RESUMO:O presente trabalho tem por intento a análise geral do instituto da delação premiada no contexto do Estado Democrático de Direito, mais especificamente no que diz respeito à compatibilidade ou incompatibilidade daquele instrumento de persecução penal com dogmas inerentes ao Estado configurado sob a ordem constitucional vigente. Após discussão sobre os conceitos de colaboração premiada e delação premiada, foi feito um estudo a partir do cotejo dos fundamentos desta com aspectos do devido processo legal, mais especificamente do processo penal; com a legitimidade ética de sua aplicação; com os princípios da culpabilidade e da segurança jurídica para aqueles que são indevidamente implicados em delações; assim como com a questão da suposta impunidade daqueles que recebem os benefícios previstos em lei como contrapartida pelas informações prestadas em delação.
Palavras-chave: delação premiada; Estado Democrático de Direito; persecução penal.
1. INTRODUÇÃO
É anseio de toda a sociedade ver cumpridas e efetivadas suas leis – mormente as normas penais –, no que se tem uma afirmação de seus valores e poder político firmados no ordenamento jurídico. O Estado, como detentor legítimo do jus puniendi, ao mesmo tempo em que é titular do direito de infligir sanções é também responsável por saciar a necessidade de justiça ínsita em sua comunidade.
A esses propósitos, dentre outros, servem o direito penal e o direito processual penal, este viabilizando a aplicação daquele, e num contexto em que se busca aliar um direito penal garantista à luz do arcabouço constitucional com uma aplicação eficaz, eficiente e efetiva em prol da solução de conflitos na seara penal, surgem diversos métodos destinados ao aprimoramento da persecução penal, dentre eles o instituto da colaboração premiada, acerca do qual muito se debate em sua vertente delação premiada.
Embora tenha estado em destaque recentemente, notadamente pelas grandes operações policiais que têm dominado os noticiários[1], a chamada delação premiada, espécie do gênero colaboração premiada, como será visto adiante, há tempos foi albergada pelo direito brasileiro. Atualmente, está detalhadamente prevista na Lei nº 12.850 de 2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova – dentre os quais a delação premiada –, as infrações penais correlatas e o procedimento criminal.
Justifica-se o exame desta temática, primeiro, devido à relevância de se debater a constitucionalidade e a legitimidade dos meios e técnicas dos quais se valem as autoridades responsáveis pela persecução criminal, passando pelo inquérito policial e pelo processo propriamente dito, seja como meio seja como fonte de aquisição de prova, já que, apesar da necessidade e do clamor pela justiça e o repúdio à impunidade, não se podem olvidar as garantias e direitos fundamentais do indiciado ou acusado. Segundo, não se pode ignorar a repercussão em todo o país que tem sido causada pelas investigações e processos referentes a diversos crimes “de colarinho branco”, quase sempre relacionados a violações ao patrimônio público e à moralidade administrativa, bem como à essência democrática e republicana, pois foi nesse cenário que a utilização da delação premiada chegou ao seu auge, e nada mais natural que se tornem acendradas as discussões sobre seu uso, efeitos e eficácia.
Nesse diapasão, a questão fundamental que se busca problematizar, nesta oportunidade, é acerca da compatibilidade da delação premiada com aspectos do Estado Democrático de Direito. Como objetivos deste trabalho, buscar-se-á examinar a técnica da colaboração premiada, mais especificamente da delação, com os fins de explorar o conceito de colaboração e delação premiada e de discutir as implicações de sua aplicação no Estado de Direito que se propõe a ser democrático, observador da dignidade humana, da justiça e da cidadania e, mais do que prever, se propõe igualmente a efetivar direitos fundamentais.
2. DELAÇÃO OU COLABORAÇÃO PREMIADA?
Numa visão histórica da delação premiada, há registros do manejo de técnicas similares, quiçá idênticas, já nas Ordenações Filipinas, em pelo menos dois dispositivos[2]. O primeiro, disposto no Título VI (“Do Crime de Lesa Magestade”), item 12, trata do perdão que deve ser atribuído ao participante e delator do crime de lesa majestade, desde que ele não tenha sido o principal organizador da empreitada criminosa. O segundo dispositivo cuidou da delação premiada no Livro V das Ordenações Filipinas, Título CXVI (“Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão”), cuja redação trata do perdão das penas do delator que relatar a participação de outrem com quem se associou na empreitada para crimes especificados na norma. Vale ressaltar que não deixaram de ser frequentes os exemplos, na legislação brasileira, de instrumentos em que o réu ou investigado que colaborar em alguma medida com os órgãos responsáveis pela persecução penal receberá prêmios legais correspondentes[3].
É notável a confusão feita quando do empego das expressões “delação premiada” e “colaboração premiada”, por vezes empregando-se a primeira de forma indiscriminada e, portanto, atécnica. Conforme a técnica da Lei 12.850/13, na dicção do seu artigo 3º, I, o instituto previsto é a colaboração premiada, gênero do qual a delação é espécie.
A colaboração é um procedimento que se desdobra em cinco modalidades, de maneira que o investigado ou acusado – e até mesmo o condenado – pela prática de infração penal decide confessar a prática do delito e, além disso, aceita colaborar com a investigação ou com o processo fornecendo informações que irão ajudar, de forma efetiva, a) na obtenção de provas contra os demais autores dos delitos; b) na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; c) na prevenção de novos crimes; e d) na recuperação do produto ou proveito dos crimes ou e) na localização da vítima com integridade física preservada. É no artigo 4º da referida lei que se encontra esse detalhamento dos tipos de colaboração, e, no seu inciso I, há a previsão específica da delação premiada como espécie de colaboração na qual a cooperação do delator permite “a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas”.
O delator, em contrapartida, recebe determinados benefícios penais, quais sejam (art. 4º, caput, §4º e §5º): a) não oferecimento da denúncia, desde que a colaboração seja efetiva e voluntária, o delator não seja o líder da organização criminosa e tenha sido o primeiro a prestar efetiva cooperação; b) perdão judicial, mediante representação ao juiz pelo Ministério Público ou pelo Delegado de Polícia, se a colaboração prestada for muito relevante; c) redução da pena, sendo que, se a delação ocorrer antes da sentença, a pena poderá ser reduzida em até 2/3; se ocorrer após a sentença, a pena poderá ser reduzida em até metade; d) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, mesmo que não estejam presentes os requisitos do art. 44 do CP; e e) progressão de regime, ainda que não tenha atingido o requisito objetivo.
Convém, ainda, atentar para a natureza jurídica da colaboração premiada como instituo geral e, consequentemente da delação premiada, sua espécie, se seria fonte de prova, meio de prova ou meio de obtenção de prova. Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 950-952) ensina que a expressão fonte de prova é utilizada para designar as pessoas ou coisas das quais se consegue a prova; deriva do fato delituoso em si, independentemente da existência do processo, ou seja, são anteriores ao processo, sendo que sua introdução no processo se dá através dos meios de prova. Esses, por sua vez, são os instrumentos através dos quais as fontes de prova são introduzidas no processo, dizendo respeito, portanto, a uma atividade endoprocessual que se desenvolve perante o juiz, com o conhecimento e a participação das partes. Finalmente, os meios de obtenção de prova, ou meios de investigação de prova, referem-se a certos procedimentos, em regra extraprocessuais, regulados por lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que normalmente são realizados por outras autoridades que não o juiz, tais quais os policiais; são técnicas de investigação.
Nesse sentido, a colaboração premiada – e, por consequência, a delação premiada – funciona como importante técnica especial de investigação, um meio de obtenção de prova. Por força dela, o investigado, o acusado, ou o condenado presta auxílio aos órgãos oficiais de persecução penal na obtenção de fontes materiais de prova. Como exemplo, se o acusado resolve colaborar com as investigações em um crime de lavagem de capitais, contribuindo para a localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime, e se essas informações efetivamente levam à apreensão ou sequestro de tais bens, a colaboração terá funcionado como meio de obtenção de prova, e a apreensão como meio de prova apto a introduzir no processo as fontes de prova obtidas.
3. DO PROCEDIMENTO ATÉ A ASSINATURA DO ACORDO DE DELAÇÃO
O investigado, o acusado, ou o condenado, assistido por advogado, negocia o acordo de delação premiada com o Delegado de Polícia ou com o Ministério Público, não podendo o juiz participar, em hipótese alguma, das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de delação, consoante o parágrafo 6º do art. 4º da Lei 12.850/13, já que, se o magistrado interagisse nas negociações, haveria uma grave violação do sistema acusatório e um seríssimo risco de contaminação da sua imparcialidade.
É de se ressaltar que o acordo pode ser firmado na fase de investigação e na fase processual, inclusive após trânsito em julgado de sentença condenatória. Além disso, conquanto a literalidade do dispositivo supramencionado conceda ao Delegado de Polícia o poder de negociar e assinar acordo de colaboração premiada com o colaborador, uma interpretação sistemática desse dispositivo leva à conclusão de que, sendo a autoridade policial desprovida de capacidade postulatória e legitimação ativa, não se poderia admitir que um acordo por ela celebrado com o acusado venha a restringir o regular exercício da ação penal pública pelo Ministério Público.
Caso as negociações tenham êxito, as declarações do colaborador serão registradas (em meio escrito ou audiovisual) e será elaborado um termo de acordo de delação premiada, a ser assinado por todas as partes e, então, remetido ao juiz para homologação.
4. DA (IN) COMPATIBILIDADE ENTRE A DELAÇÃO PREMIADA E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Doravante, passa-se ao exame dos pontos controvertidos em torno da delação premiada. Serão abordados o conflito ético; a harmonização da delação com o direito ao silêncio, com os princípios da culpabilidade e da obrigatoriedade da ação penal; as supostas coerção e impunidade; e, finalmente, o problema dos inocentes implicados em delação premiada.
4.1 DO CONFLITO ÉTICO
Uma das mais corriqueiras oposições levantadas contra a delação premiada diz respeito ao suposto conflito ético que seu manejo pelo Estado implicaria. Estando a ética, de uma forma geral, na base dos preceitos normativos ao determinar implícita ou explicitamente o que não se deve fazer para que outrem não venha a sofrer danos, sendo, portanto, um ponto de convergência entre as normas e a liberdade do próximo, o Estado, ao abonar a delação, estaria indo de encontro aos padrões éticos que regem uma sociedade democrática e cidadã, uma vez que se institucionalizaria a traição.
Para Heráclito Antônio Mossin (2016, p. 29), “o que se conclui é que o Estado se aliou ao delinquente para ambos lutarem em oposição à criminalidade”, já que, procurando superar a debilidade dos órgãos de combate à criminalidade, a própria incompetência do Estado em reprimir as práticas delitivas, buscou-se uma alternativa, para alguns, de legitimidade questionável, uma vez que obriga o aplicador do direito a conferir recompensa ao criminoso que denuncia seu comparsa, quer diminuindo sua pena na eventualidade de ser condenado, quer, de maneira extrema, conferindo-lhe o perdão judicial. Para o autor, é a prostituição da delinquência em que o Estado incentiva o antiético, o que, em hipótese alguma, poderia ser contemplada com premiação.
Não obstante a pertinência desses questionamentos, é preciso reconhecer o fracasso do Estado no combate à criminalidade, especialmente a organizada, em todos os aspectos, e, de modo ainda mais claro, na investigação e no processo penal, os quais compõem o caminho para que alguém seja devidamente julgado e, eventualmente submetido à reprimenda cominada em lei. Todavia, o fato de serem escancaradas essas falhas quando se recorre à utilização da delação premiada não deve obstar a que esse mesmo Estado se beneficie daquele meio de obtenção de provas, o que pode, inclusive, suprir muitas das defasagens da persecução penal, defasagens essas que poderiam servir para reforçar a necessidade do uso da delação premiada.
Quanto ao suposto conflito ético, inadmitir a delação com base no argumento de que o Estado estaria fomentando comportamento antiético por parte daqueles que colaboram é se permitir um nível de devaneio utópico que não se coaduna com as necessidades práticas de combate à criminalidade organizada.
Não é mais legítimo o Estado cingir-se do manto do falso moralismo, em nome de um pretenso comportamento ético quando for lidar com criminosos pertencentes a organizações milimetricamente estruturadas, do que buscar maior sucesso no deslinde do processo e das investigações por meio de um acordo previsto em lei, o qual não busca vulnerar os direitos e garantias fundamentais dos colaboradores – e nem poderia –, mas sim, em vista das limitações estatais que a experiência atesta, objetiva a concretização do direito penal por meio de sacrifícios/concessão de benefícios na medida do possível.
4.1.1 DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Há quem entenda haver incompatibilidade entre garantias do devido processo legal e a delação premiada, tendo em vista que alguns dos fundamentos do processo penal estariam sendo desconsiderados.
Considerando que é pressuposto para firmação de acordo de delação premiada que o sujeito confesse sua participação no delito, fala-se em vulneração do direito a não autoincriminação, ou direito ao silêncio.
Com a atribuição de benefícios penais ao delator, a sanção penal a ele cominada será necessariamente abrandada, e, para alguns críticos, torna-se irrisória, devido a concessões demasiado generosas de vantagens penais aos delatores, o que culminaria na quebra do nexo de proporcionalidade entre o delito cometido e a pena aplicada, repassando para a sociedade uma sensação de impunidade; tudo isso numa clara violação ao princípio da culpabilidade ou proporcionalidade da pena à gravidade do delito.
Sem nenhuma censura, em determinadas situações na “Lava-Jato”, o sentimento que se tem é que determinadas vantagens conferidas a delatores geram a sensação de impunidade, dando a entender que o mais importante, o mais relevante, é o conseguimento de todos os nomes que se encontram na linha de propina, bem como na possível recuperação dos valores desviados daquela estatal [Petrobras], que, quando muito, deveriam unicamente servir para efeito de quantificação da sanctio legis, pouco importando sobre o nível de punição que merece o ‘dedo duro’. (MOSSIN, 2016, p. 242)
Além disso, argui-se a possibilidade de a delação premiada ser usada como ferramenta de coerção do investigado/acusado, uma vez que ele estaria sob constante pressão para cooperar com o deslinde da persecução penal, sob pena de um “recrudescimento da pena”, por exemplo, ou movido pela “visão de liberdade iminente” em decorrência da delação, de modo especial quando o delator em potencial se encontra em prisão provisória[4].
Argumenta-se, também, que o papel constitucional do acusador – o Ministério Público – estaria sendo desvirtuado, já que é possível até mesmo o não oferecimento da denúncia, o que estaria em desacordo com o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Desse modo, seria de constitucionalidade duvidável o § 4o do art. 4º da Lei 12.850/13, que prevê a possibilidade do não oferecimento da denúncia.
Pois bem. De fato, nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito de silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade (§ 14 do art. 4º da Lei 12.850/13). Contudo, essa é uma decisão livre e consciente do réu/investigado, uma vez que ele não é obrigado a colaborar e, consequentemente, a abrir mão do seu direito ao silêncio, direito esse que não é indisponível dentro do processo penal pátrio, já que em outras situações o réu também pode decidir dele dispor, como na confissão, por exemplo. Quanto à suposta violação do princípio da proporcionalidade da pena à gravidade do delito, segundo Frederico Valdez Pereira (2003, p. 330), o aspecto limitador daquele se destina, fundamentalmente, a impedir a aplicação da pena para além da responsabilidade pessoal do acusado, de maneira que mesmo as exigências da função preventiva da sanção, que poderiam ensejar utilização da pena com alto rigor excessivo, estarão sempre limitadas à concreta culpabilidade manifestada no fato praticado pelo agente.
Assim, não se pode falar em ofensa àquele princípio, já que a culpabilidade visa a evitar a exacerbação e não o abrandamento da pena, e os benefícios legais da delação premiada são condições para o alcance de maiores proveitos para a persecução penal, os quais dificilmente seriam galgados sem a sua utilização, cenário em que a impunidade, de fato, teria mais probabilidade de imperar. Quanto à concessão demasiado generosa de benefícios ao colaborador, conquanto, infelizmente, se verifique na realidade, resta-nos buscar guarida no bom senso do magistrado responsável pela homologação do acordo de delação premiada, oportunidade em que pode ser exercido o controle sobre eventuais desproporcionalidades ou excessos do Ministério Público, tudo para que não reste indevidamente maculado um instrumento de considerável relevância para a atividade persecutória do Estado.
De igual modo, o mau uso da delação premiada, como forma de coerção do acusado/investigado, em especial quando este se encontra em prisão provisória, no intuito de obter delação a todo custo, tornando-a um fim em si mesma, chegando-se ao ponto de todos ou quase todos os investigados/acusados em uma mesma ocasião firmarem acordo, sem que disso possa restar, obviamente, maiores vantagens para o Estado, deve ser uma utilização combatida veementemente, nos moldes e pelos motivos anteriormente expostos. De se observar que essa forma de desvirtuamento da delação não deve bastar para que ela seja incompatibilizada com o Estado Democrático de Direito.
No que se refere ao argumento da ofensa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, trata-se de um caso muito específico em que o Ministério Público pode deixar de oferecer denúncia, considerando que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e tenha sido o primeiro a prestar efetiva colaboração. Leva-se em conta o proveito angariado pelo Estado, que deve ser máximo e inatingível de outro modo, assim como o incentivo para a prestação de uma delação com a maior efetividade possível; além de tudo, inexiste prejuízo à coletividade pela ausência da denúncia. É um juízo de razoabilidade e proporcionalidade realizado pelo legislador, que, em uma interpretação teleológica e sistemática, não ofende à Constituição.
4.1.1.1 OS INOCENTES
Outra controvérsia levantada é a questão dos inocentes. Alerta-se para o fato de que a expectativa de ganho de benefício com impacto atenuador relevante na sanção penal, assim como a possibilidade de ocorrência do inverso, caso não seja firmado acordo de delação, ou firmado, seja inócuo, podem ser motivadores que levem o delator a professar declarações falsas, cujo teor implique pessoas inocentes, alheias à investigação ou ao processo, causando, assim, transtornos não só ao terceiro prejudicado, como à administração da justiça, em um claro impacto negativo na segurança jurídica, uma vez que tudo isso desaguaria, inexoravelmente, no surgimento de graves erros judiciários. No exemplo da Operação Lava-Jato é observado que
As recompensas distribuídas nos processos da “Lava-Jato” têm sido muito generosas, podendo, indubitavelmente, servir de instrumento, de motivo, de incentivo para que o delator implique criminalmente pessoa inocente, ou que não tenha uma responsabilidade criminal no importe posto na delação ou que venha atender o interesse particular de quem a provoca. O que pode bastar para o cooperador é unicamente o prêmio que será por ele recebido, o que por sinal, é o primeiro móvel, o primeiro tom de provocação a ele dirigido, para que ele delate outras pessoas, muitas vezes que não tenham nenhum liame, nenhuma ligação com o empreendimento delituoso. (MOSSIN, 2016, pág. 239)
Conquanto a reverberação negativa da delação premiada na vida dos inocentes implicados, seja uma crítica mais do que relevante, deve-se enfatizar que não basta a simples declaração do delator para que um terceiro seja afetado, já que a Lei 12.850/13 fala em colaboração efetiva, ou seja, as informações prestadas devem levar os órgãos estatais a alcançar os resultados elencados em seu art. 4º. Além disso, o art. 19 da lei supramencionada, criminaliza a falsa imputação, sob pretexto de colaboração com a Justiça, da prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas, com pena de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.
Desse modo, ao ensejar a responsabilização criminal do delator, há um desencorajamento daquele tipo de atitude, e uma preocupação do legislador com os inocentes que sejam vítimas de delações inverídicas. Dispõe, ainda, o parágrafo 16 do art. 4º da Lei 12.850/13 que nenhuma condenação será proferida com base, exclusivamente, nas palavras do delator. Assim, a prolação de uma sentença condenatória jamais deixará de se respaldar em provas, restando ineficaz, para efeito de condenação, as informações prestadas pelo delator que não estejam em consonância com as demais provas dos autos.
Não deixa de ser uma questão que merece análise mais detida, eis que ao firmar o acordo de delação, de certa forma o delator tem a possibilidade de direcionar o curso das investigações e até do processo, podendo, além de causar transtornos a terceiros alheios aos crimes investigados, acarretar dispêndio desnecessário de recursos e falhas ainda maiores no combate ao crime organizado. Entretanto, é um risco a que está sujeito o Estado, ao visar à otimização da persecução penal por meio da delação de corréus e investigados. Nesse sentido
(...) parece-nos que a delação premiada é um mal necessário, pois o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito. Não é preciso ressaltar que o crime organizado tem ampla penetração nas entranhas estatais e possui condições de desestabilizar qualquer democracia, sem que se possa combatê-lo, com eficiência, desprezando-se a colaboração daqueles que conhecem o esquema e dispõem-se a denunciar coautores e partícipes. No universo de seres humanos de bem, sem dúvida, a traição é desventurada, mas não cremos que se possa dizer o mesmo ao transferirmos nossa análise para o âmbito do crime, por si só, desregrado, avesso à legalidade, contrário ao monopólio estatal de resolução de conflitos, regido por leis esdrúxulas e extremamente severas, totalmente distante dos valores regentes dos direitos humanos fundamentais. (Nucci, 2008, p. 418)
5. CONCLUSÃO
Após a discussão do tema, limitada pelos fins a que se propõe este trabalho, conclui-se que a delação premiada, nos termos da Lei 12.850/13, é uma espécie de colaboração com a justiça em troca de determinados benefícios legais. Consiste num meio de obtenção de provas, e formaliza-se por meio de acordo, sujeito à posterior homologação judicial, firmado na fase de investigação ou na fase processual, ou, ainda, na fase de execução penal, sendo imperativo que o investigado/réu, de forma voluntária e efetiva, preste informações que permitam às autoridades, especificamente, a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas.
Quanto às controvérsias que circundam o instituto da delação premiada, há vozes no sentido de que, ao admitir a delação premiada, o Estado Democrático de Direito estaria declarando sua incompetência em matéria de persecução penal e combate ao crime, ao mesmo tempo em que criaria uma contradição ética inaceitável, ao se aliar ao criminoso, premiando-o em troca de sua traição para com seus comparsas. Ocorre que, a falência das instituições estatais no desempenho de suas atribuições não é empecilho ao emprego da delação premiada, mas sim uma razão a mais para que esse instrumento seja aproveitado na persecução penal; de igual modo, não é de proveito algum que o Estado se reserve a um pretenso moralismo em face de um acordo legal com benefícios para ambas as partes, sem o qual o combate ao crime organizado perderia ainda mais chance de êxito.
Sustenta-se, também, a violação do princípio da não autoincriminação, do princípio da proporcionalidade da pena à gravidade do delito e do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Entretanto, não há violação àquelas normas, vez que a) não há obrigatoriedade de pactuação de acordo de delação premiada, de maneira que é o investigado/réu quem decide se, consequentemente, abrirá mão de seu direito ao silêncio ou não; b) não se verifica desproporcionalidade entre a pena e a gravidade do delito, já que o objetivo do princípio é coibir os excessos do poder punitivo estatal, e não impedir o abrandamento das sanções, além do fato atenuador de o delator contribuir com a persecução; c) não ocorre, outrossim, ofensa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, já que se trata de um caso muito específico em que o Ministério Público, em vista da razoabilidade e não havendo prejuízo à coletividade – pelo contrário –, nos termos da lei, pode deixar de oferecer denúncia contra delator.
Outra crítica contumaz é a de que a delação premiada transmite à sociedade a sensação de impunidade, devido à concessão de benefícios legais a delinquentes, por vezes demasiado generosos. Contudo, deve-se ter em mente que o Estado abre mão de parte de seu poder punitivo visando a uma maior eficiência no combate ao crime organizado, área de notável defasagem estrutural. Nesse diapasão, têm-se mais vantagens ao se conceder alguns benefícios aos colaboradores, e assim otimizar a atividades de persecução penal, do que dispensar a delação em nome do recrudescimento das reprimendas penais.
Argui-se, também, a possibilidade de sérios transtornos em termos de segurança jurídica e violação à esfera jurídica de outrem, no caso de delações inverídicas, cujo intento é apenas a obtenção dos prêmios legais, mas sem contrapartida efetiva, assim como o uso coercitivo da delação premiada, em especial quando o investigado/acusado está submetido à prisão provisória.
Em relação à implicação de pessoas inocentes em delações inverídicas, a própria Lei 12.850/13 tipifica tal conduta como crime, punível com reclusão, além disso, caso a delação se baseie em inverdades, o delator não alcançará os prêmios legais. No tocante ao emprego da delação premiada como forma de coerção e a concessão de benefícios desproporcionais, conquanto sejam práticas inadmissíveis, são desvirtuamentos do instituto que não fazem parte de sua essência, e, portanto, não podem ser usados para combatê-lo. O que deve ser feito é a coibição de tais arbitrariedades, notadamente quando da homologação judicial do acordo de delação premiada.
Não se pode ignorar o potencial da delação premiada em termos de aprimoramento da persecução penal, notadamente pela deficiência estatal no combate ao crime organizado. Por tudo o que foi exposto, não há que se falar em deturpação do Estado Democrático de Direito num mecanismo de obtenção de provas, cujo escopo é esfacelar organizações marginais, essas sim responsáveis por ferir de morte o arcabouço programático de direitos característico da Constituição de 1988, de um modo ainda mais repugnante as organizações criminosas infiltradas nos Poderes estatais, responsáveis pela violação do pacto democrático.
6. REFERÊNCIAS
LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4ª ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
______. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2015.
MOSSIN, Heráclito Antônio; MOSSI, Júlio César O. G. . Delação Premiada – Aspectos Jurídicos. 2ª edição. São Paulo: J. H. MIZUNO, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução penal. São Paulo: RT, 2008.
PEREIRA, Frederico Valdez. Compatibilização Constitucional da Delação Premiada. Revista dos Tribunais, vol. 929, São Paulo, mar. 2013.
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,delacaona-lava-jato-ja-reduz-penas-em-326-anos,10000063321. Acesso em 24/01/2018, às 22:30.
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1153.htm. Acesso em 18/01/2018, às 21:00.
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1272.htm. Acesso em 18/01/2018, às 20:00.
[1]. A principal referência das mencionadas operações policiais é a denominada Operação Lava-Jato, concebida no âmbito da Polícia Federal e do Ministério Público Federal de Curitiba-PR, e desenvolvida, inicialmente, perante a Justiça Federal daquela cidade, desde 2014. Após a adoção em larga escala da delação premiada como meio de obtenção de provas, a operação, que possuía como foco inicial esquemas de lavagem de dinheiro envolvendo operadores de câmbio, desdobrou-se em diversas outras investigações, alcançando, especialmente, um largo esquema de corrupção envolvendo o superfaturamento de contratos da Petrobras. Vide <http://lavajato.mpf.mp.br/lavajato/index.html>.
[2]. Disponível em <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1153.htm e http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1272.htm>
[3]. Podemos citar algumas previsões embrionárias de colaboração premiada em diversos dispositivos legais pátrios esparsos, tais quais:
•Código Penal: desistência voluntária (art. 15); arrependimento eficaz (art. 16); a atenuante genérica decorrente de ter o agente confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime (art. 65, III, d); e, no crime de extorsão mediante sequestro, quando cometido em concurso, se o concorrente o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços (159, § 4º).
• Crimes contra o Sistema Financeiro: Lei 7.492/86 - o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços (art. 25, § 2º).
• Lei dos Crimes Hediondos: Lei 8.072/90 - o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços (art. 8º, parágrafo único).
• Lei de Drogas: Lei 11.343/2006 - o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços (art. 41).
[4]. Tem-se notícia de críticas à Lava-Jato pela suposta utilização de prisão provisória para forçar a delação premiada. Em entrevista ao Estadão, o ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, atualmente advogado, Gilson Dipp, critica que “acabou por ser a única forma de obtenção de provas, a partir de prisões preventivas ou temporárias atemporais”. Portal Estadão. Disponível em <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,delacaona-lava-jato-ja-reduz-penas-em-326-anos,10000063321>
Graduanda do terceiro período curso de direito da UEPB .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Maria Gabrielle Celestino. Delação Premiada no Estado Democrático de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51817/delacao-premiada-no-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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