordenamento jurídico pátrio. Cabe explicitar que a Constituição não cumpre o papel de declarar a inocência do acusado. Mas, compete à mesma deixar claro o fato de ele não ser necessariamente o possuidor da culpa em vista da prática do ato a que lhe é atribuída imputação.
Dessa forma, o princípio constitucional da presunção de inocência representa um dos mais importantes assuntos do aporte teórico da Constituição Federal de 1988. O indivíduo acusado de cometer uma infração penal poderá receber proteção contra uma possível sanção penal antecipada. Não correrá o risco de receber pena por prática de um delito sem que ocorra um julgamento justo, em vista da demanda pelo devido processo legal e fundamentado no contraditório e na ampla defesa.
Cumpre apenas reiterar, que os princípios constitucionais são instrumentos limitadores do poder estatal, para garantia da proteção da dignidade da pessoa humana, sendo que o instituto da inocência presumida é garantia fundamental e instituto essencial ao exercício da jurisdição.
4 REFERÊNCIAS
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[1] Docente do Curso de Direito-Universidade Brasil, [email protected].
[2] Autoria, materialidade, tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
Graduanda em Direito-Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NATALIA MARIA MENDONçA, . Prisão antes do trânsito em julgado no processo penal em vista do princípio da presunção da inocência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51725/prisao-antes-do-transito-em-julgado-no-processo-penal-em-vista-do-principio-da-presuncao-da-inocencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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