Os três argumentos utilizados em favor da execução provisória
Dentre os argumentos que há em favor da execução provisória, três merecem destaque. São eles: 1 – a presunção de inocência se esgota no 2º grau; 2 - a constitucionalidade das prisões cautelares confirma que a presunção de inocência é uma garantia relativa; 3 - o texto constitucional não assegura prisão só após o trânsito em julgado.
Argumento primeiro. Tribunais Superiores e a prova
Afirma-se que não há exame de prova nos Tribunais Superiores (o que é discutível) e, por consequência, a presunção de inocência se esgota no julgamento do 2º grau. Logo, o artigo 5º, inciso LVII, da CF, do qual decorre o princípio da presunção de inocência - “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”-, só se aplica até o julgamento dos tribunais de 2ª instância.
O argumento é inteligente, criativo, mas incompleto, pois revela apenas metade do contido no artigo 5º, inciso LVII, da CF. Esta regra constitucional teve dois filhos. Um falante, extrovertido, e que por isso mesmo ficou famoso. Ele regulamenta a avaliação de provas, é o princípio “in dubio pro reo”. Outro, discreto, pouco conhecido, muito mal interpretado (confundido com seu irmão), mas de uma importância vital, e que atua sobre a interpretação de normas, o princípio do “favor rei”. Segundo o tratadista italiano Giovanni Leone, “é princípio em virtude do qual todos os instrumentos processuais devem tender para a declaração de certeza da não responsabilidade do acusado” (LEONE, Giovanni. Tratado de derecho procesal penal. Buenos Aires, Jurídicas Europa-América, 1963, v. I, p. 188). Diz respeito a uma posição de mérito em relação à notícia do crime. É que o sistema processual penal, a ordem processual, o processo penal, todo ele, é uma ordem de garantia da liberdade e, por lógica consequência, e também por derivação do comando constitucional (artigo 5º, inciso LVII, da CF), havendo duas, três, ou mais interpretações possíveis, o juiz deve optar pela norma que for mais favorável ao acusado. “Se por interpretação se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro dessa moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne direito positivo no ato do órgão aplicador do direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. Ed. Coimbra, Arménio Amado, 1976, p. 467). Os Tribunais Superiores não precisam avaliar provas para absolver com base no artigo 5º, inciso LVII. Tendo em consideração o fato narrado no acórdão tido como verdadeiro e que resultou na condenação, o STF, examinando esse fato a luz do direito objetivo, e com fundamento no princípio do favor rei, pode considerá-lo, ou atípico, ou não antijurídico, ou não culpável, e absolver o acusado. Para isso basta que interprete de forma mais benéfica que o Tribunal recorrido as normas incidentes ao caso concreto. Tudo sem virar uma página sequer do processo. Só com a leitura do acórdão. Vale dizer, sem qualquer exame de prova. Do que resulta que, indiscutivelmente, a aplicação do princípio da presunção de inocência não se esgota na 2ª instância, dado que as leis são interpretadas favoravelmente ao acusado em todas instâncias.
Argumento segundo. Prisões cautelares e constitucionalidade
Outro argumento utilizado para justificar a execução provisória é a constitucionalidade das prisões cautelares (flagrante, temporária e preventiva), ou seja, é o argumento alhos com bugalhos, pois mistura institutos, quando um não tem nada a ver com o outro, embora possam ser semelhantes. A presunção de inocência não desampara o preso cautelarmente, seja em flagrante, seja temporária, seja preventivamente. Preso sob qualquer uma dessas cautelares, seu processo, e especialmente a avaliação das provas, perseguirá integralmente informada pela presunção da inocência, inclusive nas etapas eminentemente decisórias. Imagine-se um processo, dois acusados, um preso preventivamente, outro respondendo solto. A prisão preventiva se deu ou para garantia da ordem pública, ou por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, pouco importa qual desses motivos. Ao avaliar a prova para fins de sentenciar, haverá alguma razão para aplicar a regra da presunção de inocência somente em favor daquele que não esteve preso preventivamente? Evidentemente, não. Ser culpado não é pressuposto do decreto da preventiva. As prisões provisórias não excepcionam o artigo 5º, inciso LVII da CF. Referido dispositivo constitucional diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ora, para impor prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva, qualquer uma delas, não é necessário considerar o indiciado/acusado culpado. Para o flagrante é preciso que esteja em estado de flagrância delitual, o que não significa que seja culpado, pois que flagrância delitual não passa de uma fotografia da tipicidade, apenas um dos elementos do delito. Para a prisão preventiva é necessário prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, o que, técnica, e logicamente, representa uma longa distância até considerar-se culpado o acusado. A temporária exige qualquer prova admitida na legislação penal de autoria ou participação em determinados delitos, ou seja, culpado, longe ainda, também. Execução de pena, alhos. Prisão cautelar, bugalhos.
Execução de pena pressupõe que aquele que a cumpre seja culpado. Prisão cautelar, não. Não há este pressuposto na prisão cautelar. O antigo paradoxo doutrinário presunção de inocência/prisão cautelar é um falso paradoxo. Se colocarmos a transitar em uma via, o acusado, a segurança jurídica, a prisão cautelar e a presunção de inocência, concluiremos que vão todos na mesma direção. Ninguém está no contrafluxo. O acusado preso preventivamente está sendo transportado pela preventiva, que é empurrada pela segurança jurídica, e ao lado, é acompanhado pela presunção de inocência. Por razões de estrita necessidade, a segurança jurídica e a preventiva limitam sua liberdade, sem jamais considerá-lo culpado. Nessa via, nesse procedimento, sempre que se faz necessário avaliar provas, a presunção de inocência, acompanhando de perto ao lado, intransigente, se apresenta e exerce sua função. E assim vão. Os quatro. Todos no mesmo sentido. Até o final da via. Até o final do processo.
Argumento terceiro. O trânsito em julgado no texto constitucional
Afirma-se que o texto constitucional não assegura que a prisão só pode ter início após o trânsito em julgado. O artigo 283 do CPP o faz de maneira clara: “Ninguém poderá ser preso senão (...) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado (...).” É verdade que a CF não seja expressa para vedar a prisão antes do trânsito em julgado. Veja-se: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Todavia, inequivocamente, é o seu significado. Há a proibição constitucional de que alguém seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da condenação. Somente o culpado pode ser executado, pois que repugna à ordem jurídica a ideia de que o inocente possa cumprir pena. A submissão daquele que não foi considerado culpado por decisão transitada em julgado à execução provisória é a aplicação do dispositivo constitucional lido pelo lado avesso: “Ninguém será considerado inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e, nesse caso sim, ficaria autorizada execução da pena sem condenação definitiva. O sistema vigente poderia ser diferente, como o foi no passado, se não houvesse a garantia constitucional, e o CPP autorizasse o início de cumprimento de pena diante do esgotamento dos recursos em 2ª instância. Entretanto, não foi essa a opção constitucional. Há cláusula constitucional, e reforçada por lei federal expressa. Fraudar isso é se disfarçar de legislador. Pior, de constituinte. Muito pior, burlando cláusula pétrea. Alguns dispositivos da Constituição Federal são cláusulas de pedra, são duras, impermeáveis, consistentes, não se amoldam, inflexíveis, imutáveis, inalteráveis, não podem ser abolidas. Pétreas, são chamadas. Só podem ser interpretadas de maneira estrita. Não podem ser objeto de Proposta de Emenda (PEC). Não podem ser violadas por iniciativa de qualquer um dos Poderes, pois que objetivam dar estabilidade à nação. A proibição do reconhecimento de culpa antes da prisão (estatuída no artigo 5º da CF entre os direitos e garantias fundamentais) é uma cláusula pétrea, posto que o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, vedou que seja objeto de deliberação a emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Sendo cláusula pétrea, não há como relativizar seu valor. Introduzir segurança jurídica na cláusula para colocar aquele que não foi reconhecido culpado a cumprir pena antes do trânsito em julgado, só se for a mão armada, já que caracterizaria uma intervenção arbitrária.
Teremos também liberdade provisória condicional?
Por derradeiro, ficam registradas duas curiosidades. Iniciada a execução provisória da pena na segunda instância, e cumprida toda a pena antes que o recurso da defesa seja julgado pelos Tribunais Superiores, qual o nome se dará à liberdade? Liberdade “provisória”? Certo. Sabemos. Definitiva. Mas dúvida não há que o inocente/culpado possui o direito a que seu recurso seja julgado, pois que não lhe pode ser retirado o direito a uma justa indenização no caso de erro judiciário. E erro grave, já que se trata de cumprimento de pena integral por inocente, algo bem distinto de dar liberdade a quem estava preso preventivamente e foi absolvido. A segunda curiosidade diz respeito a quando, no mesmo caso anterior, sendo da acusação o recurso para aumentar a pena, qual o nome se dará a liberdade? Liberdade provisória condicional? Passaremos, então, a ter duas figuras de execução penal com nomes semelhantes, o livramento condicional, uma interrupção da execução, e a “liberdade condicional”, que poderá se transformar naquilo que poderá ser chamado de uma interrupção da liberdade, a qual se verificará quando o acusado já estiver solto por ter cumprido a pena, e o recurso da acusação para aumentar a pena for provido, havendo novo saldo de pena a ser cumprido. Melhor refletindo, já se pode cogitar de criar um novo capítulo no direito processual, e para tratar especificamente da fase seguinte à execução, a qual fica condicionada a resultados recursais. Criando direito, vamos concebendo novos institutos. São os riscos de legislar com a jurisdição.
Fica extinta a preventiva a partir da 2ª instância?
Diante de tantas idas e vindas em torno da execução provisória, a impressão que dá é que todos esqueceram que existe a prisão preventiva, a qual possui larga vantagem em relação a execução provisória, podendo ser aplicada desde a fase do inquérito policial. Presentes seus requisitos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria), o indiciado/acusado pode responder todo o processo, de seu início a seu final, preso. Obviamente, estando preso o acusado, há prazos a serem obedecidos.
Riscos de retrocesso institucional:
A interpretação conservadora do direito penal e processual penal tem avançado de maneira impressionante nos últimos anos. Nem as nulidades absolutas escaparam. Até elas, as absolutas, já podem ser sanadas mediante a comprovação de inexistência de prejuízo, segundo uma corrente jurisprudencial em formação. Sabe-se lá de que maneira é obtida essa prova! É o mesmo que dizer “não fez falta para a realização da justiça a ausência daquele Desembargador no Plenário Tribunal naquela sessão. Ao menos, examinando as decisões, ‘não há prova prejuízo, ou seja, não há prova de que as decisões seriam melhores’. Quanta perspicácia! Comparar o existido com o não existido, o ocorrido com o não ocorrido, e ter a pretensão de querer prova?! Impossível provar. Só se comparássemos a sessão que ele não compareceu com a que ele compareceu. O que é impossível. Não estamos dizendo que a falta de um Desembargador no Plenário implique nulidade. Não é isso. Estamos apenas dando um exemplo das razões porque é impossível provar o prejuízo nas nulidades. É verdadeiramente admirável que tenham criado essa tese, a da possibilidade de prova prejuízo na nulidades absolutas! Bem... examinaremos essa questões no artigo 563. Retornando a presunção de inocência. Sobre ela, o Ministro Lewandowski faz uma oportuna advertência: “Esse preceito foi redigido pelos membros da Assembleia Nacional Constituinte - exatamente para resguardar a nação contra a repetição dos desmandos cometidos ao longo do regime de exceção que acabara de ser superado -, a toda a evidência, não permite qualquer exegese no sentido de mitigar, seja a que pretexto for, essa relevantíssima garantia instituída em favor de todas as pessoas indistintamente, sob pena de irreparável retrocesso institucional” (Ministro Ricardo Lewandowski – STF – HC 152.752).
Procurador do Banco Central do Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDEIROS, Flavio Meirelles. Refutando os três principais fundamentos da tese da legalidade da execução provisória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51844/refutando-os-tres-principais-fundamentos-da-tese-da-legalidade-da-execucao-provisoria. Acesso em: 23 dez 2024.
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