RESUMO: O Direito Internacional dos Direitos Humanos busca a defesa universal dos direitos inerentes ao indivíduo, sendo efetivado através dos sistemas global e regionais de proteção. Os órgãos do sistema regional interamericano, composto pela Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, possuem mecanismos para apurar a responsabilização dos Estados por violação aos direitos humanos que, no entanto, não são aptos a atuar em casos onde o dano ainda não ocorreu. Quando o Estado não demonstra capacidade de evitar uma previsível lesão iminente, grave e irreparável, ou ainda se o ente soberano é responsável por gerar este risco, a concessão de tutela de urgência pelo sistema interamericano se faz indispensável para a salvaguarda dos direitos humanos sob ameaça, geralmente a vida e a integridade pessoal. O presente estudo volta-se a uma análise da eficácia destas medidas emergenciais de prevenção no que tange a sua aplicação no Brasil. Mediante pesquisa bibliográfica da doutrina especializada nacional e internacional, este trabalho objetiva demonstrar, através da exposição dos casos da Penitenciária Urso Branco e da usina hidrelétrica Belo Monte, as falhas na ação política brasileira, bem como as deficiências estruturais que tornam o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos incapaz de garantir a implementação de suas decisões. Ademais, conclui pela importância da conscientização da sociedade civil como o passo inicial para o desenvolvimento de uma base de atuação consistente dos órgãos internacionais, bem como a compreensão de que as medidas de urgência cumprem papel indispensável à consolidação plena da proteção internacional dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sistema Interamericano. Medidas de urgência. Penitenciária Urso Branco. Usina hidrelétrica Belo Monte.
ABSTRACT: International Human Rights Law seeks the universal defense of individuals’ inherent rights, being accomplished through global and regional systems. The organs of inter-american regional system, composed by Inter-american Human Rights Commission and Court, have mechanisms to canvass State responsibility on human rights violations that, however, are not apt to act in cases where the damage has not occurred yet. When the State does not demonstrate capability to avoid a predictable imminent, severe and irreparable lesion, or even if the sovereign entity is responsible to generate this risk, the grant of urgent measures by the inter-american system is imperative to the safeguard of the threatened human rights, usually life and personal integrity. The present study turns to the analysis of these emergency measures of prevention regarding its enforcement in Brazil. Through bibliographic research of national and international doctrine, this assay aims to demonstrate, by exposing the cases of the Urso Branco Penitentiary and the Belo Monte hydroelectric plant, the flaws of the brazilian political action, as well as structural deficiencies that make the inter-american system of human rights protection unable to guarantee the implementation of its decisions. Furthermore, concludes for the importance of civil society awareness as the initial step to the development of a foundation for a consistent performance of international organs, as well as the realization that urgent measures fulfill an indispensable role to the complete consolidation of human rights international protection.
Keywords: International Human Rights Law. Urgent measures. Inter-american system.Urso Branco Peninteciary. Belo Monte hydroeletric plant.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 2.1 A consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2.2 Responsabilidade do Estado por violações de direitos humanos. 2.3 Os sistemas global e regionais de proteção aos direitos humanos. 3 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. 3.1 A Convenção Americana de Direitos Humanos. 3.2 Procedimento e atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 3.3 Procedimento e atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4 TUTELAS DE URGÊNCIA E SUA EFICÁCIA NO ESTADO BRASILEIRO. 4.1 Tutelas de urgência no sistema interamericano de direitos humanos: aspectos gerais. 4.2 Tutelas de urgência aplicadas ao caso brasileiro: os casos Urso Branco e Belo Monte. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos foi instituído após o testemunho das atrocidades perpetradas na Segunda Guerra Mundial, marcada por genocídio, massacres e destruição. Na era que se seguiu às barbaridades deste conflito mundial, estabeleceu-se uma indubitável necessidade de resgatar um paradigma de proteção igualitária dos direitos inerentes à condição humana que ultrapassasse o controle e a tutela estatal sobre seus nacionais, o que só poderia ser obtido por meio da relativização da soberania dos Estados e do enfoque do indivíduo como sujeito de direitos intrínsecos.
A base dessa noção contemporânea de direitos humanos, reconhecidos com uma estrutura indivisível e compreendidos como universais e inter-relacionados, foi introduzida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, onde se prescreveu direitos individuais como a vida, a liberdade, a propriedade, a presunção de inocência e o devido processo legal.
Para efetivar o amparo desta nova perspectiva, constituiu-se, através deste e de diversos outros instrumentos normativos da Organização das Nações Unidas, um sistema global de proteção aos direitos humanos visando uma atuação de forma universal sem limitação geográfica.
Contudo, a ação especializada de sistemas regionais também se mostrou necessária, de forma complementar ao sistema global, em observância a particularidades sociais, culturais, políticas e econômicas. O sistema interamericano é criado nesse contexto de cooperação internacional a partir de um ideário de maior integração e de promoção de desenvolvimento entre os Estados, posteriormente se tornando fundamental ao gradual restabelecimento da democracia nos países americanos assolados por décadas de ditadura militar.
Dentre as competências jurisdicionais e políticas dos órgãos do sistema interamericano, composto pela Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, destacam-se as medidas de urgência como único instrumento passível de evitar danos irreparáveis à pessoa por meio de ações imediatas, atribuição inerente à função de proteção de direitos humanos, ante a impossibilidade de dar tutela efetiva a determinados casos de extrema gravidade e urgência se adotado o procedimento usual e prologando.
Os Estados-partes alvos de tal tutela excepcional devem observá-la não somente em decorrência do princípio da boa-fé que rege o Direito Internacional, portanto, mas também da prevalência dos direitos humanos, um dos princípios que guia o Brasil em suas relações internacionais. Isto posto, torna-se relevante questionar: tal recurso de aplicação fundamental tem tido eficácia em sua instituição no Estado brasileiro?
Para atender a esta problemática, buscou-se, por meio do método de abordagem dedutivo, analisar o escopo do Direito Internacional dos Direitos Humanos e das referidas tutelas de urgência dentro do contexto do sistema interamericano, para se observar o caso particular da eficácia da proteção dos direitos humanos em perigo de dano iminente e irreparável no Estado brasileiro. Fez-se uso das técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, com análise de doutrina nacional e internacional especializada na matéria, artigos de jornais e revistas dirigidos ao público em geral e documentos pertinentes, como leis, tratados internacionais, repertórios de jurisprudência nacional e internacional.
No capítulo inicial, o presente estudo aduz os fundamentos da criação e a importância do papel do Direito Internacional dos Direitos Humanos, mormente para a consolidação de uma nova perspectiva do indivíduo como sujeito de direitos na ordem internacional independentemente de sua nacionalidade, permitindo assim sua proteção mesmo na falha da atuação estatal. Expõe-se, ademais, acerca da noção de responsabilidade internacional do Estado quando da violação dos direitos humanos, relevante para a efetivação da atuação internacional sobre um ente soberano. Finaliza-se introduzindo a concepção dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, com uma breve exposição do funcionamento dos sistemas atualmente ativos.
O capítulo subsequente discorre sobre o sistema interamericano, precipuamente dispondo sobre o núcleo normativo representado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, para logo em seguida definir o procedimento e a atuação dos dois órgãos do sistema responsáveis por estabelecer a proteção internacional destes direitos nos países americanos, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
No derradeiro capítulo, para se demonstrar o escopo das medidas de urgência no sistema interamericano, estabelecem-se os aspectos gerais atinentes, como o âmbito de aplicação, os procedimentos e os exemplos de casos em que usualmente são utilizadas para proteger os direitos humanos na iminência de sofrerem grave violação. Por fim, apresentam-se os casos da Penitenciária Urso Branco e da usina hidrelétrica Belo Monte, em que as tutelas de urgência foram outorgadas para serem cumpridas pelo Estado brasileiro, uma pela Comissão e outra pela Corte Interamericana, aqui utilizados como parâmetro para a análise da eficácia da prevenção de violação grave dos direitos humanos no Brasil, bem como para a percepção do que influencia no procedimento de implantação das medidas e em sua executabilidade.
A formação de um Direito Internacional dos Direitos Humanos resulta de um longo e dinâmico processo consubstanciado, primariamente, no reconhecimento destes direitos inerentes à pessoa como direitos subjetivos universais, passíveis de serem tutelados independentemente do vínculo de nacionalidade do indivíduo, inclusive em face do próprio Estado.
Diz-se longo porque a noção atual de direitos humanos foi construída de forma gradual e conjunta ao desenvolvimento dos estudos da própria razão humana, dinâmico porque se expandiu nos momentos históricos em que a humanidade precisou distanciar-se da consciência ética coletiva da época e buscar novos conceitos para redefinir as acepções de pessoa e direito.
Konder Comparato (2010, p. 20-24) expõe que foi após a instituição da democracia grega, quando suprimido qualquer poder político superior ao próprio povo, que o ser humano passou a problematizar a própria condição de pessoa e se tornou objeto de análise e reflexão, como forma de buscar uma nova justificativa ética para a organização da vida humana em sociedade. Nestas condições, instaurou-se uma noção inicial de lei comum dos povos aplicável a todos os homens, pois todos seriam de igual natureza, ponto de partida para uma construção paulatina do conceito atual de pessoa e de seus direitos.
A consciência acerca dos direitos humanos passou a se consolidar através de marcos históricos como o surgimento e expansão da doutrina judaico-cristã de igualdade universal e posteriormente pelo progresso filosófico da reflexão sobre a razão, a exemplo dos postulados de Kant que trouxeram a compreensão do ser humano como todo ser racional que existe por si mesmo, nunca como meio para qualquer vontade, em patente valoração à dignidade inerente a todo indivíduo (COMPARATO, 2010, p. 24-36).
Esta evolução na concepção da condição humana refletiu, inevitavelmente, sobre o desenvolvimento paralelo da ciência jurídica, que almejou elevar a dignidade humana a valor central e irradiador dos demais direitos. Em decorrência das necessidades sociais, buscou-se inicialmente compreender os direitos humanos como direito natural e divino da humanidade, criada a partir da imagem de Deus e, depois, como resultado racional decorrente da característica da lei de ser criada pelos humanos e seus valores, possuindo então a função intrínseca de proteger princípios basilares que lhe são caros e indisponíveis sem distinção entre os indivíduos.
Denise Sousa, ao buscar um conceito de direitos humanos, observa que:
A expressão "direitos humanos" passou por significativas alterações ao longo dos tempos, não apresenta um significado único ou pacífico na teoria político-jurídica contemporânea e, provavelmente, sequer na perspectiva filosófica. Tais direitos são essencialmente produto da história, provenientes de embates pela preservação da liberdade e pela instauração da igualdade, de tal modo que suas possibilidades de manifestação estão sempre abertas àquilo que esteja relacionado à natureza humana e à sua capacidade de expansão e realização (2010, p. 61).
Portanto, reafirma-se que a formulação e percepção dos direitos humanos encontram-se intimamente ligadas aos momentos históricos, como reflexo necessário das mudanças sociais e de transformações técnica, "na medida em que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução" (PIOVESAN, 2012, p. 175).
O mesmo pode ser dito, consequentemente, em relação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, construído após a Segunda Guerra Mundial como resposta às atrocidades que representaram completa desconsideração de todos os princípios fundamentais e concepções de direitos humanos sedimentados até a época e a partir da "crença de que parte destas violações poderia ser prevenida, se um efetivo sistema de proteção internacional dos direitos humanos existisse" (PIOVESAN, 2010, p. 38).
Fez-se necessário mais uma vez inovar no paradigma ético estabelecido, que no período anterior à Segunda Guerra já havia elevado os direitos humanos ao patamar de direitos fundamentais no âmbito das legislações internas de alguns Estados, e buscar a construção de um modelo de proteção internacional do indivíduo e de sua dignidade.
A forma pela qual Estado trata seus nacionais deixa de ser concebida como um problema limitado à jurisdição doméstica, decorrente da própria soberania, para se admitir intervenção no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos, através de monitoramento e responsabilização internacional pelos direitos violados (PIOVESAN, 2010, p.39).
É este processo de consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, da consequente responsabilidade internacional dos Estados por violação dos direitos humanos e da formação de uma integrada sistemática de proteção a estes direitos em níveis global e regionais que se pretende estudar a partir de agora.
Conforme mencionado, costuma-se tratar a internacionalização dos direitos humanos como um fenômeno característico de um mundo Pós Segunda Guerra, cujo desenvolvimento pode se atribuir às violações aos direitos humanos cometidas em razão da ideologia nazista e à crença que o próprio conflito poderia ter sido evitado se existisse um sistema internacional efetivo de proteção dos direitos humanos após a Primeira Guerra Mundial (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 29).
No entanto, elementos constitutivos da universalização destes direitos surgiram em diplomas anteriores à Segunda Guerra Mundial, conquanto com abrangência limitada.
A origem da formação de uma visão global dos direitos humanos é por vezes atribuída aos ideais iluministas do século XVIII, que resultaram nos primeiros diplomas normativos de direitos humanos voltados a disciplinar o controle do poder estatal, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (SOUSA, 2010, p. 72).
Buergenthal, Shelton e Stewart (2009, p. 3-6), por outro lado, destacam o direito humanitário[1] como a primeira doutrina a externar o entendimento de que haveria limites à liberdade que os Estados usufruem no tratamento de seus próprios nacionais. Acentuam que, embora este argumento tenha sido distorcido e utilizado para justificar ocupações ou invasões em países mais fracos, é impossível olvidar sua relevância em calcar a compreensão de que a violação massiva de direitos humanos poderia ser respondida através de intervenção humanitária[2] coletiva de organizações internacionais ou de outros Estados.
Em seguida, ainda em relativização da soberania dos Estados, aponta-se a contribuição da Liga das Nações ao processo de internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra Mundial para promover a cooperação, a paz e a segurança internacional, sua Convenção apresentava dispositivos em que se estabeleciam sanções econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que violassem obrigações previstas relativas aos direitos humanos. Incorporou-se à noção de soberania, portanto, compromissos internacionais no que diz respeito a estes valores fundamentais (PIOVESAN, 2012, p. 178-179).
Nesse contexto, vale ainda mencionar que
Também contribuiu para a internacionalização dos direitos humanos a Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituída pela parte XIII do Tratado de Versalhes como uma das agências da supramencionada Liga das Nações, por visar à promoção da instituição de padrões internacionais de condições de trabalho, estabelecendo um rol de direitos consagrados a todos os trabalhadores, independentemente da nacionalidade (SOUSA, 2010, p. 74).
Destarte, os pilares para a concretização do Direito Internacional dos Direitos Humanos após a Segunda Guerra foram previamente estabelecidos, notadamente no que concerne o distanciamento do conceito da soberania estatal como fonte única e isolada à salvaguarda dos direitos humanos de seus nacionais.
Embora prenunciando o fim desta era do tratamento do indivíduo como problema exclusivamente de jurisdição doméstica, a consolidação efetiva da globalização dos direitos humanos teve como propulsão definitiva os horrores do nazismo, movimento que veio a demonstrar a ineficácia dos preceitos até então estabelecidos, afastando todo o avanço alcançando na formação de direitos universais das pessoas com a lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana. Narra-se que
Ao dar entrada num campo de concentração nazista, o prisioneiro não perdia apenas a liberdade e a comunicação com o mundo exterior. Não era, tão só, despojado de todos os seus haveres: as roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele era, sobretudo, esvaziado do próprio ser, da sua personalidade, com a substituição altamente simbólica do nome por um número, frequentemente gravado no corpo, como se fora a marca de propriedade de um gado. O prisioneiro já não se reconhecia como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas as suas energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão (COMPARATO, p. 35-36).
Estas duras lições legadas pelo Holocausto evidenciaram que o desafio já não se tratava de proteger indivíduos sob certas condições ou em situações circunscritas, como tinha ocorrido até ali, mas de proteger o ser humano como tal. "Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução" (PIOVESAN, 2012, p. 184).
Desta constatação resultou a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, pela recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), ponto de partida para o desencadeamento do processo de generalização da proteção dos direitos humanos (TRINDADE, 2000, p. 23-24).
Com efeito, introduziu-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos uma noção contemporânea de direitos humanos universais e inter-relacionados, em um modelo que "trata direitos humanos internacionalmente reconhecidos holisticamente, como uma estrutura indivisível em que o valor de cada direito é significativamente ampliado pela presença de vários outros[3]" (DONELLY, 2003, p. 27).
Nesse sentido, Flávia Piovesan desenvolve tais características de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos na Declaração Universal:
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais (2011, p. 41).
Contudo, ainda que um novo paradigma ético tenha indiscutivelmente se formado a partir deste diploma, o que para Bobbio (2004) representou o início de uma derradeira etapa de positivação universal dos direitos humanos[4], sua força vinculante permanece ainda em debate, tendo em vista que tecnicamente tem caráter apenas de recomendação aos membros da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Konder Comparato (2010, p. 238-239) defende a vigência das terminações da Declaração Universal dos Direitos Humanos salientando que o Direito Internacional não se limita aos tratados e convenções, também se constituindo pelo costumes e princípios gerais de direito, de forma que a Declaração, como reconhecimento universal dos valores supremos da igualdade, liberdade e fraternidade e tratando do princípio da dignidade humana, representa norma imperativa do Direito Internacional geral[5].
De qualquer forma, reconhece-se que a Declaração Universal foi o primeiro instrumento abrangente de direitos humanos promulgado por uma organização internacional prescrevendo direitos individuais políticos, econômicos, sociais e culturais como vida, liberdades, segurança, proibição de tortura, processo justo em matéria criminal ou cível, presunção de inocência, privacidade, propriedade e educação, dentre muitos outros, o que levou à comunidade internacional a atribuí-la uma posição moral e normativa especial (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 38-46).
Para efetivar estas disposições e tornar expressa a vinculação dos Estados, à Comissão de Direitos Humanos, órgão subsidiário do Conselho Econômico e Social da ONU, incumbiu a redação de dois documentos com estrutura de tratados, visando criar mecanismos de controle internacional para o monitoramento dos Estados no cumprimento de suas obrigações e de punição para as violações eventualmente praticadas, originando o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (SOUSA, 2010, p. 84-85).
A decisão de se criarem dois Pactos e não um só decorreu de uma errônea compreensão de que os direitos civis e políticos eram suscetíveis de aplicação imediata, requerendo obrigações de abstenção por parte do Estado, enquanto os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis apenas de aplicação progressiva, a partir de uma atuação estatal positiva[6].
O processo de elaboração dos Pactos prolongou-se por mais de vinte anos (1947 a 1966) por fatores como as diferenças decorrentes dos conflitos ideológicos do mundo bipolarizado da época, obtendo sucesso em conciliá-los para expandir e garantir força normativa inconteste ao rol de direitos expressamente expostos na Declaração Universal[7] (TRINDADE, 2000, p. 31-35).
Estes três documentos - Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dois Pactos - compuseram a "International Bill of Rights", ou Carta Internacional de Direitos Humanos, representando a instituição da ordem normativa de um sistema global de proteção aos direitos humanos.
Outros tratados vieram a cristalizar e aperfeiçoar os mecanismos de proteção internacional destes direitos, fortalecendo a noções de indivisibilidade e universalidade que lhes é inerente, como a Proclamação de Teerã de 1968 e a Declaração de Viena de 1993 (decorrentes, respectivamente, da primeira e segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos), e expandindo o foco a direitos específicos, a exemplo da Convenção sobre Direitos Políticos da Mulher, de 1952, da Convenção Adicional sobre Abolição de Escravatura e do Tráfico de Escravos, de 1956, e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965 (SOUSA, 2010, p. 86-92).
Formou-se, assim, o aparato do Direito Internacional dos Direitos Humanos, voltado à proteção de indivíduos ou grupos em face de violações de seus direitos internacionalmente garantidos, assim como à promoção destes direitos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 1).
A implementação dos direitos humanos passa a atuar como tema legítimo de interesse internacional, fruto da percepção gradual de que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, e nem poderia se esgotar, na atuação do Estado (TRINDADE, 1991, p. 4-5).
A normativa internacional sobre os direitos humanos se consagra, então, sobre dupla lógica: "a lógica da supremacia do indivíduo, como ideal do Direito Internacional e a lógica realista, da busca da convivência e cooperação pacífica entre os povos, capaz de se encontrada através do diálogo na proteção dos direitos humanos" (RAMOS, 2002, p. 19-20).
Para sua efetivação, contudo, além da existência de um corpo legislativo, fez-se necessária uma evolução na interpretação dos tratados internacionais relativos aos direitos humanos e nos próprios conceitos de soberania e domínio reservado de jurisdição dos Estados, bem como do princípio da não intervenção.
De fato, ao aceitarem as obrigações internacionais no campo dos direitos humanos, os próprios Estados tornam infundadas quaisquer alegações de "domínio reservado" ou de "ofensa à soberania" porventura ventiladas[8] (RAMOS, 2002, p. 23).
Para Cançado Trindade, esta pretensa "competência nacional exclusiva"
[...] afigura-se como um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, inteiramente inadequada ao plano de relações internacionais, porquanto originalmente concebida, tendo em mente o Estado in abstracto (e não em suas relações com outros Estados), e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais. Nos dias de hoje, não há como sustentar que a proteção dos direitos humanos recairia sob o chamado "domínio reservado do Estado", como pretendiam certos círculos há cerca de três ou quatro décadas atrás (1991, p. 4).
Conforme mencionado, a ideia de relativização da soberania estatal precedeu a constituição do sistema global de proteção de direitos humanos, mas foi a partir da perspectiva de defesa aos direitos universais do indivíduo que esta se tornou o cerne dos tratados internacionais, que passam inclusive a perder sua natureza sinalagmática para beneficiar um interesse supraestatal.
Isso porque a preocupação internacional que gerou a globalização de outros temas difere da internacionalização de direitos humanos. Apesar da proteção local dos direitos humanos, em regra, não afetar per se os interesses dos cidadãos de outro Estado, se tornou essencial à governabilidade internacional em um mundo de polaridades indefinidas e fator-chave para a convivência entre os povos. Passa a se tratar, portanto, de condição de legitimidade dos próprios Estados (RAMOS, 2002, p. 18-19).
Tem-se, assim, que em matéria de tratados sobre proteção dos direitos humanos, a reciprocidade comum nos tratados internacionais é suplantada pela noção de garantia coletiva e pelas considerações de interesse comum ou geral superior. Tais tratados incorporam obrigações de caráter objetivo, que transcendem os meros compromissos recíprocos entre as partes e se voltam à defesa dos direitos do ser humano e não dos direitos dos Estados[9] (TRINDADE, 1991, p. 10-12).
Um Estado, frente a um tratado multilateral de direitos humanos, assume obrigações para com indivíduos, independentemente da nacionalidade, e não para com outro Estado contratante. Afasta-se, no Direito Internacional de Direitos Humanos, a noção contratualista dos tratados, que exige contraprestação e trata de interesses materiais estatais, para instituir-se uma obrigação com a sociedade internacional (RAMOS, 2002, p. 25-35).
Ademais, outra importante consequência e evolução a partir da redução do domínio reservado do Estado, além da revisão da noção tradicional de soberania absoluta, foi a consolidação da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera universal na condição de sujeito de direitos (PIOVESAN, 2011, p. 40).
Não obstante o constante debate no Direito Internacional acerca da definição de sujeitos de Direito Internacional, condição inicialmente reconhecida apenas aos Estados e às organizações internacionais, o entendimento de que o indivíduo é sujeito de direito interno e de Direito Internacional, gozando de plena capacidade processual para requerer a proteção dos direitos humanos em juízo, tem se firmado de forma gradativa[10] (SOUSA, 2010, p. 47-59).
O referido caráter objetivo das obrigações de respeito a direitos humanos assumidos pelo Estado evidencia que se tutela o interesse do indivíduo, e não uma vantagem material do Estado, em situação contraditória com a personalidade jurídica do indivíduo na seara internacional, quando não reconhecida, pois a exigibilidade desta proteção estaria restrita apenas ao próprio Estado ou a uma organização internacional (ANNONI, 2009, p.34)
Tal dicotomia foi solucionada pela admissão da legitimidade ativa do indivíduo em acionar o Estado perante órgãos internacionais em situações concernentes à proteção dos direitos humanos.
Sobre o processo de reconhecimento de capacidade processual do indivíduo, Cançado Trindade observa que
Fator determinante da posição da posição dos indivíduos em um sistema de proteção internacional reside no reconhecimento de sua capacidade processual, i. e., de seu direito de recorrer a um órgão de supervisão internacional. No passado, a negação de seu status internacional aos indivíduos (capacitados a agir apenas através de seus próprios Estados) enfatizou de modo grave as conotações políticas das relações interestatais para a solução de reclamações ou litígios. O reconhecimento e a cristalização da capacidade processual dos indivíduos (tornando irrelevante o vínculo de nacionalidade) e do direito de petição individual a nível internacional vieram, assim, no contexto da proteção dos direitos humanos, a sanar e superar as insuficiências e os defeitos do sistema tradicional da proteção diplomática interestatal discricionária. No novo sistema de proteção, em que se reconheceu acesso direto dos indivíduos a órgãos internacionais, tornou-se patente o reconhecimento de que os direitos humanos protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado" (1991, p. 7).
A possibilidade de comunicação individual da vítima de violação de direitos humanos a órgão internacional, embora já presente na sistemática da Liga das Nações[11] e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não possuía caráter judicial. Esta acessibilidade foi aprimorada na era das Nações Unidas, pela capacidade da vítima de realizar o peticionamento individual perante órgãos internacionais, desvinculando-se da aplicação apenas indireta do Direito Internacional através da jurisdição do Estado[12] (SOUSA, 2010, p. 47-53).
Contudo, da mesma forma que se passa a reconhecer o indivíduo como titular de direitos de caráter internacional, com capacidade para postulá-los frente a órgãos internacionais, este também se torna capaz de figurar o pólo passivo da proteção aos direitos humanos, quando violar as normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, pois a condição de sujeito pleno de direito no Direito Internacional seria sustentável apenas se passível de proteção ou punição pelas normas internacionais (ANNONI, 2009, p. 25)[13].
Destarte, a sedimentação tanto do acesso quanto da responsabilização do indivíduo na violação de direitos humanos se mostram fundamentais à consolidação da proteção no âmbito internacional e, consequentemente, à efetivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Pretende-se proteger, com a instituição de um padrão ético universal[14], o reconhecimento internacional de todos os seres humanos como tal, em uma ordem jurídica onde a dignidade possa ser sobreposta, o que pressupõe uma ordem internacional passível de averiguação e controle dos mais diversos sujeitos.
Sustenta-se, assim, a relevância de uma limitação no poder do Estado sobre os direitos dos indivíduos, atingida pela internacionalização dos direitos humanos, bem como a necessidade de assegurar sua eficácia estabelecendo a responsabilidade internacional dos agentes violadores destes direitos, como possibilidade de reação do sujeito prejudicado e de garantia da ordem jurídica estabelecida.
A responsabilização pelos atos do Estado que violem direitos humanos é fundamental à proteção internacional eficaz, além de constituir o cerne da própria necessidade de internacionalização destes direitos.
Se inexistente a possibilidade de responsabilizar um ente soberano em âmbito internacional, as vítimas destas transgressões restariam à mercê da reparação pelo próprio Estado violador, quedando-se em uma proteção ineficiente e contraditória ao desenvolvimento da concepção universal dos direitos humanos como aspecto basilar à condição humana.
No entanto, embora presente no Direito Internacional anteriormente ao processo de generalização dos direitos humanos, a noção de responsabilidade do Estado não se mostrava adequada à defesa eficaz destes direitos no modelo originário de proteção diplomática.
Pautada na nacionalidade e na soberania estatal, a proteção diplomática consiste em faculdade do Estado para seus nacionais em território estrangeiro. O dano de um nacional ao qual foi estendida a proteção diplomática seria considerado dano indireto ao Estado de origem, perante o qual o ente violador deve se responsabilizar (ANNONI, 2009, p. 34-35).
Adaptava-se de forma coerente, notadamente até a década de sessenta do século XX, às necessidades dos conflitos bilaterais e circunscritos à esfera econômica, mas tornou-se insuficiente conforme a complexidade das relações internacionais Pós Guerra e a regulamentação da proteção de direitos humanos expôs a necessidade de uma expansão interestatal da defesa do indivíduo (GÓIS, 2011, p. 41).
A responsabilidade pela violação dos direitos humanos se distancia desta proteção diplomática, porquanto, conforme já esclarecido, o reconhecimento da internacionalização dos direitos humanos somente foi possível a partir de uma relativização gradual do conceito de soberania, o que permite que a responsabilidade do Estado violador transcenda qualquer relação com a nacionalidade do indivíduo ou com uma atribuição do poder soberano.
O caráter objetivo dessa proteção internacional, anteriormente ressaltado, também é, em consequência, um fator relevante na compreensão da responsabilidade internacional no que concerne a proteção dos direitos humanos. Tendo em vista a natureza distinta dos tratados internacionais que discorrem sobre a matéria, os quais não possuem a função de tutelar interesse material próprio dos Estados, mas sim um interesse comum e superior, é desejável que a fiscalização e o controle do cumprimento destas obrigações pela conduta estatal sejam entregue a terceiros (RAMOS, 2002, p. 34).
Sob estas premissas, dois mecanismos de constatação da responsabilidade internacional do Estado foram desenvolvidos.
O primeiro deles, o mecanismo unilateral, permite que um ou diversos Estados possam se reconhecer vítimas de violação aos direitos humanos perpetrado por outro ente soberano, ainda que a transgressão tenha se limitado aos nacionais do próprio Estado violador. Assemelha-se, portanto, ao que ocorre nas violações referentes aos tratados comerciais bilaterais[15] (ANNONI, 2009, p. 54-55).
O Estado que afirmar ter havido violação de seu direito irá primeiramente analisar de forma livre o pretenso fato ilícito, para em seguida requerer reparação ou até mesmo sancionar o dito Estado ofensor, se aquela não for atendida. Com o Estado alegadamente prejudicado na condição de juiz e parte, nota-se que muito se perde em objetividade e imparcialidade na aferição da conduta internacional lesiva (RAMOS, 2002, p. 39-41).
Acerca destas características, observa-se ainda que
O efeito devastador na utilização do mecanismo unilateral de responsabilização é, além da sua generalização e banalização, o uso indevido de pressão política e econômica de Estados mais fortes econômica e militarmente, o que choca o princípio de não intervenção em assuntos domésticos, consubstanciados no art. 2°, §7°, da Carta das Nações Unidas (ANNONI, 2009, p. 55).
Assim, por esta possibilidade de submissão a interesses econômicos e políticos, viabilizando a subserviência dos Estados em posição desvantajosa, a utilização do mecanismo unilateral foi deslocada para uma condição subsidiária ao denominado mecanismo coletivo ou institucional, que implica o processamento e julgamento do Estado por um órgão internacional.
O processo coletivo de responsabilização internacional dos Estados consiste na verificação da conduta estatal por órgãos especializados em processá-los e julgá-los, obedecendo aos ditames do devido processo legal e parâmetros estabelecidos em normas jurídicas internacionais tanto para o ofensor quanto para o ofendido[16]. Procura-se evitar, desta forma, a seletividade e parcialidade características do mecanismo unilateral (ANNONI, 2009, p. 55-56).
Inicialmente, para que se dê uma averiguação e reconhecimento desta responsabilização de maneira conforme aos preceitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como pretendem estes órgãos, faz-se necessário verificar a caracterização dos elementos da responsabilidade internacional.
A incidência de responsabilidade internacional, de uma forma geral, decorre de uma conduta internacionalmente ilícita de que resulte afronta ao Direito Internacional, seja a um princípio geral, regra costumeira ou dispositivo de tratado em vigor. Violado o dever jurídico internacional, surge a responsabilidade do Estado violador de reparar na proporção do prejuízo causado (GÓIS, 2011, p. 33-35).
Neste âmbito, a teoria da natureza subjetiva da responsabilidade, acatada no ordenamento jurídico pátrio, em que se afere a culpa, ou seja, a atuação negligente, imprudente ou imperita na concretização do fato internacionalmente ilícito, resta ultrapassada, bastando que fique caracterizada a referida violação às normas internacionais. Com efeito, torna-se preterível que a conduta seja comissiva, bastando que o Estado tenha se omitido quando tivesse o dever legal de atuar, de impedir a lesão causada (ANNONI, 2009, p. 39-42).
No que concerne à proteção aos direitos humanos, o requisito toma feições ainda mais amplas. Mesmo que a conduta estatal prejudicial aos direitos humanos, comissiva ou omissiva, não configure violação de norma do Direito Internacional, gera-se sua responsabilidade internacional. Destarte, a mera omissão do Estado em não sancionar responsáveis por violações de direitos humanos na ordem interna, por exemplo, embora não viole expressamente à norma de Direito Internacional, configura ofensa aos direitos humanos (ANNONI, 2009, p. 43).
Destaca-se que é indiferente que este ato internacionalmente ilícito viole ou não, concomitantemente, a lei doméstica de um Estado (GÓIS, 2011, p. 35).
Esta ofensa aos direitos humanos, componente da responsabilidade internacional, deve corresponder a um resultado lesivo ocasionado pelo desdobramento daquele ato, elementos que remetem ao nexo de causalidade e o dano da responsabilidade civil.
Trata-se, aqui, da mera lesão aos direitos, dispensando o dano material que, se ocorrer, será apenas uma confirmação da lesão a normas de direito material. Desta identificação da conduta com seu resultado decorre que "o dano passa a ser inerente à comprovação do fato internacionalmente ilícito, o que equivale a uma absorção do dano pelo conceito de ilicitude" (ANNONI, 2009, p. 53).
Assim, caracterizado o fato internacionalmente ilícito, por ação ou omissão estatal, causador de dano aos direitos humanos, ainda que aparentemente não haja dano material a ser reparado, está qualificada a responsabilidade internacional do Estado.
Como resultado desta constatação, no modelo coletivo de responsabilização, os órgãos internacionais emitem decisões e recomendações de naturezas distintas, usualmente classificadas nas modalidades de supervisão, controle e tutela.
Em síntese, tem-se que a supervisão corresponde a uma forma de pressão ou indução aos Estados para introduzirem a garantia dos direitos humanos no ordenamento interno e efetivar tal garantia, através de uma recomendação não-vinculante. No controle estrito senso, por sua vez, averigua-se as possíveis violações e cobra-se dos Estados a reparação das vítimas. A modalidade de tutela, por fim, consiste em uma jurisdição internacional imparcial de deliberações com força vinculante, instaurada com o escopo de realizar uma restauração compulsória da legalidade internacional (RAMOS, 2002, p. 106-108).
As decisões de tutela buscam dar maior eficácia à obrigação objetiva internacional dos Estados de proteção aos direitos humanos, através de sua exigibilidade em âmbito global e regionais, como se verá à frente.
Referida jurisdição internacional, apta a zelar pelo respeito aos direitos humanos em nível internacional, possui, no entanto, natureza subsidiária e complementar ao dever primário do Estado de salvaguarda a estes direitos.
Independentemente do debate doutrinário instaurado acerca do esgotamento dos recursos internos do Estado frente ao nascimento de sua responsabilidade internacional, se elemento ou requisito meramente processual desta[17], importa ressaltar que, atualmente, o fundamento da atuação primária da jurisdição local na defesa dos direitos humanos não advém da soberania estatal, como é de fácil intelecção tendo em vista os já analisados alicerces do Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas da necessidade do Estado de garantir os direitos humanos através do estabelecimento de recursos aos jurisdicionados (RAMOS, 2002, p. 113-115).
Conforme analisa Cançado Trindade (1991, p. 19-21), a regra do esgotamento dos recursos internos nos direitos humanos é hoje abordada de modo positivo, ou seja, tais recursos são tidos como elemento integrante do próprio sistema de proteção aos direitos humanos, com a ênfase deslocada do processo de esgotamento para ao elemento da reparação propriamente dita[18], comportando inclusive flexibilização se a administração da justiça local denegar justiça, houver atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais graves.
A atuação estatal na proteção dos direitos humanos não se limitará, no entanto, à prestação jurisdicional, restando toda a Administração Pública, no caso brasileiro,
[...] comprometida com a implementação dos acordos firmados em nome do Estado. Sendo assim, todos os três os Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), nas esferas federal, estadual e municipal, deverão tomar as medidas cabíveis em seu âmbito de atuação para o fiel cumprimento das obrigações acertadas (COELHO, 2008, p. 45-46).
Esgotados os procedimentos cabíveis internos ou flexibilizada esta exigência, os direitos humanos violados deverão ser tutelados por órgãos internacionais, instituídos em uma sistemática global e diversos sistemas regionais complementares que também constituem o conjunto institucional de proteção aos direitos humanos.
Destacados os aspectos que levaram à universalização dos direitos humanos e as consequências deste novo viés na ordem jurídica internacional, é inferível que o implemento desses direitos de forma eficaz necessitaria da criação de uma sistemática internacional de monitoramento e controle, partindo da noção de obrigação internacional dos Estados em preservar os direitos humanos, sob pena de responsabilização.
O reconhecimento universal de direitos humanos fundamentais, conforme já explicitado, se deu com o advento da Declaração dos Direitos Humanos, em 1948, mas sua "juridicização" conclui-se apenas em 1966 com a elaboração dos dois Pactos internacionais e a decorrente formação da Carta Internacional dos Direitos Humanos, que inaugura o sistema global de proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2012, p. 225-226).
Tal sistema veio a ser ampliado posteriormente por diversos outros instrumentos direcionados a específicas violações dos direitos humanos como o genocídio, a tortura, as discriminações raciais e contra as mulheres e o desrespeito ao direito das crianças e dos idosos, que passaram atuar de forma complementar ao sistema geral nuclear já instituído pela Carta Internacional (SOUSA, 2010, 112-123).
Contudo, a proteção aos direitos humanos no sistema global restringe-se aos chamados "power of shame" e "power of embarrassement", ou seja, à pressões de natureza política da comunidade internacional. Isso porque inexiste um órgão jurisdicional ou de capacidade sancionatória ligado aos direitos humanos na ONU e, consequentemente, resta prejudicada a responsabilização dos Estados por violação dos direitos humanos no sistema global (PIOVESAN, 2011, p. 177-178).
Como resultado, tem-se um regime com normas extensivas, coerentes e amplamente aceitas, mas extremamente limitado em seus poderes sancionatórios, voltado fundamentalmente, portanto, apenas à promoção da proteção dos direitos humanos (DONNELLY, 2003, p. 135-138).
Já a efetiva tutela aos direitos da pessoa cabe, quando o Estado se demonstra ineficaz no cumprimento de sua obrigação primária, aos órgãos internacionais dos sistemas regionais, constituídos a partir de instrumentos específicos e abrangentes de áreas geográficas distintas, observando as necessidades e peculiaridades políticas, econômicas, culturais e sociais de cada região.
Assim, enquanto o sistema global não possui limitação geográfica ou de conteúdo, os sistemas regionais são criados para estabelecer atuação especializada nos continentes onde já foram organizados, a exemplo da Europa, da África e das Américas (SOUSA, 2010, p. 95-99).
Os sistemas global e regionais foram instituídos de forma a não serem dicotômicos, e sim complementares, em composição de um instrumento universal de proteção aos direitos humanos que interage em benefício dos indivíduos protegidos. Somam-se, portanto, com o fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais, em respeito à primazia da pessoa humana (PIOVESAN, 2011, p. 42).
O primeiro dos sistemas regionais criado foi o europeu, como consequência direta do quadro incipiente de integração europeia no Pós Guerra, surgindo com a esperança de se implantar naquele continente um paradigma mínimo de proteção aos direitos humanos afeto a todos os países do bloco, a partir da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950 (MAZZOULI, p. 49-51).
O texto da Convenção Europeia retomou os direitos e princípios da Declaração Universal e, para garanti-los, impôs obrigações aos Estados.
Estabeleceu-se um sistema de controle em que se permitiu tanto aos Estados quanto aos indivíduos, em sua posição conquistada de sujeito de Direito Internacional, proporem denúncias acerca de violações aos direitos humanos caso se considerassem vítimas de violações por conduta dos Estados-partes da Convenção (SOUSA, 2010, p. 126-127).
Acerca da competência dos órgãos componentes do sistema europeu, que viria a inspirar todos os sistemas regionais e o mecanismo de responsabilização internacional atual, Ramos destaca que
[...] a originalidade da Convenção Européia de Direitos Humanos reside justamente no mecanismo coletivo de proteção dos direitos humanos, que se baseia na existência de um órgão de investigação e conciliação (Comissão Européia de Direitos Humanos, existente até novembro de 1998), além de um órgão político de aferimento de responsabilização (Conselho de Ministros do Conselho da Europa) e de um órgão judicial de responsabilização dos Estados (a Corte Européia de Direitos Humanos) (2002, p. 186).
Muito semelhante se deu a estruturação do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, que teve como instrumento basilar a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e constituiu-se com a atribuição de funções extras à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a instituição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão consultivo e jurisdicional (DONNELLY, 2003, p. 141-143).
Em paralelo ao que ocorreu após a Declaração Universal, o estabelecimento da Convenção Americana deu ensejo a uma série de outros instrumentos internacionais complementares e específicos que reforçaram o arcabouço jurídico do sistema interamericano, a exemplo do Protocolo Adicional à Convenção Americana, que tratou de direitos sociais, econômicos e culturais, previstos naquela Convenção apenas de forma genérica (HANASHIRO, p. 31-35).
À Comissão e à Corte de Direitos Humanos atribuiu-se a função de resguardar, com procedimentos distintos, porém integrados, direitos humanos juridicamente fundados nos diversos instrumentos voltados à sua defesa, atuando exclusivamente em uma região que apresenta um duplo desafio: "romper em definitivo com o legado da cultura autoritária-ditatorial e consolidar o regime democrático, com o pleno respeito aos direitos humanos, amplamente considerados - direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais" (PIOVESAN, 2010, p. 80).
O Brasil, ainda influenciado pelas reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais e pela cultura da violência e impunidade, foi um dos últimos Estados a reconhecer a competência jurisdicional da Corte Interamericana, o que só ocorreu em dezembro de 1998 (PIOVESAN, 2011, p. 143).
O sistema africano, por sua vez, ostenta desafio diverso.
Desenvolvido com base na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1981, surgiu com forte ênfase nas temáticas das distinções regionais, dos valores culturais, da erradicação do colonialismo e do relacionamento do indivíduo e de grupos de indivíduos com o Estado. Volta-se, particularmente, à situação econômica e de subdesenvolvimento em que se encontra parte majoritária dos países africanos e à batalha pela autodeterminação (SOUSA, 2010, p. 162-163).
Trata-se do mais recente e incipiente sistema regional, que inicialmente contava apenas com a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, órgão de promoção aos direitos humanos, com funções de mediação e conciliação. Um órgão com o poder de adotar decisões juridicamente vinculantes, a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, foi eventualmente constituído após o reconhecimento que a proteção de direitos humanos carecia de maior legalismo, mas este ainda enfrenta problemas com a aceitação da jurisdição pelos Estados e com uma atuação independente e íntegra, bem como com a escassez de recursos financeiros (PIOVESAN, 2011, p. 161-175).
Dessa forma, afere-se que as diferenças entre os sistemas regionais são mais de ordem cultural do que propriamente jurídicas, e visam um objetivo comum: a salvaguarda dos direitos humanos de quaisquer pessoas sujeitas à jurisdição de um Estado-parte, independentemente de sua nacionalidade. Qualquer cidadão do mundo que sofrer violações de direitos humanos no Brasil poderá, portanto, peticionar junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para reivindicar a responsabilização estatal (MAZZUOLI, 2011, p. 16).
Além dos prismas morais e políticos, os sistemas regionais possibilitaram, assim, a gradual consolidação de uma arquitetura protetiva internacional também no plano jurídico, com procedimentos e mecanismos direcionados à salvaguarda de um modelo protetivo mínimo concernente à dignidade humana (PIOVESAN, 2011, p. 177).
É sob estas premissas de internacionalização da defesa aos direitos humanos em uma sistemática global e regional focada na eficácia da aplicação desses direitos que se estudará o organismo de proteção internacional com competência sobre o Estado brasileiro, o sistema interamericano de direitos humanos, para que posteriormente possa se analisar se sua tutela tem se efetivado à luz das particularidades nacionais e dos instrumentos existentes neste sistema regional.
Os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, conforme anteriormente mencionado, foram criados para atuar de forma complementar ao sistema global, integralizando a estrutura do Direito Internacional dos Direitos Humanos e atendendo também às peculiaridades políticas, econômicas, culturais, sociais e morais de cada área.
É nesse contexto estabelecido de internacionalização e cooperação na proteção dos direitos humanos que se concretizam os fundamentos para a criação do sistema interamericano.
No que concerne aos países latino-americanos, principalmente, a proteção ao indivíduo independentemente do vínculo de nacionalidade se tornou essencial em decorrência da "baixa densidade de Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico" (PIOVESAN, 2011, p. 123).
Isso por que
ao longo dos regimes ditatoriais que assolaram os Estados na região, os mais básicos direitos e liberdades foram violados, sob as marcas das execuções sumárias; dos desaparecimentos forçados; das torturas sistemáticas; das prisões ilegais e arbitrárias; das perseguições políticas-ideológicas; e da abolição das liberdades de expressão, reunião e associação (PIOVESAN, 2011, p.123-124).
Porém, as origens de um sistema americano de verificação da responsabilidade do Estado por violação dos direitos humanos pode ser remetida ao chamado movimento pan-americanista, liderado pelos Estados Unidos e instaurado com a realização da Primeira Conferência Americana de Washington, de outubro de 1889 a abril de 1890, tendo como escopo incentivar uma maior interação entre os países do continente americano e, consequentemente, promover seu desenvolvimento (COELHO, 2008, p. 55).
Várias reuniões interestatais foram realizadas durante a primeira metade do século XX[19], buscando esta cooperação através de diplomacia e tratados multilaterais. Contudo, os resultados não foram significativos, pois os acordos firmados constituíam-se em meras declarações de vontade e de boa vizinhança. Uma das formas encontradas para garantir a eficácia desses acordos foi a aprovação da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2 de abril de 1948, que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1951 (COELHO, 2008, p. 55-56).
A partir de então, a já existente Associação das Nações Americanas ou União das Repúblicas Americanas passou-se a denominar-se Organização dos Estados Americanos, organismo regional da ONU (SOUSA, 2010, p. 137).
Tal documento, assinado durante a IX Conferência de Ministros das Relações Exteriores, em Bogotá, estabeleceu a base convencional e institucional a este ideário pan-americano. Possuía, contudo, disposições apenas em termos genéricos em relação aos direitos humanos, não definindo quais seriam esses direitos ou qualquer mecanismo para promovê-los ou protegê-los (HANASHIRO, 2001, p. 29).
Na mesma oportunidade também foi adotada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, seis meses antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que foi considerado a "interpretação autêntica dos dispositivos genéricos da Carta da OEA" (SOUSA, 2010, p. 136).
Diferente dos outros instrumentos de proteção aos direitos humanos, a Declaração Americana se destacou por não estabelecer apenas os direitos, mas também os deveres dos cidadãos perante a sociedade, a exemplo de, dentre outros, o dever de pagar impostos, de assistência e previdências sociais e de abster-se de atividades politicas em países estrangeiros. No entanto, à semelhança da Declaração Universal, não criou obrigações jurídicas contratuais, sendo apenas uma "declaração de princípios" sem entendimento pacífico acerca de sua força coercitiva total (HANASHIRO, 2001, p. 30)[20]-[21].
Estes instrumentos formaram a estrutura basilar de leis e instituições constituídas no âmbito dos países americanos para promover e proteger os direitos humanos, as quais acabaram por se desenvolver em um sistema com duas fontes legais distintas, um construído a partir da Carta da OEA e da referida Declaração Americana, abrangendo todos os países membros da Organização[22], e outro criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, vinculante apenas aos países que a ratificaram (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 256-258).
O primeiro sistema tem seu funcionamento através de órgãos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Conselho Interamericano para o Desenvolvimento Integral, a Assembleia Geral e o Conselho Permanente da OEA (SOUSA, 2010, p. 138).
A Assembleia Geral se reúne uma vez por ano em sessão regular e em quantas vezes em sessões especiais forem necessárias, sendo o órgão supremo de decisões políticas no sistema da OEA (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 257). Nessa condição, também se apresenta como órgão final encarregado da responsabilização internacional do Estado em face do descumprimento dos direitos fundamentais da Carta da OEA e da Declaração Americana (SOUSA, 2010, p. 139).
Para isto depende da atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão que atua nos dois sistemas e tem atribuições muito semelhantes em ambos, podendo formular recomendações aos governos em prol da implementação dos direitos humanos, elaborar estudos e relatórios, solicitar informações e realizar investigações in loco nos Estados (COELHO, 2008, p. 62-63).
Tal sistema da Carta da OEA, no entanto, tem aplicação mais geral e política, além de menos estruturada, que aquele instituído pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
É neste último que esse estudo se concentrará, pois nele se destaca a atribuição jurisdicional do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e, consequentemente, sua maior efetividade, muito embora se aplique somente aos Estados signatários da Convenção.
Para tanto, expor-se-á o contexto, as disposições e a estrutura da Convenção Americana de Direitos Humanos, analisando a atuação da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos e da Corte Interamericana conforme este documento.
Os países membros do segundo sistema de responsabilização dos Estados americanos violadores dos direitos humanos, estruturado pelas normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, são, sem exceções, membros do sistema fundamentado nas disposições da Carta da OEA e da Declaração Americana (ANNONI, 2009, p. 88).
Diferenciam-se por a eles se aplicarem os instrumentos e instituições criados pela Convenção, além de, subsidiariamente, todo o regramento geral do chamado sistema da OEA.
Tal sobreposição e interação, por vezes, dificultam a determinação do fim de um sistema e o início de outro. Em certos casos, "os mecanismos legais e normas de ambos os sistemas se aplicam a diferentes aspectos de uma mesma situação envolvendo direitos humanos[23]” (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 258).
A Convenção Americana de Direitos Humanos, no entanto, desenvolveu base mais completa, específica e complexa para a proteção dos direitos humanos nos países americanos[24].
Precipuamente, destaca-se que a decisão no sentido de preparar uma Convenção no âmbito dos Estados americanos se deu na II Conferência Extraordinária Interamericana, em 1965, no Rio de Janeiro, mediante a Resolução XXIX (SOUSA, 2010, p. 141-142). Para tanto,
[...] a Conferência também pediu que fossem levadas em consideração as opiniões da Comissão Interamericana e os dois projetos de Convenção que haviam sido apresentados na Conferência, um elaborado pelo governo do Chile e outro pelo governo do Uruguai.
Os trabalhos para a elaboração do projeto revisado estenderam-se até 1968, quando o Conselho da Organização encomendou a redação de um anteprojeto de convenção. (HANASHIRO, 2001, p. 31).
Com tal documento, o momento planejado para a discussão da matéria seria o ano de 1968, declarado pela Assembleia Geral da ONU como o "Ano Internacional dos Direitos Humanos", mas tal pretensão foi adiada pela existência de regimes militares e democracias pouco consolidadas nos países membros da OEA (HANASHIRO, 2001, p. 31).
A Convenção Americana de Direitos Humanos foi aberta para assinaturas apenas em 20 de novembro de 1969, em uma conferência diplomática realizada em São José, na Costa Rica. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, no sistema europeu, a ratificação da Convenção não foi requerida dos Estados membros da OEA, muito embora a ratificação universal tenha sido apontada, recentemente, como uma prioridade política no sistema interamericano (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 279).
Como resultado, nem todos os Estados-partes da OEA ratificaram a Convenção Americana[25] e muito deles, como os de origem anglo-saxã e a maioria dos países do Caribe, não demonstram qualquer interesse em fazê-lo. Tornou-se comum, portanto, a visão da Convenção Americana como um instrumento mais latino-americano do que propriamente interamericano (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 19).
Também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção só entrou em vigor em 18 de julho de 1978, com o depósito da ratificação pelo décimo primeiro Estado americano, Granada (SOUSA, 2010, p. 142).
Em razão das particularidades da região, a Convenção se concentrou em direitos de primeira geração, relativos, dentre outros, à garantia da liberdade em seus mais diversos aspectos, o direito à vida, à privacidade, de participação no governo e à igualdade (ANNONI, 2009, p. 88-89). Isso porque, como já mencionado, especialmente nos países latino-americanos, as circunstâncias políticas impunham um regime de restrição da liberdade de expressão em governos ditatoriais marcados pela prática de tortura, desaparecimentos forçados e total inobservância do processo legal que resultavam em sistemáticas execuções sumárias e prisões arbitrárias.
Olaya Hanashiro expõe que
A Convenção Americana é responsável pela base jurídica do desenho institucional elaborado para a proteção dos direitos humanos na região e destaca-se por procurar proteger um amplo leque de direitos. Mais extensa que a maioria dos instrumentos internacionais sobre direitos humanos, a CADH é considerada a mais ambiciosa das convenções existentes sobre o tema, tendo sido chamada, até mesmo, de irrealista. Algumas de suas cláusulas são tão avançadas que se questiona se há algum país capaz de cumpri-las completamente (2001, p. 32).
É assegurado e reconhecido um rol de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o que também ocorre com a Convenção Europeia de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2011, p. 126). Tais direitos somam mais de duas dúzias de categorias extensas de garantias, supridas ainda por uma ampla cláusula de não discriminação e pela obrigação dos Estados-membros de ajustarem sua legislação doméstica, bem como fazê-la efetiva, com vista à salvaguarda dos direitos consagrados na Convenção (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 282).
Assim, deve ser afastada qualquer norma e prática que viole tais garantias ou embarace o exercício dos direitos previstos na Convenção, bem como devem ser desenvolvidas novas regras e práticas que garantam a efetiva observância destes direitos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 282).
Não se trata, portanto, apenas de uma declaração de direitos, pois, além de listá-los, busca-se sua proteção judicial, cabendo aos Estados que ratificaram o Protocolo de São José "possibilitar o uso desse recurso e garantir o cumprimento das decisões de seus órgãos" (HANASHIRO, 2001, p. 32).
Conclui-se que:
Os Estados-partes da Convenção têm uma obrigação não só de "respeitar" os direitos garantidos na Convenção, como também de "assegurar" seu exercício livre e pleno. Consequentemente, possuem deveres positivos e negativos, ou seja, têm a obrigação de não violar os direitos que a Convenção garante e deles é exigido que adotem qualquer medida que possa ser necessária e razoável de acordo com a circunstância para "assegurar" seu pleno gozo (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 283)[26].
O artigo 1° da Convenção, base para toda sua estrutura, determina que tais garantias devem ser reconhecidas em relação à qualquer pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição. Com este termo, afasta qualquer vínculo necessário com o instituto da nacionalidade, atendendo a um preceito nuclear do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Estão protegidos, portanto, tantos os nacionais dos Estados que ratificaram suas cláusulas como os estrangeiros e apátridas residentes ou não de um desses Estados (MAZZUOLI, 2011, p. 22).
O Pacto de São José, contudo, não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, apenas estabelecendo que os Estados alcancem, de forma progressiva, a completa realização destes direitos, pela adoção de medidas legislativas e outras que se mostrem apropriadas, conforme a disposição do seu artigo 26 (PIOVESAN, 2011, p. 126-127). Isso porque, apesar de no projeto de Convenção apresentado constarem tais direitos, houve grande resistência por parte dos Estados em ter de formular relatórios acerca destas matérias, motivo pela qual esta inclusão foi adiada (HANASHIRO, 2001, p. 33).
Posteriormente, esta lacuna foi suprida com a adoção do Protocolo Adicional à Convenção, pela Assembleia Geral da OEA, em São Salvador, no ano de 1988, relativo aos direitos sociais, econômicos e culturais. A avaliação do cumprimento destas garantias passou a se dar pelo procedimento de elaboração de relatórios periódicos encaminhados pelos países membros, submetidos à análise e discussão na OEA por meio do Conselho Interamericano Econômico e Social e pelo Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura (SOUSA, 2010, p. 143-144).
O artigo 27 da Convenção Americana preconiza, ainda, que os Estados poderão derrogar de suas obrigações em tempos de guerra, perigo público ou outra emergência que ameace sua independência ou segurança. A derrogação não é permitida, no entanto, no que tange a aplicação dos mais básicos direitos humanos que são garantidos pela Convenção[27] (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 283).
Trata-se de cláusula bem conhecida nos tratados de direitos humanos, que permite tal derrogação em situações de exceção. As obrigações, contudo, podem apenas ser suspensas, nesses casos, jamais interrompidas (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 197-198).
Dentre os sistemas regionais, apenas o africano não contem tal previsão, o que leva à incerteza naquela região quanto aos problemas de ordem prática desta ausência (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 197). Ademais, a lista de direitos não derrogáveis é maior do que a presente na Convenção Europeia e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 283).
Não pode um Estado suspender as obrigações previstas na Convenção, ainda que nos casos nela permitidos,
[...] se estiver obrigado em relação a outra norma internacional da mesma natureza ou se agir em violação de norma imperativa de Direito Internacional geral (jus cogens). Também fica impossibilitado a suspensão das garantias quando as disposições que a autorizam encerrarem discriminação fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 198).
Os diretos previstos no Protocolo de São Salvador, por sua vez, podem ser restritos por meio de leis promulgadas com o propósito de preservar o bem-estar geral na sociedade democrática apenas na medida em que estas determinações não sejam incompatíveis com o propósito e razões basilares destes direitos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 284).
Ressalta-se, ainda, o artigo 28, 1, da Convenção Americana, que tem aplicação a todos os Estados constituídos sob forma de Estado federado, a exemplo do Brasil. Chamado de cláusula federal ou territorial, estabelece que o Estado Federal tem a obrigação de aplicar diretamente o tratado no que concerne às matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial, além do dever de "adotar as medidas necessárias para que os seus Estados-membros também cumpram o tratado dentro da esfera de suas respectivas competências" (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 200-201).
Todavia, apesar de toda a apresentada estrutura de proteção aos direitos humanos, o Brasil ratificou o documento apenas no ano de 1992, muito após sua entrada em vigor, tendo sido então promulgada pelo Decreto 678, de 6 de novembro do mesmo ano. O Protocolo de São Salvador foi ratificado em 1999, ano em que entrou em vigor internacionalmente, tendo sido promulgado internamente pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro do mesmo ano (MAZZUOLI, 2011, p. 21-23).
Necessário destacar que, na hierarquia no direito pátrio interno, a partir do acréscimo do §3°, no art. 5° da Constituição Federal brasileira, em 2004, os tratados relacionados aos direitos humanos são equivalentes às emendas constitucionais quando aprovados com seu mesmo procedimento[28]. O Pacto de São José da Costa Rica, no entanto, promulgado em 1992, não poderia sustentar essa condição sem a observância do procedimento legal delineado pela Carta Maior.
Ao discutir a questão da impossibilidade da prisão civil na alienação fiduciária em garantia, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Recurso Extraordinário n° 466.343-SP, reconheceu à Convenção Americana de Direitos Humanos e aos tratados de direitos humanos em geral a condição de normas supralegais, superando as leis ordinárias, mas ainda abaixo, na hierarquia legal, das previsões constitucionais (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 19).
Contudo, para Luis Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzouli
De acordo com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos não há falar-se em qualquer prevalência de uma norma interna - inclusive a Constituição do Estado - sobre uma norma internacional de proteção, seja esta última proveniente do sistema global ou de algum dos sistemas regionais. As conquistas já implementadas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos nesse sentido não retrocedem em face de qualquer posicionamento doutrinário ou jurisprudencial em contrário, uma vez que até mesmo a Constituição de um dado Estado é considerada um simples fato ante o sistema internacional de proteção.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em várias ocasiões, já se expressou nesse sentido. No caso A Última Tentação de Cristo Vs. Chile, entendeu a Corte que a responsabilidade internacional de um Estado pode decorrer de atos ou omissões de qualquer um dos poderes ou órgãos, independentemente de sua hierarquia, mesmo que o fato violador provenha de uma norma constitucional (2011, p. 20).
Por fim, não se pode olvidar o fato de que este sistema interamericano instituído pela Convenção Americana, se consolidou, ainda, pela ampliação de seu corpo normativo. Destaca-se, nesse sentido, a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, aprovada em 1985, um segundo Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, tratando da abolição à pena de morte, de 1990, duas Convenções aprovadas na Assembleia Geral da OEA em Belém do Pará em junho de 1994 (a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que prevê a possibilidade do envio de petições que contenham denúncias, e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, que consagra a responsabilidade individual por esse fato) e, por fim, em 1999, na Guatemala, a adoção da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência (SOUSA, 2010, p. 144-145).
A plena implementação e monitoramento do sistema, no entanto, assim como sua real eficácia, se dá pela atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos que perpetram sua atuação desde a esfera política à jurisdicional, garantindo a maior abrangência à salvaguarda dos direitos humanos. Destarte, estas atividades e procedimentos devem ser conhecidos para que se compreenda a aplicação dos direitos protegidos pelo sistema interamericano.
A Comissão Interamericana de direitos humanos se constitui, dentro do sistema interamericano, como um órgão de atuação peculiar, possuindo funções em ambos os sistemas de proteção vigentes na região.
Com efeito, a competência da Comissão Interamericana alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana e, ainda, os Estados-membros da OEA, em relação à defesa dos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948 (PIOVESAN, 2012, p. 327).
Combinando as funções outorgadas pelos dois documentos, a Comissão possui o objetivo principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos, lhe sendo atribuída ainda função consultiva relativa a esta matéria, por meio da emissão de pareceres (SOUSA, 2010, p. 147).
Foi criada pela Resolução VII da quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, em 1959, em Santiago do Chile, iniciando seu funcionamento apenas no ano seguinte, conforme estabelecido pelo seu Estatuto, primeiramente direcionada apenas à promoção dos direitos estabelecidos na Carta da OEA e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (MAZZOULI, 2011, p. 24).
As limitadas e pouco ativas funções iniciais da Comissão, que incluíam o estímulo à consciência dos direitos humanos, preparação de relatórios, solicitação de informações e consulta, foram gradativamente alteradas mediante Resoluções posteriores que estabeleceram os relatórios anuais e o sistema de petições individuais e, mais significativamente, com o Protocolo de Buenos Aires, em 1967, o qual permitiu que a Comissão fosse legitimamente institucionalizada e adquirisse a condição de órgão da OEA. Tais alterações foram importantes para criar base legal menos frágil do que a Resolução inicial e para fortificar sua natureza, passando a Comissão de órgão de promoção internacional para um órgão de efetiva proteção dos direitos humanos (HANASHIRO, 2001, p. 35-36).
Com a elaboração da Convenção Americana de Direitos Humanos, passou a ser considerada também "órgão internacional de investigação, conciliação e persecução em juízo de alegadas violações aos direitos humanos protegidos também no sistema da Convenção" (ANNONI, 2009, p. 92).
A Comissão, que até então funcionava apenas como órgão da OEA, passa a ter função ambivalente, portanto, e agir com mais efetividade, atuando também como órgão da Convenção Americana e parte da sistemática de proteção dos direitos elencados neste documento (MAZZUOLI, 2011, p. 21-24).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu funcionamento atual, tem sede na cidade de Washington, nos Estados Unidos, reunindo-se em períodos ordinários e extraordinários de sessões. Pode, no entanto, se reunir em qualquer Estado-membro da OEA, se tanto for aprovado pela maioria absoluta de seus integrantes e mediante a anuência do país de acolhida (COELHO, 2008, p. 64).
Em relação à sua composição, é integrada por sete membros, eleitos pelos Estados-membros da OEA, em sua Assembleia Geral. Não representam os respectivos países de origem, sendo eleitos a título pessoal e operando em conjunto e em nome de todos os membros da Organização. Os candidatos devem ser indivíduos de alta autoridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos, conforme o artigo 34 do Pacto de São José da Costa Rica e, quando eleitos, exercerão mandato de quatro anos, sendo possível uma reeleição (SOUSA, 2010, p. 146-147).
Cada governo pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado-membro da OEA, sendo que, no caso de ser proposta uma lista com três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de um país distinto do país proponente (ANNONI, 2009, p. 94).
Constituída a Comissão, cabe a seus membros realizar as funções determinadas tanto pela Convenção Americana, quanto pelo seu Estatuto, adotado na oportunidade em que se deu início ao seu funcionamento, bem como por seu Regulamento, elaborado e aprovado pela própria Comissão em 1980 e já diversas vezes modificado para aprimorar sua efetivação (HANASHIRO, 2001, p. 36).
Dentre tais funções destaca-se, inicialmente, que a Comissão possui uma já citada atribuição consultiva. Por intermédio da Secretaria Geral da OEA, a Comissão atende às solicitações de pareceres dos Estados-membros da OEA relacionados à matéria de direitos humanos, tanto aqueles protegidos na Declaração Americana quanto no Pacto de São José da Costa Rica (COELHO, 2008, p. 66).
Na seara das atividades concernentes à promoção dos direitos humanos, importa mencionar que a Comissão Interamericana auxiliou na elaboração de instrumentos de direitos humanos da OEA, incluindo a própria Convenção Americana de Direitos Humanos, e é regularmente consultada pelo Conselho Permanente da OEA e por sua Assembleia Geral em questões envolvendo direitos humanos, além de patrocinar conferências e publicar informativos acerca do assunto (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 268-269).
Uma de suas principais competências, no entanto, é sem dúvidas a de examinar as comunicações relacionadas às violações de direitos humanos feitas por indivíduos ou grupos de indivíduos, ou ainda de entidades não governamentais (ONGs) legalmente reconhecidas em um ou mais Estados-membros da OEA, conforme o artigo 44 da Convenção Americana (MAZZOULI, 2011, p. 25).
Por meio deste instrumento, a Comissão pode ser acionada contra qualquer governo dos Estados que assinaram a Convenção, ou mesmo qualquer Estado integrante da OEA que não a ratificou, aplicando-se nesse último caso as determinações da Declaração Americana. Tal faculdade da Comissão, no entanto, foi alvo de discussões nas atas e documentos das conferências sobre direitos humanos (HASHIRO, 2001, p. 36).
A preocupação maior dos Estados se referia ao poder de Comissão de receber petições de um Estado contra outro. Chegou-se a defender que a competência da Comissão fosse facultativa, possibilidade que foi rechaçada sob a garantia de que este órgão mantivesse caráter não-judicial, com decisões com natureza de recomendações, não sancionatórias[29] (HANASHIRO, 2001, p. 37).
Ao se tornar parte da Convenção Americana, o Estado aceita, automática e obrigatoriamente, portanto, a competência da Comissão para examinar essas comunicações, sem que seja necessária qualquer elaboração de declaração expressa ou específica para tal fim (PIOVESAN, 2012, p. 329).
O problema do envolvimento de um país no governo de outro Estado foi também amenizado com a possibilidade do acesso direito dos indivíduos (HANASHIRO, 2001, p. 36-37). Ademais, as reclamações entre Estados só serão possíveis se os dois Estados, além de terem ratificado a Convenção, tenham também reconhecido essa jurisdição interestatal da Comissão[30] (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 287).
A petição individual que comunica violação de direitos humanos deve preencher a determinados requisitos de admissibilidade dispostos no artigo 46 da Convenção, quais sejam: o prévio esgotamento dos recursos internos[31]; a inexistência de litispendência internacional sobre a mesma questão; a ausência do curso do prazo de seis meses, contados a partir da data da notificação do presumido prejudicado em seus direitos acerca da decisão interna definitiva sobre os fatos; a não configuração de coisa julgada internacional e o atendimento a requisitos mínimos, como a qualificação pessoal do peticionário, a assinatura da pessoa ou do representante legal da entidade (SOUSA, 2010, p. 149-150).
O juízo de admissibilidade inicial é realizado pela Secretaria da Comissão. Em caso de dúvida, a petição é enviada para sua admissibilidade ser analisada pela própria Comissão. Importante ressaltar que os requisitos de esgotamento dos recursos internos e o referido prazo decadencial de seis meses poderão ser desconsiderados, conforme o artigo 46, 2, da Convenção, se não existir na legislação local do Estado o devido processo legal para a proteção dos direitos que foram alegadamente violados, se não se houver permitido ao presumido prejudicado o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los ou, ainda, se houver demora injustificada na decisão sobre estes recursos jurisdicionais (COELHO, 2008, p. 75-76).
Reconhecida a admissibilidade, a Comissão solicitará informações ao governo do Estado violador, que deverá enviá-las em um prazo predeterminado, fixado pela Comissão em atenção às circunstâncias de cada caso, mas sempre em observância da celeridade necessária (ANNONI, 2009, p. 94-95).
Recebidas as informações do governo, ou transcorrido o prazo determinado sem que as tenha recebido, a Comissão verifica se de fato existem, ou permanecem, os motivos da petição ou comunicação, arquivando o expediente se não persistir o objeto do procedimento. Conquanto, se não for o caso, a Comissão realizará exame mais acurado da matéria, com o conhecimento das partes, e, se for necessária, uma investigação dos fatos (PIOVESAN, 2012, p. 331-332).
Tais investigações podem incluir visitas in loco ou audiências em que o governo e os peticionários participarão. Em todo caso, de acordo com o artigo 48, 1, da Convenção Americana, a Comissão deve se colocar à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos ali reconhecidos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 290).
Segundo o artigo 49, se alcançada uma solução amistosa, a Comissão irá redigir um relatório que será encaminhado ao peticionário e aos Estados-parte e posteriormente será transmitido ao Secretário-Geral da OEA para publicação. Tal relatório deverá conter breve exposição dos fatos e da solução obtida (MAZZOULI, 2011, p. 28).
Outrossim, se a solução pacífica não for atingida, a Comissão também elaborará relatório, este dentro do prazo de 180 dias, descrevendo os fatos e as conclusões acerca do caso. Neste caso,
Se o documento não refletir a opinião unânime dos integrantes da Comissão, qualquer deles poderá redigir um voto em separado que será anexado em relatório. Eventuais exposições verbais e escritas que tenham sido apresentadas durante a tentativa de solução amistosa também serão anexadas. A seguir, a Comissão encaminhará o documento aos Estados-partes da relação jurídica podendo formular proposições e recomendações. Destaque-se que aos Estados não é facultado publicar o relatório (COELHO, 2008, p. 77-78).
Importa ressaltar que este primeiro relatório já inclui a deliberação pela violação ou não da Convenção Americana de Direitos Humanos. Caso a Comissão decida, nesta oportunidade, pela não violação aos direitos humanos não há recurso disponível ao demandante. À semelhança do sistema europeu de proteção aos direitos humanos, a decisão da Comissão Interamericana é definitiva (ANNONI, 2009, p. 96).
Denise Sousa, ao tratar desta fase do procedimento da Comissão, em que esta fornece decisão absoluta, menciona que
esse papel da Comissão, de atuar como intérprete final da Convenção, já recebeu críticas por parte da Corte Interamericana, que se considera a única intérprete definitiva da Convenção. Todavia, é necessário observar que a Comissão é um órgão com poderes para atuar com independência e imparcialidade, reconhecendo ou não a existência de violações de direitos humanos no cenário interamericano (SOUSA, 2010, p. 151).
A partir da remessa deste primeiro informe ou relatório aos Estados interessados, se em um prazo de três meses a questão não se encontrar solucionada ou submetida à Corte Interamericana, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros e sob a forma de segundo informe ou relatório, sua própria opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração (MAZZOULI, 2011, p. 29).
Embora o envio do caso para a Corte Interamericana fosse possível dentro destes três meses, no sistema da Convenção, esta medida era tomada pela Comissão de acordo com a análise de cada caso. A partir de novas regras regulamentares que entraram em vigor no ano de 2001, a Comissão passou a ter a obrigação de enviar todos os casos de não cumprimento das proposições ou recomendações para a Corte, a não ser que a própria Comissão decida de forma contrária pela maioria absoluta dos votos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 291).
A partir desta disposição, presente no artigo 44 do novo Regulamento da Comissão, nota-se que o sistema interamericano passa a reconhecer que a jurisdicialização é fundamental para dar efetividade às normas protetivas de seu corpo legislativo e, como já mencionado, para garantir a responsabilização dos Estados pelas violações aos direitos humanos. Nesse sentido, Flávia Piovesan explana que
o novo Regulamento introduz, assim, a justicialização dos sistema interamericano. Se, anteriormente, cabia à Comissão Interamericana, a partir de uma avaliação discricionária, sem parâmetros objetivos, submeter à apreciação da Corte Interamericana caso em que não se obteve solução amistosa, com o novo Regulamento, o encaminhamento à Corte se faz de forma direta e automática. O sistema ganha maior tônica de "juricidade", reduzindo a seletividade política, que, até então, era realizada pela Comissão Interamericana (PIOVESAN, 2012, p. 333).
A Comissão proferirá, se for o caso de elaboração de um segundo relatório, as recomendações cabíveis, e determinará um prazo para que o Estado tome providências a fim de alcançar uma solução para a violação dos direitos humanos perpetrada, de acordo com o artigo 51, 2, da Convenção Americana. Após esse prazo estabelecido, caberá à Comissão decidir se o Estado tomou ou não as medidas apropriadas e se procederá à publicação ou não do relatório. Todas estas decisões devem ser aprovadas pela maioria absoluta de seus membros (COELHO, 2008, p. 78).
Na hipótese de descumprimento deste segundo informe, a alternativa existente é o apelo à Assembleia Geral da OEA, já referido órgão de cunho político da Organização (ANNONI, 2010, p. 152). Necessário destacar que isto não impede a publicação do relatório do caso em documento separado. Em regra geral, contudo, a Assembleia Geral da OEA demonstra pouco interesse em agir em casos individuais (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 292).
Assim como é notável também no âmbito das Nações Unidas, esta instância politica no sistema interamericano tem obtidos resultados limitados, demonstrando ineficácia no desempenho de sua função. Rodrigo Coelho afirma que
geralmente, os avanços se devem ao constrangimento político e moral gerando perante a comunidade internacional por causa do desrespeito às regras convencionais previamente assumidas. O Estado que descumprir suas obrigações perderá, consequentemente, credibilidade. Essa condição contribui para a eficácia da execução da sentença, mas é deficiente e não garante a segurança e a estabilidade jurídica necessárias ao bom funcionamento do sistema (2008, p.85-86).
Percebe-se, portanto, que um dos avanços determinantes do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a possibilidade do indivíduo buscar a responsabilização do Estado por violação de seus direitos, ainda que o violador seja seu país de nacionalidade, resta prejudicado no sistema interamericano pelo viés finalisticamente político da estruturação da Comissão, único órgão, como veremos, a que tem acesso direto.
Releva ainda a problemática da efetividade destas decisões da Comissão o fato de que possuem natureza quase-judiciais, de efeito legal não formalmente vinculativo, diferente das decisões da Corte Interamericana, ainda que cumpri-las seja uma determinação legal expressamente determinada no artigo 51 da Convenção Americana de Direitos Humanos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 293).
Destaca-se que coube à Comissão de Direitos Humanos papel mais próximo na proteção ao indivíduo, sendo o órgão responsável, como citado, por receber petições diretamente das vítimas nas violações aos direitos humanos, dentre outras funções de cunho não jurisdicional delineadas.
A estruturação de um sistema regional americano que atendesse aos fundamentos do Direito Internacional de Direitos Humanos exigiria, então, que as denúncias e queixas levadas à Comissão por indivíduos, grupo de indivíduos ou organizações não governamentais, devidamente comprovadas, pudessem ser em seu âmbito resolvidas com a participação do peticionário. Atrelada à atuação política e decisões não executáveis, a forma de responsabilização efetiva do Estado acaba por se dar quando a Comissão leva o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, este sim órgão capaz de realizar julgamentos e decisões com força vinculante, propensas a serem cumpridas e passíveis de serem exigidas[32].
Importante conhecer, portanto, a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como suas atribuições previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos, para que se possa compreender o total alcance dos instrumentos do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e a produção de seus efeitos.
Assim como o processo de criação da Comissão Interamericana, a construção de um tribunal internacional americano foi marcada por adiamentos da discussão acerca de sua formação. Leciona Olaya Hanashiro que
a idéia de se estabelecer uma corte de justiça na região era antiga. Em 1923, durante a V Conferência Pan-americana, a delegação da Costa Rica propôs, sem êxito, um plano para o estabelecimento de tal Corte. Durante a IX Conferência também se propôs a criação de um tribunal internacional de direitos humanos, proposição feita pela delegação do Brasil que sustentava que os direitos proclamados deveriam ser garantidos por meio de um órgão jurídico competente. Os Estados Unidos opuseram-se terminantemente, alegando que na ausência de um tratado jurídico seria prematura a criação de uma Corte (2001, p. 38)
Apenas com a formulação da Convenção America de Direitos Humanos é que foi prevista, em sua segunda parte, a Corte Interamericana de Direitos Humanos como órgão jurisdicional de proteção a estes direitos (HANASHIRO, 2001, p. 33-39). Em 3 de setembro de 1979, a Corte se instalou em sua sede permanente, em São José da Costa Rica, a convite do governo deste país, tendo sido seu Estatuto e seu primeiro Regulamento aprovados na Assembleia Geral da OEA no mesmo ano, em La Paz[33] (SOUSA, 2010, p. 153).
Não foi constituída, todavia, como órgão da OEA, mas como instituição jurídica autônoma, cujas atividades são empenhadas com independência (COELHO, 2008, p. 67)[34].
A votação para a determinação de seus membros é secreta e, à semelhança da eleição para formação da Comissão Interamericana, é realizada em Assembleia Geral da OEA, por aprovação da maioria, a partir de nomes indicados pelos Estados, sendo os candidatos de alta autoridade moral e de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, com a condição, ainda, de que possam exercer as mais elevadas funções judiciais de acordo com a lei de seu Estado natal ou do Estado que houver o indicado (COELHO, 2008, p. 68). A Corte também é formada por sete juízes nacionais dos Estados-membros da OEA, mas estes eleitos a título pessoal apenas pelos Estados-partes da Convenção, sobre os quais possui jurisdição, por um período de seis anos (ANNONI, 2009, p. 103).
A Corte Interamericana não possui a amplitude da competência da Comissão, sendo sua criação estabelecida na Convenção Americana e suas funções exercidas, geralmente, apenas em relação aos Estados-partes desta.
Sua jurisdição, que se refere à competência contenciosa da Corte, é limitada, ainda, pela necessidade de que o Estado a tenha aceitado como vinculante ipso facto ou em acordos especiais elaborados para casos particulares. A vinculação para todos os casos se dá através de uma declaração específica para este efeito (PASQUALUCCI, 2003, p. 11). Esta declaração pode ainda ser condicionada à reciprocidade e direcionada a períodos determinados (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 296).
Portanto, um Estado-parte não aceita a jurisdição contenciosa da Corte meramente por ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos[35], devendo ainda realizar a declaração geral, referida no artigo 62, 1 e 2, da Convenção, ou o acordo especial, que é mencionado no mesmo artigo, em seu parágrafo 2[36] (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 296).
O Estado brasileiro reconheceu a competência jurisdicional contenciosa da Corte Interamericana em 3 dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo 89, para todos os fatos ocorridos a partir deste reconhecimento (PIOVESAN, 2012, p. 341)[37].
A Corte compreende, no entanto, duas atribuições. Além da competência para a resolução de contendas, mais restrita, como vimos, destaca-se a atribuição consultiva, com o escopo de interpretar a Convenção e outros tratados referentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Trata-se de uma função "preventiva, de persuasão e colaboração" (HANASHIRO, 2001, p. 39).
Uma opinião consultiva da Corte Interamericana é uma impositiva, mas não vinculante, resolução para um impasse ou questão. Aqui os Estados não são partes se confrontando e defendendo-se de alegações formais, bem como a Corte não possui a autoridade para ordenar sanções judiciais ou impor obrigações para os Estados que as descumprirem. O objetivo de tal competência consultiva se volta, então, para auxiliar os Estados americanos em cumprir suas obrigações de direitos humanos e assistir os diferentes órgãos do sistema interamericano a executar suas funções determinadas[38], por meio do esclarecimento do objeto, propósito e significado das normas de direitos humanos, em interpretações judiciais da lei ou medida em questão (PASQUALUCCI, 2003, p. 29-33).
Por determinação do artigo 64 da Convenção Americana, qualquer Estado-membro da OEA, e não somente aqueles que ratificaram a Convenção Americana, podem requerer uma opinião consultiva à Corte Interamericana. Da mesma forma, a competência consultiva não é limitada à interpretação da Convenção, se estendendo a qualquer outro tratado aplicável à proteção dos direitos humanos nas Américas. As opiniões podem se dar, inclusive, acerca da compatibilidade da lei doméstica, ou mesmo projetos de lei, com a Convenção Americana ou tais tratados (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 306-307).
Quanto ao efeito legal das opiniões consultivas, como já ressaltado, é aceito seu valor como instituto judicial apto a interpretar e aplicar a Convenção Americana e demais instrumentos do corpo legislativo interamericano de proteção aos direitos humanos, mas não são reconhecidas como legalmente vinculantes. Contudo, entende-se que, se o Estado se engaja em atividades determinadas pela Corte, em opinião consultiva, como incompatíveis com a Convenção, estará ciente que sua conduta viola suas obrigações internacionais, o que debilita sua legitimidade de qualquer argumento legal em conflito com a declaração que a Corte proferiu[39] (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 309-310).
Essa atribuição acaba, no entanto, por sobrecarregar a Corte Interamericana, acarretando na preocupação deste órgão com o comprometimento de sua jurisdição contenciosa. Para que se isto seja evitado, ao receber uma solicitação de opinião consultiva, a Corte tem buscado verificar se, na verdade, não se trata de um caso contencioso encoberto (HANASHIRO, 2001, p. 39).
Tais casos contenciosos, por sua vez, além das limitações já mencionadas, também estão restritos quanto à possibilidade de legitimação, sendo submetidos exclusivamente pela Comissão Interamericana e os Estados-partes, excluídos, nessa fase, o indivíduo ou as ONGs voltadas à proteção dos direitos humanos. As vítimas, seus parentes ou representantes podem, no entanto, submeter de forma autônoma seus argumentos, arrazoados e provas perante a Corte, de acordo com o novo Regulamento aprovado em 2001 (PIOVESAN, 2012, p. 339).
Ainda que tenha sido o caso submetido por um Estado e não originado no âmbito da Comissão Interamericana, esta atuará em todos os procedimentos perante a Corte, de forma similar a um Ministério Público do sistema interamericano, agindo como protetora da ordem legal estabelecida pela Convenção. A função da Comissão será, em suma, de promover a integridade legal e institucional do sistema da Convenção Americana (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 293-295).
Lembra-se que a Comissão, após o não-acatamento pelo Estado requerido de suas conclusões no primeiro relatório, poderá acionar a Corte Interamericana apenas se este Estado reconheceu sua jurisdição contenciosa.
O trâmite contencioso terá início com o recebimento do caso de violação dos direitos humanos, cuja petição será protocolada na Secretaria da Corte. Uma vez instaurado o processo, não haverá possibilidade de paralisação, suspensão ou interrupção em decorrência da inércia das partes. O juízo de admissibilidade da petição será exercido pelo presidente da Corte Interamericana de acordo com os artigos 32 e 33 do Regulamento da Corte, que prevê identificação das partes e do objeto da demanda, listagem do nome de testemunhas, peritos, agentes ou delegados[40], os fatos, provas e fundamentos jurídicos que levaram ao pedido, bem com a exposição das respectivas conclusões (COELHO, 2008, p. 79-80).
Caso demandado, o Estado brasileiro "deverá atuar por meio do departamento internacional da Advocacia-Geral da União, com apoio operacional dos Ministérios das Relações Exteriores" (MAZZOULI, 2011, p. 35).
Antes do juízo de admissibilidade prévio, o Secretário da Corte fará a notificação de recebimento da demanda ao seu presidente e aos demais juízes, ao Estado requerido, à Comissão, se não for demandante, e ao denunciante ou a seus familiares e representantes, se for o caso. Também são informados os Estados signatários da Convenção Americana e o Secretário Geral da OEA (SOUSA, 2010, p. 105).
Uma vez que o caso tenha sido submetido à Corte, esta possui o poder de rever completamente as conclusões de fato e de direito da Comissão, inclusive os requisitos de admissibilidade como a exaustação dos recursos domésticos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 298).
Ao Estado demandado, após notificação, é concedido o prazo de dois meses para arguir exceções preliminares, a respeito das quais as partes têm trinta dias para pronunciaram-se por escrito. Se pertinentes as exceções, a Corte convocará uma audiência para delas tratar e decidirá no sentido de arquivamento ou do prosseguimento do feito (SOUSA, 2010, p. 155).
Tais exceções são objeções feitas pelo demandado, e podem tratar da inadmissibilidade do caso, da ausência de jurisdição do órgão, da não observância de requisitos técnicos ou processuais ou qualquer outra alegação que possua o condão de evitar qualquer discussão que envolva o mérito da questão levada à Corte (PASQUALUCCI, 2033. p. 83). Permite-se, contudo, de acordo com o artigo 42 do Regulamento da Corte, que se resolvam numa única sentença as exceções preliminares e o mérito do caso, em função do princípio da economia processual (MAZZOULI, 2011, p. 37).
Conforme o artigo 52 do Regulamento da Corte, a parte demandante tem o direito de desistir da demanda, sendo obrigatória a oitiva do Estado-réu, dos representantes da vítima ou de seus familiares se o Estado já houver sido citado. Caso contrário, se ainda não houver a notificação, a desistência é aceita de forma obrigatória (SOUSA, 2010, p. 155-156).
Após esta fase de exceções preliminares, o Estado acusado disporá de quatro meses, contados da notificação, para apresentar a contestação por escrito da demanda, esta com os mesmos requisitos exigidos para a denúncia. Em seguida à resposta, e antes da fase oral de contestações, as partes poderão solicitar do presidente da Corte que sejam trazidos ao processo outros documentos, ato para o qual o presidente poderá estabelecer prazos. Caberá a esta autoridade, ainda, determinar a data de início do procedimento oral de contestação e das audiências, após o término desta fase escrita, e será responsável pela condução dos debates e demais medidas cabíveis durante as reuniões (COELHO, 2008, p. 81).
No curso desta fase oral,
os juízes poderão indagar quaisquer pessoas que se apresentem à Corte. Já os delegados, agentes e representantes das vítimas ou de seus familiares poderão inquirir as testemunhas, os peritos ou outros indivíduos que a Corte resolva ouvir, de acordo com a orientação do Presidente. Este decidirá sobre a pertinência das perguntas, podendo até dispensar alguém de responder a um questionamento, salvo determinação em contrário da própria Corte (COELHO, 2008, p. 81).
Nessa fase probatória perante a Corte, a Comissão ou o Estado requerente, assim como o Estado requerido, têm a possibilidade de produzir provas e exercer todas as faculdades processuais do devido processo legal (ANNONI, 2009, p. 105). A Corte também possui a ampla faculdade de decretar provas, dirigir solicitações ou citar Estados, pessoas ou instituições que sejam necessárias para as diligências probatórias (HANASHIRO, 2001, p. 40).
Na análise de provas, Jo M. Pasqualucci estabelece a atuação ampla da Corte através da comparação dos dois sistemas legais existentes. Aduz:
Casos perante tribunais internacionais são geralmente julgados por juízes treinados em diferentes tradições legais. Os dois sistemas legais basilares são civil e commom law. [...] Na commom law, as partes são adversárias que comportam a iniciativa de apresentar evidências. A função do juiz é servir de árbitro sem interesses. [...] Na civil law, as funções do juiz são mais abrangentes. Os juízes assumem uma posição muito mais ativa nos processos e no exame das testemunhas. [...] A prática probatória no direito internacional faz paralelo mais próximo com a civil law no sentido em que é menos sobrecarregada de normas técnicas e restritivas, e os juízes determinam o peso a ser dado para as provas apresentadas (PASQUALUCCI, p. 181-182)[41].
Ademais, ressalta-se que a Corte poderá requisitar aos Estados que apliquem as sanções prescritas em seus ordenamentos jurídicos internos quando os respectivos nacionais forem convocados e deixaram de comparecer ou recusarem-se a depor sem justificativa legítima, ou ainda se desrespeitarem o juramento solene de acordo com o entendimento da Corte (COELHO, 2008, p. 83).
Após estes procedimentos probatórios, é proferida a sentença nos moldes do artigo 55 do Regulamento da Corte, devendo conter o nome do presidente, dos juízes que a tenham proferido, das partes e de seus representantes, dentre demais requisitos. Os julgamentos da Corte devem ser fundamentados, podendo haver votos separados ou dissidentes dos juízes e sendo possibilitado às partes solicitarem a interpretação da sentença (SOUSA, 2010, p. 156-157). "O pedido de interpretação será resolvido por meio de outra decisão, mas não modificará os efeitos da sentença nem suspenderá a sua execução" (COELHO, 2008, p. 84).
As deliberações serão tomadas por maioria de cinco juízes. Em caso de empate, o presidente terá o voto de desempate. A decisão será composta de relatório que versará sobre procedimentos adotados e fatos ocorridos, conclusões das partes, a fundamentação e deliberação final (COELHO, 2008, p. 83-84).
É possível, no âmbito da Corte Interamericana, a solução amistosa dos conflitos, com a condição que os direitos humanos sejam garantidos, podendo o caso ser reaberto com o descumprimento (HANASHIRO, 2001, p. 40). O acordo será submetido à Corte, que poderá homologá-lo ou não, dependendo das características do acordo e dos interesses envolvidos (SOUSA, 2010, p. 156).
A sentença de mérito da Corte, no entanto, é definitiva e inapelável. Se decidido pela ocorrência de violação aos direitos humanos, pode ser determinada a salvaguarda ao gozo dos direitos ou liberdade violados ao prejudicado ou prejudicados, que sejam reparadas as consequências de medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, e que seja paga uma indenização justa à parte lesada (HANASHIRO, 2001, p. 40).
O Estado, na análise de mérito pela Corte, poderá ser considerado responsável por atos que violem direitos humanos perpetrados por seus agentes, órgãos ou por qualquer exercício do poder público, por grupos não governamentais ou indivíduos agindo a seu comando, por agentes públicos agindo além de sua competência internamente determinada e, ainda, em razão da falha em investigar e punir violações realizadas, mesmo que por indivíduos que não estejam atuando a sua ordem. A Corte não tem considerado, no entanto, responsabilidade do Estado por violações dos direitos humanos cometidas por um movimento insurgente que não obteve sucesso em assumir o governo (PASQUALUCCI, 2003, p. 219-229).
A Corte Interamericana aplica de forma ampla a doutrina do iura novit curia em suas decisões, de acordo com a qual possui autoridade para conhecer de diferentes violações daquelas alegadas pelo demandante. Ademais, diferente a Corte Europeia de Direitos Humanos, a Corte Interamericana frequentemente conclui pela violação de vários direitos baseada nos mesmos fatos (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 299).
Em sequência ao procedimento contencioso da Corte, se na sentença não se houver decidido especificamente sobre reparação, fixando-a na própria sentença, haverá a fase de reparações, onde será aberta a oportunidade de conciliação onde devem ser ouvidas as vítimas e seus representantes, aos quais é facultado apresentar seus argumentos e provas (SOUSA, 2010, p. 160). Se a Corte for informada de que as partes no processo chegaram a um acordo em relação ao cumprimento da sentença de mérito, "verificará se o acordo se o acordo está em conformidade com a Convenção e disporá o que couber sobre a matéria" (MAZZOULI, 2011, p. 37).
No caso de fixação de indenização pecuniária, há a previsão na Convenção, em seu artigo 62, 2, da possibilidade da execução da parte da sentença que determinar esta indenização de acordo com os procedimentos internos de execução de sentença contra o Estado (ANNONI, 2009, p. 106). Este texto, no entanto, sugere que os Estados não são obrigados a estabelecer um mecanismo para a execução doméstica dos julgamentos da Corte, apenas permite que os faça (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 301).
No sistema interamericano, o Estado tem o dever de cumprir integralmente a sentença da Corte[42], e esta possui o efeito de coisa julgada entre as partes, vinculando-as em litígio e servindo de embasamento judicial e orientação interpretativa para casos semelhantes (ANNONI, 2010, p. 106). A Convenção Americana não determina, contudo, nenhum mecanismo específico para supervisionar a execução dos julgamentos da Corte (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 302).
Atualmente, a execução das sentenças da Corte Interamericana se deve à boa-fé e à lealdade processual dos Estados demandados, que não sempre adotam providências legislativas internas para garantir o cumprimento destas decisões, acarretando em insegurança jurídica para as vítimas que tiveram seus direitos reconhecidos em uma corte internacional (SOUSA, 2010, p. 162).
Caso o Estado infrator não cumpra por conta própria as determinações contidas em uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, deverá ser acionada, assim como no procedimento final do trâmite na Comissão Interamericana, a instância política, representada pela Assembleia Geral da OEA (COELHO, 2008, p. 85).
No entanto, a Assembleia Geral da OEA, apesar de destinatária final dos informes da Corte e da Comissão, função em que deve resgatar a promoção dos direitos humanos e a responsabilização dos Estados violadores de direitos humanos protegidos, não possui nenhum procedimento expresso de edição de sanção por violação desses direitos protegidos, como a expulsão do Estado da OEA, existente no sistema regional europeu[43]. Este órgão tem se restringido a aprovar tais informes sem adotar medidas específicas para o cumprimento das decisões (ANNONI, 2009, p. 108).
No caso específico do Brasil, o problema de execução das sentenças da Corte e a efetividade de suas decisões perpassa, inicialmente, por um óbice de hermenêutica constitucional. O artigo 105, I, alínea i, da Constituição Federal brasileira, introduzido na Emenda Constitucional 45 de 2004, estabelece que as sentenças estrangeiras devem ser homologadas pelo Superior Tribunal de Justiça. A homologação é condição de eficácia para a sentença proferida por tribunal estrangeiro no Brasil, de acordo com a disposição do artigo 483 do Código de Processo Civil atual.
Majoritariamente, no entanto, entende-se que a sentença proferida pela Corte Interamericana não é estrangeira, e sim internacional, pois não se trata de decisão de um tribunal afeto à soberania de outro Estado, sendo desnecessária sua homologação para que seja executada no país. Nesse sentido, Valerio Mazzouli destaca, diferenciando a natureza jurídica destes dois tipos de sentença, que
o direito internacional não se confunde com o chamado direito estrangeiro. Aquele diz respeito à regulamentação jurídica internacional, na maioria dos casos feita por normas internacionais. O direito internacional disciplina, pois, a atuação dos Estados, das Organizações Internacionais e também dos indivíduos no cenário internacional. Já o direito estrangeiro é aquele afeto à jurisdição de outro Estado que não o Brasil (MAZZOULI, 2011, p. 39).
Assim considerada, a sentença proferida pela Corte Interamericana teria eficácia imediata e poder coercitivo incondicionado à ratificação do Poder Judiciário interno. Esbarra-se, no entanto, mais uma vez, na questão da eficácia destas decisões, estritamente ligada ao seu efetivo cumprimento.
O governo brasileiro foi condenado, pela Corte Interamericana, no notável caso Damião Ximenes Lopes, em sentença de 4 de julho de 2006, relacionado a indivíduo que sofria de deficiência mental, o qual faleceu em centro de saúde que funcionava à base do Sistema Único de Saúde, no estado do Ceará. No caso, que foi o primeiro do sistema interamericano a julgar violação de direitos humanos de pessoa portadora de deficiência, ficou determinada, dentre outras, a obrigação do Estado brasileiro de investigar os responsáveis pela morte de Damião Ximenes, de realizar programas de capacitação para os profissionais de atendimento psiquiátrico e de pagar indenização por danos materiais e imateriais à família da vítima no prazo de um ano. Isso porque, durante a internação para tratamento psiquiátrico, a vítima sofreu uma série de torturas e maus-tratos por parte dos funcionários, delitos que não foram investigados e, consequentemente, não houve sanção aos responsáveis (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006).
O Estado brasileiro pagou de forma espontânea a parte indenizatória da sentença. Com efeito, este não costuma ser o grande problema em relação à implementação das decisões internacionais no sistema interamericano. O maior obstáculo encontra-se na dificuldade de executar internamente os deveres de investigar e punir os responsáveis pelas violações de direitos humanos, como foi estabelecido no caso (MAZZOULI, 2011, p. 43).
Embora esta não observância de parte das decisões da Corte possa ser considerada nova violação à Convenção Americana, pois o seu artigo 68, 1, dispõe sobre o compromisso ao cumprimento das decisões da Corte, a carência de instrumentos para sancionar e exigir o cumprimento das decisões torna inócua a abertura de outro caso contencioso.
No Brasil, de forma mais aparente, podemos visualizar e analisar a questão da eficácia ainda em outro tipo de decisões, presentes apenas no sistema interamericano, que são concernentes aos casos de extrema gravidade e urgência.
Essa espécie de decisão, mais comum em relação ao Estado brasileiro do que as sentenças em casos contenciosos, e sobre a qual passaremos a tratar, demonstram, em situações em que a aplicação dos preceitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos se faz mais necessária e imediata, que a ausência de instrumentos que otimizem a responsabilização estatal e os óbices políticos existentes reduzem consideravelmente a força e a possibilidade de expansão da defesa dos direitos humanos no país, tornando a adesão do Brasil ao sistema interamericano, por vezes, apenas conveniente posição política sem maiores efeitos internos.
Seja no âmbito da legislação doméstica, do Direito Internacional ou dos sistemas global e regionais criados para atender às necessidades de proteção universal dos direitos humanos, o devido processo legal deve ser observado em qualquer procedimento que resulte na responsabilização por atos danosos aos direitos de terceiros.
O processo estabelecido pelas normas do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, já acima delineado, busca, inevitavelmente, atender às exigências do devido processo legal, estabelecendo a oportunidade de participação das partes e a atuação da Comissão Interamericana como defensora da ordem legal, à semelhança do papel exercido pelo Ministério Público no direito interno brasileiro.
Existem situações, no entanto, em que a obediência ao procedimento usual, que culmina em uma sentença inapelável e de cumprimento obrigatório pelo Estado quando há responsabilização pela violação aos direitos humanos, se mostra ineficaz e inadequado para atender à urgência necessária e evitar uma violação grave aos direitos humanos.
O ordenamento jurídico brasileiro, na visão de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, em consideração aos casos em que um dano é previsível, permite a utilização de uma tutela preventiva que visa inibir esta lesão de um direito material, garantindo assim a efetividade da proteção ao bem jurídico ameaçado. Esta não se confunde com o conceito de tutela cautelar, a qual pressupõe a ameaça de dano à uma tutela principal que deve ser assegurada e que já foi ou será requerida em ação posterior. A tutela inibitória é satisfativa e preventiva e não assecuratória e instrumental como a tutela cautelar (2011, p. 40-45)[44].
Ademais, o Código de Processo Civil preconiza expressamente, em seu artigo 273, que o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, havendo fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação e a verossimilhança da alegação. Evidencia-se, nesse dispositivo, o instituto da tutela antecipatória ou antecipação de tutela. Também ao contrário da tutela cautelar, não se concede aqui a segurança, mas sim o próprio objeto da demanda de forma satisfativa, total ou parcialmente.
Igualmente, o instituto desenvolvido no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos com o escopo de atender situações de urgência e grave perigo de dano possui a natureza provisional e não meramente assecuratória de uma tutela principal.
Não se identifica totalmente, contudo, com os institutos referidos do ordenamento pátrio, ainda que possua características de ambos.
As medidas de urgência do sistema interamericano não se limitam a inibir uma ação agressiva ao direitos humanos, por vezes prescrevendo obrigações positivas para revertê-la e, ainda que também se submeta ao exame do perigo da demora em uma atuação efetiva e na verossimilhança das alegações, não se trata da prestação antecipada de um pedido em um processo principal, e sim de um comando dado de forma célere para evitar a violação grave dos direitos humanos, ou seja, uma prestação satisfativa independente de um processo de que é incidental ou onde se discutirá a tutela definitiva.
Sua função é excepcional, como único instituto de proteção do sistema interamericano de direitos humanos capaz de evitar um dano iminente e irreparável que de outra forma não poderia ser refreado, tendo em vista que esse tipo de ameaça é incompatível com o procedimento ordinário.
Evitar esta lesão torna-se mais relevante quando se trata da salvaguarda dos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, construída para proteger de forma integral os aspectos mais fundamentais à manutenção da própria condição humana.
A tutela de urgência do sistema interamericano existe, destarte, para atender aos princípios basilares da constituição do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dar-lhe efetividade, sendo seu cumprimento urgente e mandatório.
No Brasil, as medidas de urgência requeridas têm-se voltado, em sua maioria, à garantia do direito à vida e à integridade física dentre aqueles que se encontram privados da liberdade pelo Estado em razão de punição por conduta delituosa, como o caso da Casa de Detenção José Mário Alves, conhecida como "Penitenciária Urso Branco".
Destaca-se, ainda, dentre as situações que acarretaram medidas dos órgãos internacionais de proteção, o recente caso da usina hidrelétrica Belo Monte, a ser construída no Rio Xingu, no estado do Pará, resultando em permanente impacto ao meio ambiente e às comunidades indígenas locais.
Nestas situações, foi exigido do Brasil o adimplemento de determinações que objetivavam evitar violação previsível, grave e de consequência imediata aos direitos humanos e, em grande parte delas, o Estado brasileiro falhou em agir da maneira mais eficaz na aplicação das medidas, acarretando em prejuízo incalculável aos que careciam de proteção e em lesão permanente ao funcionamento de todo o sistema interamericano.
Previamente a uma análise das medidas adotadas pela Comissão e pela Corte Interamericana em nosso país e de sua eficácia, no entanto, faz-se mister expor o seu funcionamento, admissibilidade e procedimento, para que se apreenda seu alcance e efeitos.
As tutelas de urgência no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos consistem em ordens aos Estados-partes da Convenção para que adotem ações imediatas com o fim de evitar possível dano iminente e irreparável à pessoa, ou deixem de realizar atos que provocariam lesões irremediáveis aos direitos humanos (PASQUALUCCI, 2003, p. 293-294).
Pertinentes à própria função nuclear dos órgãos deste sistema, estas medidas atendem a uma necessidade de atuação célere e incisiva capaz de evitar as mais graves violações aos direitos humanos. É a única forma, portanto, de efetivação integral da proteção destes direitos universalmente.
Nesse sentido, Clara Herrera expõe que, muito embora a incorporação dos direitos humanos em instrumentos internacionais e domésticos seja uma das grandes conquistas da humanidade, há uma enorme distância entre o reconhecimento de certos direitos e seu efetivo gozo, levantando a questão do que pode ser feito para que esses direitos não se tornem retóricos e o que deveriam os sistemas internacionais de proteção realizar para evitar suas violações.
Para a autora,
o propósito das medidas de urgência é precisamente de preencher essa lacuna. Estas medidas são uma instituto cujo objetivo é garantir a eficácia prática dos direitos para que não sejam apenas retóricos. No fim, o que é mais significativo é a averiguação de que os direitos não só estão inclusos em um plano internacional e que os Estados são internacionalmente responsáveis no caso de violação, mas de que todos os indivíduos acreditam que esses direitos podem ser protegidos antes de serem afetados (HERRERA, 2010, p. 1)[45].
Como já mencionado, o caráter destas medidas não é apenas cautelar, mas essencialmente tutelar dos direitos ameaçados, e sua instituição e manutenção relacionam-se apenas com a existência e permanência de uma situação de extrema gravidade, urgência e necessidade de evitar danos irreparáveis. Qualquer outra circunstância relacionada à violação de direitos humanos se resolverá através do processo ordinário (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2008a, p. 4).
Duas espécies de tutela de urgência são previstas no sistema interamericano, uma no âmbito da Comissão Interamericana, emanando de suas amplas atribuições de proteção e promoção dos direitos humanos, e uma que provêm de ordem exarada pela Corte Interamericana, competência derivada expressamente das determinações da Convenção Americana de Direitos Humanos (GONZÁLEZ, 2010, p. 51-52).
As medidas adotadas pela Comissão Interamericana são referidas como medidas cautelares, diferenciando-as, assim, das chamadas medidas provisórias, oriundas da Corte.
Ainda que não previstas na Convenção Americana, ou mesmo no Estatuto da Comissão, as medidas cautelares têm fundamento em seu Regulamento, artigo 25, que autoriza a este órgão requisitar aos Estados que previnam dano irreparável à pessoa[46]. Tal procedimento pode ser realizado em qualquer caso de gravidade e urgência, e sempre que for necessário, de acordo com as informações disponíveis (PASQUALUCCI, 2003, p. 295-296).
Contudo, mesmo antes da institucionalização das medidas cautelares, que só veio a ocorrer em 1980, a prática de requerer providências de maneira urgente aos Estados em relação a certas violações, mormente no caso de desaparecimento forçados, já havia sido implementada pela Comissão nos casos em trâmite ou mesmo na ausência de procedimento junto ao órgão. Esta função pôde ser ainda ampliada a partir da redemocratização que se deu nos países americanos a partir dos anos noventa, quando se estendeu para situações de risco dos mais diversos direitos (GONZÁLEZ, 2010, p. 51-52).
A atribuição da Comissão Interamericana de conceder a tutela em situações de urgência também se encontra preconizada expressamente na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, em seu artigo 13[47], como proteção reconhecidamente necessária no passado recente das ditaduras militares americanas.
Conforme as regras aplicadas, é possível a adoção destas medidas por iniciativa própria da Comissão, e não somente à requerimento da parte. Quando o órgão não estiver em sessão, no entanto, o presidente da Comissão, ou o vice-presidente, se o primeiro não estiver disponível, deve consultar com os outros membros para requisitá-las. O presidente poderá ordenar a medida sem prévia consulta se as circunstâncias do caso tornarem essa exigência desrazoável (PASQUALUCCI, 2003, p. 296).
Assim como no procedimento usual, a Secretaria Executiva da Comissão realiza um análise precípua da admissibilidade da requisição de medida cautelar, e isto é tudo que é necessário para que a Comissão ordene que um Estado adote providências para evitar um dano irreparável a direitos humanos. Este procedimento sumário é corroborado pelo artigo 36, 3, do Regulamento da Comissão, o qual permite que casos sejam abertos e a consideração de admissibilidade diferida até o debate e a decisão sobre o mérito, em circunstâncias excepcionais (PASQUALUCCI, 2003, p. 297).
A tramitação das medidas cautelares carece de maiores formalidades, podendo provir de denúncias apresentadas por qualquer pessoa ou organização internacional à Comissão (GONZÁLEZ, 2010, p. 53). A requisição pode, no entanto, ser feita imediatamente ou, se não representar prejuízo, após o pedido de mais informações ao solicitante ou ao Estado a que se refere, como determina o artigo 25, 5, do Regulamento da Comissão.
O mesmo artigo 25, 6 e 7, prescreve que a pertinência da vigência da medida deverá ser avaliada periodicamente pela Comissão, e em qualquer momento o Estado poderá apresentar pedido devidamente fundamentado para que os efeitos da tutela sejam cessados, o que só será concedido após informações dos beneficiários ou seus representantes.
Para a outorga destas medidas o Regulamento prevê três hipóteses de uso: em caráter geral, para a prevenção de danos irreparáveis às pessoas quando os casos estão em trâmite na Comissão; para salvaguarda do objeto de um processo perante ao órgão ou na forma já mencionada, direcionadas para evitar danos irreparáveis em situações urgentes independentemente do sistema de casos, ou seja, em qualquer circunstância (GONZÁLEZ, 2010, p. 54).
Frequentemente, perante o sistema interamericano, as medidas cautelares tem sido utilizadas como uma tentativa inicial de prevenir uma violação aos direitos humanos. A Corte Interamericana, nestes casos, se utiliza de sua própria competência para adotar medida provisória apenas após a Comissão ter ordenado uma medida cautelar que se mostrou ineficaz, a exemplo do caso do presídio Urso Branco, no Brasil, onde cinco prisioneiros morreram após a requisição da medidas de urgência pela Comissão, acarretando na requisição de medidas provisórias (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002a, p. 2-3).
A real necessidade da outorga de uma medida cautelar anteriormente à concessão de uma medida provisória pela Corte Interamericana, no entanto, não é questão pacífica. Larissa Soares, em estudo acerca do assunto, destaca que o debate sobre a prioridade de uma medida sobre outra perpassa pela observação de que a força jurídica de uma decisão da Comissão e uma advinda da Corte não seria a mesma, uma vez que a Comissão é órgão político e a Corte possui atribuição jurisdicional e decorrente prerrogativa de decisões cogentes aos Estados (2008, p. 8).
Embora este parecesse ser o entendimento da Corte, que inicialmente exigia a preliminar ordenação de medida cautelar, passou-se a reconhecer que este pré-requisito não é obrigatório, nem mesmo dentre as normas regulamentares, e que por vezes ocasionava um procedimento desnecessariamente complicado para as medidas provisórias. Ao tratar da questão, Jo M. Pasqualucci assinala que a prática de utilizar medidas provisórias apenas após a requisição de tutela de urgência pela Comissão não constitui uma obrigação, mas possui o objetivo de estimular os Estados a consentirem com as medidas cautelares requisitadas, pois a observância destas ordens significa a diminuição da sobrecarga de casos para a Corte e permite ao Estado tomar uma atitude positiva para amenizar a situação antes que o caso seja exposto a um adicional exame por um órgão jurisdicional internacional (2003, p. 297-298).
A Corte Interamericana, em diversas ocasiões, tem reforçado a possibilidade e relevância da utilização das medidas cautelares, afirmando que, em cumprimento às obrigações contraídas em virtude da Convenção Americana de Direitos Humanos, os Estados devem implementar e adimplir as resoluções emitidas pelos seus órgãos de supervisão, ou seja, a Corte e também a Comissão (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2004, p. 10-11).
Para este órgão, qualquer decisão da Comissão Interamericana possui a força de recomendação, como estabelece a Convenção Americana, este termo mantendo o mesmo significado do normalmente utilizado pela sociedade internacional[48]. No entanto, a Corte também ressalta que, de acordo com o artigo 31, 1, da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados e o princípio da boa-fé, quando um Estado assina e ratifica um tratado internacional, especialmente um relativo aos direitos humanos, possui a obrigação de realizar todos os esforços para aplicar as recomendações de um órgão de proteção internacional como a Comissão (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1997, p. 30).
A própria Corte Interamericana, contudo, parece considerar que as medidas cautelares da Comissão, na atual forma do sistema interamericano, não possuem a mesma aptidão das medidas provisórias quando buscam evitar uma situação de extrema gravidade e urgência nos casos envolvendo direitos basilares como a vida, pressuposto de todos os demais.
É o que apresentou o juiz Cançado Trindade, em voto concordante[49], ao conceder medida provisória no caso do Complexo do Tatuapé[50], no Brasil. Nesta oportunidade, o juiz da Corte, além de criticar a demora da Comissão em declarar a admissibilidade da petição e em estabelecer as medidas cautelares, também repreendeu veementemente a insistência do órgão em dar seguimento as medidas, quando vinham sendo obviamente ineficazes e incapazes de refrear as violações. Para ele,
Em toda e qualquer circunstância, os imperativos de proteção devem primar sobre os aparentes zelos institucionais. Em situações de violência crônica como a que se depreende do presente caso das Crianças e Adolescentes Privados de Liberdade no Complexo do Tatuapé da FEBEM no Brasil, não vejo porque a CIDH tivesse insistido - como o tem feito em tantos outros casos - em desde o início testar prolongadamente suas próprias medidas cautelares, ao invés de submeter de imediato uma solicitação de medidas provisórias à Corte, tão logo se configurasse uma situação de extrema gravidade e urgência, capaz de causar danos irreparáveis a pessoas, como já ocorreu no presente caso (TRINDADE, 2005, p. 1).
Por fim, no que concerne os aspectos gerais das medidas cautelares, importa ressaltar que, assim como qualquer tutela de urgência no sistema interamericano, a adoção destas medidas não constitui pré-julgamento sobre a violação dos direitos protegidos pela Convenção e outros instrumentos aplicáveis, conforme expressamente determina o artigo 25, 9, do Regulamento da Comissão.
As medidas provisórias, por sua vez, são emitidas pela Corte Interamericana e encontram previsão no texto da Convenção Americana de Direitos Humanos. Seu artigo 63, 2, sedimenta o fundamento legal da medida. In verbis:
Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes. Se se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão.
Não há, nos demais sistemas de proteção do direitos humanos, global ou regional, medida idêntica à tutela de urgência da Corte Interamericana. No sistema global, referente às Nações Unidas, as medidas de urgência são previstas no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, de seu Comitê de Direitos Humanos e do Comitê contra a Tortura[51] (HERRERA, 2010, p. 2). A atribuição da Corte Europeia de ordenar medidas passíveis de evitar danos graves e irreparáveis os direitos humanos, da mesma forma, não provém de um documento internacional ratificado pelos Estados-membros, mas somente de previsão no artigo 39 do Regulamento da Corte (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 303).
A fixação destas medidas na Convenção Americana não permite, portanto, qualquer dúvida quanto a sua vinculação aos Estados-membros. A inclusão deste instrumento no diploma se deu de maneira a ampliar os efeitos das medidas provisórias e atender à especificidades dos casos de violação dos países americanos, uma região, em grande parte, assolada pela ausência de segurança jurídica e de limites ao autoritarismo estatal por décadas de ditadura militar em diversos países[52].
A partir desta determinação
o debate acerca dos poderes inerentes da Corte para ordenar medidas provisórias não é mais controverso, já que este poder é essencial para proteger direitos humanos. O objetivo e propósito da Convenção Americana é proteger os direitos dos indivíduos, e o resultado final de um processo internacional deve ser de relevância prática para a pessoa a que se refere. O Corte deve ter autoridade legal para ordenar medidas provisórias em qualquer caso em que haverá dano imediato e irreparável, ainda que depois da Corte estabelecer os direitos das partes no caso. Esse poder é necessário para o funcionamento eficaz do sistema interamericano de direitos humanos (PASQUALUCCI, 2003, p. 300)[53].
Em relação à legitimidade para a requisição de medidas provisórias, esta será definida pelo órgão do sistema interamericano que estiver analisando a situação no momento que surgir a ameaça de dano que justifique a tutela de urgência. Estando o caso sob consideração da Comissão Interamericana, apenas esta é competente para requisitar as medidas. Para uma situação submetida à Corte, contudo, as medidas provisórias podem ser outorgadas de ofício, por solicitação da Comissão, das alegadas vítimas, de seus sucessores ou representantes (HERRERA, 2010, p. 7).
Destarte, percebe-se que à Comissão é permitido requisitar medidas provisórias para a Corte ainda que o caso não esteja sob sua apreciação. A atuação da Comissão no procedimento de medidas provisórias perante a Corte é um momento singular previsto pela sistemática interamericana em que Comissão e Corte trabalham conjuntamente (HANASHIRO, 2001, p. 38).
Atualmente, quando a Comissão realiza o pedido de medidas provisórias para a Corte Interamericana, se dá uma presunção prima facie que existe uma situação de perigo grave e iminente passível de justificar a adoção das medidas (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1994, p. 2). A Corte, nestes casos, confere credibilidade à requisição de Comissão Interamericana, sendo este o órgão mais diretamente envolvido com a monitoração dos casos de violação dos direitos humanos. Uma nova análise do caso representaria um dispêndio desnecessário de tempo e recursos, principalmente quando nestas circunstâncias em que a celeridade é o cerne da atuação eficiente (PASQUALUCCI, 2003, p. 301)[54].
A requisição da Comissão Interamericana pode ser feita em qualquer estágio do procedimento do caso no órgão, quando se mostrar necessário, e não obrigatoriamente se dará em seu interesse, havendo a possibilidade de ser realizada a requisição em razão do pedido de uma parte interessada, de representantes da vítima ou a própria, de seus sucessores ou de uma organização não governamental (HERRERA, 2010, p. 8-9)[55].
Quando a Comissão não estiver reunida, as medidas provisórias da Corte Interamericana podem ser requisitadas pelo Presidente ou, na ausência dele, por um dos Vice-Presidentes da Comissão, conforme previsto no artigo 76, 2, do Regulamento da Comissão Interamericana.
Importa ressaltar que a Corte Interamericana possui jurisdição sobre a duração e o alcance da medida, ainda que referente a uma situação que não estava sob sua análise. Assim, nem a Comissão ou qualquer outra parte interessada possui a competência para fazer a tutela concedida sem efeito ou suspendê-la (HERRERA, 2010, p. 16).
Quando já submetidos à Corte qualquer parte no caso pode requisitar a instituição de medidas provisórias, incluindo a vítima, como já mencionado, o que acentua uma devida participação do indivíduo que teve seus direitos violados e atende a uma evolução latente do Direito Internacional dos Direitos Humanos[56]. A Corte, ou seu Presidente, quando esta não estiver em sessão, podem ainda outorgar as medidas por iniciativa própria, quando apropriado e recomendável (PASQUALUCCI, 2003, p. 311-312).
Uma vez adotadas, as medidas provisórias, assim com as cautelares da Comissão, não representam um julgamento do mérito da controvérsia ou uma condenação do Estado. Em casos como o de Cesti Hurtado, referente ao indeferimento de um habeas corpus pelo Estado do Peru, o Presidente da Corte Interamericana chegou a recusar a requisição de uma tutela de urgência, pois a solicitação guardava direta relação com o mérito do caso (HERRERA, 2010, p. 25-26).
No que concerne os Estados passíveis de figurarem como pólo de uma medida provisória, muito se discute se esta competência da Corte estaria atrelada à sua atribuição contenciosa ou se inerente à condição de salvaguarda aos direitos humanos de forma geral. Isso porque, conforme já exposto, ao contrário da Comissão, a Corte Interamericana não exerce sua competência de forma integral sob todos os Estados-membros da OEA, mas apenas em relação àqueles que ratificaram a Convenção Americana, e ainda sua jurisdição.
Na prática, a Corte tem adotado medidas provisórias apenas em relação a Estados que aceitaram sua jurisdição e sempre faz menção a esta concordância em suas ordens. Com efeito, até o momento, nunca houve medidas referentes à Dominica, Granada ou Jamaica, Estados que ratificaram a Convenção mas não aceitaram a atribuição contenciosa da Corte (HERRERA, 2003, p. 36).
A questão da competência em razão do tempo da Corte Interamericana de requisitar medidas de urgência também já levantou questionamentos, em especial no caso envolvendo o Estado de Trinidad e Tobago. Nesta situação, a Corte havia ordenado o adiamento da execução de certos prisioneiros, oportunidade em que o Estado alegou haver denunciado a Convenção Americana previamente e, consequentemente, estaria fora do âmbito jurisdicional da Corte Interamericana. O órgão estabeleceu seu entendimento oficial, perante esta circunstância, que, de acordo com o Direito Internacional, a denúncia não livraria o Estado de sua responsabilidade por atos de violação da Convenção que ocorressem anteriormente a ela, como ocorrera no caso em tela (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000, p. 2-4).
Embora a Convenção Americana não estabeleça em seu texto qualquer requisito de admissibilidade das medidas provisórias, a requisição da tutela de urgência deve conter as informações necessárias para demonstrar a existência de uma situação de extrema gravidade e imediatidade que justifique a adoção da ordem (HERRERA, 2010, p. 67).
A nomeação individual dos beneficiários das medidas também não é exigida em todos os casos, sendo suficiente que elas pertençam a um grupo identificável, como demonstrado em caso referente à República Dominicana em que a Corte concedeu medida de urgência para prevenir a expulsão sem o devido processo legal de milhares de descendentes de haitianos, ou no caso da penitenciária Sebastião Martins Silveira, em Araraquara, São Paulo, onde a ordem foi direcionada à proteção de todos ali encarcerados, sem que fosse preciso nomeá-los (PASQUALUCCI, 2003, p. 305-308).
Não há, ainda, delimitação ou hierarquização dos direitos que podem ser protegidos pelos efeitos das medidas de urgência. Na prática, uma porcentagem alta das medidas são adotadas em relação ao direito à vida e à integridade pessoal, típicos casos de riscos graves e urgentes de dano aos bens jurídicos mais caros à sociedade. Conquanto, não houve qualquer restrição da Corte Interamericana em oferecer defesa imediata à outros direitos como a liberdade de expressão, a proteção especial à crianças ou ao direito de circulação e residência das pessoas (GONZÁLEZ, 2010, p. 61-62).
A extrema gravidade, um dos requisitos para a concessão da tutela de urgência a ser observado em cada caso, deve ser resultado de um perigo real e não meramente hipotético. Expõe Clara Herrera, ao tratar do assunto, que tal perigo real pode ser constatado quando uma ou mais pessoas estão em uma situação similar a outro indivíduo que já teve seu direito violado. A autora ainda assevera que
um exemplo se daria quando uma testemunha recebesse ameaças de vida e outra testemunha no mesmo processo tivesse sido ameaçada e morta. A testemunha que ainda está viva se encontra em uma situação de perigo real porque no mesmo caso outra pessoa que estava na mesma posição – testemunha – e na mesma situação – ter recebido ameaças – foi morta[57] (HERRERA, 2003, p. 92).
Além desta notável gravidade, as circunstâncias devem exigir uma decisão imediata, sem a qual a possibilidade de injúria aos direitos humanos não poderia ser evitada. Não restando claro o dano iminente, a adoção da tutela de urgência não é necessária (PASQUALUCCI, 2003, p. 302). Como exemplo, a requisição da Comissão Interamericana de medida provisória no caso envolvendo o ativista de direitos humanos Carlos Chipoco, no Peru, acusado criminalmente de delitos relacionados à críticas ao Estado e ao seu trabalho em organizações de direitos humanos, foi denegada pelo Presidente da Corte Interamericana em razão da ausência de mandado de prisão para a vítima, inexistindo, consequentemente, a seu ver, justificativa para o procedimento emergencial (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1992, p. 2-3)[58].
Por fim, a outorga de uma medida emergencial só é possível em busca de prevenir danos que ainda não ocorreram, para evitar que causem um prejuízo irreparável. Este dano que, se concretizado, seria insanável, significa a "impossibilidade de resgatar, preservar ou compensar o direito ameaçado através de medidas realizadas após a lesão" (HERRERA, 2010, p. 98).
Corrobora-se, nessa limitação, o objetivo precípuo da instituição das medidas de urgência de suprir uma necessidade do sistema regional de direitos humanos, visto que o propósito da proteção além do âmbito doméstico não é apenas de decidir acerca da responsabilidade do Estado pela violação destes direitos, mas também de buscar impedir ou amenizar a ocorrência destes danos aos alicerces fundamentais da condição humana.
Com efeito, as medidas concedidas pela Corte Interamericana tem se mostrado eficaz em diversas circunstâncias em que se exsurge salvaguarda imediata contra potencial dano grave e irreparável, como a proteção de testemunhas que depuseram perante a própria Corte ou à Comissão, a proteção de ativistas ou organizações de direitos humanos, o impedimento ao cumprimento de pena de morte ou mesmo no oferecimento de proteção à indivíduos deslocados nacional ou internacionalmente, para que estes retornem a seu local de origem. Todos esses exemplos já se tornaram usuais no sistema interamericano pela repetição destas situações em casos semelhantes (PASQUALUCCI, 2003, p 318-325).
Não há no regramento das tutelas de urgência normas que especifiquem um procedimento probatório específico para evidenciar o cumprimento dos requisitos citados, no entanto. Assim, as mais diversas formas têm sido utilizadas e aceitas com o fim de demonstrar as situações de extrema gravidade e urgência, seja através de provas diretas como decisões judiciais, investigações e informações da mídia, ou indiretas como a concessão de medidas cautelares pela Comissão e a existência notória de um conflito interno armado na região (HERRERA, 2010, p. 103-127).
A implementação das ordens da Corte, uma vez acatada a requisição, se dá de maneiras diferentes, a depender da natureza da lesão que se pretende conter. Em geral, visando a proteção à vida e à integridade pessoal, a forma de implementação consiste na proteção policial, com custódia permanente ou sob alguma outra modalidade, ou ainda em rondas periódicas no local de residência ou trabalho do beneficiário (GONZÁLEZ, 2010, p. 64). Em outras ocasiões, a Corte já ordenou ao Estado, dentre outras medidas, o estabelecimento de controle e vigilância em grupos ilegais, a entrega de documentos que obstariam a expulsão ou deportação de indivíduos, a proteção de perímetros em certos locais, a conformização de presídios com os padrões mínimos internacionais com oferecimento de cuidados médicos aos presos e a suspensão da execução de sentenças (HERRERA, 2010, p. 152-158).
Contudo, as medidas provisórias usualmente apresentam comandos genéricos de utilização de todos os meios necessários para evitar a violação prevista, oferecendo margem de apreciação para o Estado soberano decidir qual ação específica seria necessária para cumprir sua obrigação geral de proteção. O adimplemento passa então a ser monitorado através de relatórios obrigatórios do Estado e da supervisão da Comissão Interamericana. Se as medidas iniciais se provarem insatisfatórias, é competência da Comissão notificar a Corte para que sugira ao ente estatal uma alternativa mais adequada (PASQUALUCCI, 2003, p. 312-313).
Assim como as demais decisões da Corte, não há recurso da decisão que ordena ao Estado a adotar medidas emergenciais e protetivas e, uma vez outorgada, será mantida enquanto permanecerem os requerimentos básicos de extrema gravidade e urgência, podendo ainda ser ampliadas em razão de mudança nas circunstâncias e até mesmo reinstituídas se a situação voltar a se apresentar (HERRERA, 2010, p. 148-178). Consequentemente, a suspensão da medida só poderá ocorrer quando cessarem os fatos e situações que lhe deram fundamento, independentemente da conclusão do caso de mérito perante a Corte Interamericana (PASQUALUCCI, p. 315-316).
É pertinente observar, por fim, que as ordens da Corte Interamericana de instituição de medidas provisórias são de cumprimento obrigatório, previstas no texto da própria Convenção Americana de Direitos Humanos, conforme já destacado. A escolha dos termos utilizados na redação do artigo 63, 2, da Convenção Americana, não suscita dúvidas quanto à vinculação dos Estados signatários a este instrumento de proteção dos direitos humanos, que vai além de uma simples sugestão de atuação preventiva estatal (PASQUALUCCI, p. 317-318).
Em paralelo, no que concerne às medidas cautelares da Comissão, o entendimento atual, como visto, é de que representam um importante papel em desafogar o órgão jurisdicional do sistema interamericano e promover a cooperação estatal em um âmbito político com base no princípio básico de boa-fé.
Não obstante, malgrado a importância já bem estabelecida das tutelas de urgência e de sua aplicação na defesa de forma universal aos direitos humanos nos mais diversos casos nos países americanos, o cumprimento indevido por parte dos Estados têm prejudicado a eficácia deste meio e todo o escopo do sistema regional interamericano.
À semelhança das sentenças nos casos contenciosos da Corte, o único recurso disponível no caso de inadimplemento das medidas de urgência é o relatório anual à Assembleia Geral da OEA, órgão que depende unicamente de sua vontade política para agir, conforme já exposto, e que se reúne apenas umas vez por ano, o que torna sua atuação direta nos casos que exigem celeridade inócua, não obstante possua um potencial não aproveitado de pressão política no que concerne a responsabilização estatal.
Em consequência, também o Brasil possui um histórico de desconsideração das ordens do sistema interamericano, mormente no que se refere as tutelas de urgência, o que se passará a analisar conjuntamente ao prejuízo desse desacato ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, à eficácia da proteção internacional dos direitos humanos no país e aos direitos basilares de seus próprios cidadãos e de qualquer indivíduo que resida no Estado.
O Direito Internacional de Direitos Humanos e, mais especificamente, o sistema interamericano de proteção, foram criados para atender as necessidades, ditadas pela história, de salvaguarda dos bens jurídicos fundamentais à construção e manutenção da atual concepção de ser humano. Como já exposto, a responsabilização e o controle internacional dos Estados no que concerne a preservação dos direitos humanos é conquista indisponível para essa proteção seja efetiva, e as medidas de urgência preenchem uma lacuna que evita a afirmação meramente retórica de defesa universal.
Até o presente momento, seis medidas de urgência foram requisitadas em relação ao Estado brasileiro e, desde o ano de 1996, mais de três dezenas de medidas cautelares foram pleiteadas à Comissão Interamericana. Os sistemas jurídicos e políticos nacionais não são estranhos, portanto, à existência de instrumentos fora do âmbito da legislação doméstica constituídos para proteger efetivamente os direitos humanos aqui violados em qualquer circunstância grave e de urgência, perante a falha do dever de proteção geral do Estado, mas agem, não raramente, como se estas medidas representassem meras sugestões de atuação política facultada ao ente estatal soberano.
Neste estudo, serão analisados os casos mais proeminentes de tutelas de urgência deferidas pelos órgãos do sistema interamericano e implantadas de forma deficiente ou sequer cumpridas pelo Brasil, para que se possa construir o panorama atual de um sistema de proteção que tem se tornado cada vez mais falho e ineficaz.
Inicialmente, destaca-se um caso de outorga de medidas provisória relativa ao direito à vida e à integridade física, no qual o Estado foi incapaz de conter atrocidades em presídio público, tampouco de adotar as medidas devidas para refrear os atentados que permaneceram ocorrendo.
A proteção dos encarcerados é decorrência natural da condição humana dos indivíduos submetidos a uma punição de privação de liberdade. Mesmo a posição de condenado e aprisionado não possui o condão de afastar a responsabilidade primária do Estado em resguardar os direitos humanos. Ao revés, tal obrigação se torna ainda mais presente, tendo em vista que o indivíduo passa a estar integralmente dependente da tutela estatal para sua sobrevivência.
Além deste dever oriundo da principiologia do ordenamento jurídico nacional, que traz a dignidade humana como fundamento da nação, a Constituição Federal, em seu artigo 5°, XLIX, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. Disposição semelhante é encontrada na redação do artigo 38 do Código Penal, ao fixar que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade. Já a Lei de Execução Penal, de n° 7210/84, dedica toda uma seção, composta de quatro artigos, aos direitos dos presos, ressaltando mais uma vez a integridade física e moral, seja o preso provisório ou já condenado.
Outrossim, o respeito a humanidade e à dignidade inerente ao indivíduo privado de liberdade é destacado nos diplomas internacionais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 10, 1, e a prática de penas cruéis que não observam esta determinação é repudiada e afastada, sem que caibam justificativas para o seu uso, por meio da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
A Corte Interamericana, por sua vez, em caso envolvendo a penitenciária Uribana, na Venezuela, já destacou que
o Estado possui um papel especial como o garantidor das pessoas privadas da liberdade em prisões ou centros de detenção, tendo em vista que as autoridades penitenciárias possuem total controle sobre eles. Além disso, um dos deveres que o Estado deve impreterivelmente cumprir como um garantidor, visando proteger e assegurar o direito à vida e à integridade física das pessoas privadas da liberdade, é [proporcioná-los] o mínimo de condições para manter sua dignidade enquanto permanecem em centros de detenção (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011a, p. 6)[59].
Afere-se, portanto, que o Estado deve atuar nos casos de violação de direitos humanos envolvendo indivíduos submetidos a pena de prisão ou em privação provisória, mormente para assegurar os direitos fundamentais e evitar que as lesões ocorram, e caso a precaução seja falha, é responsável pela instituição de uma situação em que estes direitos possam ser observados.
No Brasil, o maior destaque dentre as medidas provisórias referentes às penitenciárias é o caso da Casa de Detenção José Mário Alves, mais conhecida como Penitenciária Urso Branco, localizada no município de Porto Velho, no estado de Rondônia. A requisição de tutela de urgência para a Corte Interamericana foi realizada pela Comissão, e se tornou necessária pelo agravamento de situações já existentes e em razão da total ausência de controle dos internos na ocasião.
Em 1° de janeiro de 2002, um realocação geral dos internos foi realizada com critérios pouco rigorosos de separação dos detentos potencialmente agressores, de modo que tanto aqueles que anteriormente se encontravam em celas de segurança quanto os que gozavam de maior confiança das autoridades e de certa liberdade dentro das instalações foram colocados juntos nas celas destinadas à população geral da penitenciária. Após a retirada das forças especiais envolvidas na mobilização dos internos, na mesma data se deu início a um "homicídio sistemático" dos detentos provenientes das celas de segurança, que chegaram a gritar pelo auxílio dos agentes, sem que estes interviessem. O relatório dos encarregados do "grupo de choque" da polícia Rondônia que adentrou o local no dia seguinte atestou que foram encontrados quarenta e cinco corpos, muitos decapitados ou mutilados, ainda que governo estatal tenha divulgado oficialmente o falecimento de vinte e sete pessoas (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002a, p. 2).
Mesmo com a posterior criação de celas improvisadas de segurança, três corpos foram encontrados em um túnel subterrâneo, duas tentativas de homicídio perpetram-se e onze celas foram destruídas e, ainda que intervindo a Companhia de Controle e Distúrbios, dois reclusos foram mortos em um pátio na presença de diversos outros internos. Quatro dias depois deste fato, a Comissão Interamericana solicitou a adoção de medidas cautelares para a proteção da vida e da integridade física dos internos, o que não foi suficiente para obstar o assassinato de mais cinco pessoas no interior do centro de detenção. A Corte, então, acatou a requisição de medida provisória, julgando haver um grave risco à vida e à integridade e reconhecendo o caráter urgente pela tensão ininterrupta de ocorrência de homicídios, existência de armas no poder dos internos, aglomeração e falta do controle das autoridades nacionais. Requereu-se, visando refrear as severas lesões aos indivíduos detentos, a adoção dos meios necessários para proteção e investigação[60], bem com o fornecimento de informações acerca do cumprimento (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002a, p. 2-7).
Em resposta, o Brasil informou a realização de medidas como a aprovação de novos agentes penitenciários em concurso público, a construção de dois novos presídios e a instauração de processo administrativo e inquérito judicial para averiguar a responsabilidade dos fatos. Tais afirmações foram refutadas pela Comissão Interamericana, ao assinalar o atraso das obras, a presença de policiais militares no presídio e a parcialidade e falta de inserção do governo federal em determinar a participação das autoridades estatais nos fatos, bem como a impossibilidade de acesso aos procedimentos em andamento. Na mesma oportunidade, a Comissão ressaltou casos de violação posteriores à concessão de medida provisória, destacando a ocorrência de novos homicídios, castigos pessoais desumanos, ameaças de morte e um espancamento e tortura realizados no dia posterior ao fim da supervisão do cumprimento da medida de urgência, como represália aos internos[61]. A Corte reforçou a necessidade da adoção das medidas requisitadas e da responsabilização dos culpados (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002b, p. 4-12).
Ainda, em ocasião posterior, não obstante o reconhecimento da efetiva atuação do Programa de Justiça Itinerante, que solucionou de forma provisória problemas de revisão de penas e benefícios penais, a Corte voltou a corroborar a relevância da proteção urgente e eficaz, mediante a reiteração de novos danos à vida e integridade dos internos, acentuando-se a morte de um detento por um militar, ao tentar controlar uma briga, a permanência da inadequação das condições do local aos padrões internacionais, a falta de progresso nas investigações e de informações sobre seu andamento, ameaças de suicídio pela superlotação, a ocorrência de motins e rebeliões, falhas de segurança, insalubridade, a existência de armas artesanais entre os detentos e a escassez de reuniões da Comissão Especial instituída pelo Estado brasileiro para o caso, que deveria servir de aporte fundamental ao cumprimento das medidas[62] (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005a, p. 2-23).
Em julho e dezembro de 2007, dois motins resultaram na morte de três internos e dezenas de feridos, com indícios de que a violência aplicada pelos agentes públicos para conter a ameaça foi desproporcional, dentre outros casos de inadequação relativas à superlotação e controle das autoridade policiais, levando a Corte a manter a medida que já perdurava por seis anos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2008b, p. 4-9).
Apesar de uma redução no número de internos, da efetiva construção de novas penitenciárias e mais celas, do reforço na segurança, de melhorias nas condições de encarceramento e da instituição de programas de reintegração social e assistência jurídica, atos de tortura e violência psicológica e físicas por ação dos agentes do Estado continuaram a ocorrer[63], incluindo o uso de armas de fogo como forma de coação e controle dos detentos e o abuso sexual (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 3-18).
Por fim, com a assinatura do Pacto para Melhoria do Sistema Prisional do Estado de Rondônia e Levantamento das Medidas Provisórias Outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 24 de agosto de 2011, por autoridades federais e representantes do beneficiários, em que se deu a identificação dos principais problemas existentes na Penitenciária Urso Branco e o estabelecimento pelo Estado brasileiro de ações de curto, médio e longo prazo para solucioná-los, bem como formas de supervisionar tais atos[64], a Corte cessou os efeitos das medidas provisórias. Para tanto, levou em consideração a diminuição do número de mais de 700 detentos e a maior estabilidade concedida pelo referido documento, deixando de existir a extrema gravidade, urgência e necessidade de prevenir danos irreparáveis, mas salientando que isto não significava que poderia ser relevado o dever estatal de proteção à vida e integridade dos internos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011b, p. 2-6).
A vida e a integridade pessoal dos indivíduos foram igualmente protegidas em diferentes situações, no Estado brasileiro, por medidas cautelares outorgadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos[65]. O caso mais atual e eminente refere-se à proteção de diversas comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, no estado do Pará, através de tutela concedida em abril de 2011.
A semelhança da proteção dos indivíduos em privação de liberdade, a defesa dos direitos fundamentais da população indígena também se demonstra de relevância peculiar, tendo em vista que se encontram em posição frágil na sociedade em razão de usualmente optarem por manter seus costumes e organizações sociais característicos.
Embora inegável que a salvaguarda da condição de indivíduo de cada membro destas comunidades, com a manutenção de todas as suas particularidades, é obrigação que decorre intrinsecamente da função do Estado, a Constituição Federal faz menção expressa a estes direitos em seus artigos 231 e 232, reconhecendo as tradições, línguas e costumes e as terras por eles habitadas em caráter permanente, de natureza inalienável, indisponível e imprescritível.
Destarte, o direito doméstico pátrio, norteado pela norma constitucional, "afirmou o direito dos povos nativos à diferença, forjado pela existência de diversidades culturais, rompendo o paradigma da integração e da assimilação que até então dominava o ordenamento jurídico brasileiro" (BELTRÃO; BEGOT; LIBARDI, 2012, p. 122).
No âmbito internacional, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário desde 2002, concernente aos direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais, garante o respeito e conservação das instituições sociais, econômicas, culturais e políticas das comunidades indígenas e destaca que os conceitos básicos que norteiam a interpretação das disposições da Convenção são a consulta e a participação dos povos interessados e o direito desses povos de definir suas próprias prioridades de desenvolvimento na medida em que afetem suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam.
A Comissão Interamericana, em caso contencioso julgado pela Corte envolvendo as terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade indígena Yakye Axa, no Paraguai, deixou claro seu entendimento de que
o direito à vida é um direito humano básico, essencial para o gozo dos outros direitos humanos. Esse direito compreende não apenas o direito de todo ser humano de não ser arbitrariamente privado de sua vida, mas também o direito de não ser negado as condições necessárias à garantia de uma existência digna. O Estado, ao não assegurar o direito à comunidade à seu território tradicional, falhou em cumprir com seu dever de garantir a vida de seus membros, tendo em vista que privou a comunidade a seus meios usuais de subsistência, forçando-os a sobreviver em condições terríveis e deixando-as a mercê da assistência estatal (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005b, p. 80)[66].
É dever do Estado, portanto, assegurar o livre e pleno exercício dos direitos dos indígenas, de forma que "tomem em conta as particularidades dos povos etnicamente diferenciados, em situação de vulnerabilidade, protegendo-os em seus direitos consuetudinários, valores, usos e costume (BELTRÃO; BEGOT; LIBARDI, 2012, p. 145).
Com estes fundamentos, as comunidades de Arara da Volta Grande do Xingu, Juruna de Paquiçamba, Juruna do "Quilômetro 17", Xikrin de Trincheira Bacajá, Asurini de Koatinemo, Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô, Parakanã de Apyterewa, Araweté do Igarapé Ipixuna, Arara da terra indígena Arara, Arara de Cachoeira Seca e as comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu requisitaram a concessão de medida cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, alegando que a vida e a integridade pessoal de toda essa população estaria em risco pelo impacto da construção da usina hidrelétrica Belo Monte (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011).
Importa compreender, no caso, que a região afetada pela construção da hidrelétrica Belo Monte no Brasil é destaque por conter fluxos migratórios de cerca de nove povos indígenas nativos, população ribeirinha descendente de imigrantes do ciclo de borracha, população do município próximo de Altamira e grupos nômades indígenas que realizam raríssimo contato (SICILIANO, 2011, p. 16).
O impasse agravou-se, ainda, pela ampla divulgação de uma análise crítica do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do aproveitamento hidroelétrico concernente à Belo Monte, realizado por um painel de especialistas em 2009, identificando diversos problemas e sérias lacunas no referido Estudo, como a omissão e falhas na análise de situações e dados sociais, econômicos e culturais, incluindo a ausência de análise ligada à manutenção da vida das populações atingidas, a proliferação de doenças por insetos hematófagos e riscos à fauna local (ACSELRAD et alli, 2009, p. 1-11)[67].
A medida cautelar da Comissão Interamericana de n° 382/10 foi então outorgada com o seguinte teor:
A CIDH solicitou ao Governo Brasileiro que suspenda imediatamente o processo de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impeça a realização de qualquer obra material de execução até que sejam observadas as seguintes condições mínimas: (1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares; (2) garantir, previamente a realização dos citados processos de consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos; (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingú, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona, como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011).
Em nota oficial à imprensa, o Ministério de Relações Exteriores, afirmando ter o governo autorização do Congresso Nacional para realizar as obras a partir de estudos antropológicos e de impacto ambiental no local, realizados com a consulta às comunidades, e que o sistema interamericano tem caráter subsidiário à jurisdição interna, julgou as solicitações precipitadas e injustificáveis (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011).
Em seguida, diversas declarações aos meios de comunicação de representantes do governo, parlamentares e do Ministro de Energia à época dos fatos deixaram claro o rechaço à ordem da Comissão Interamericana, julgando a intervenção descabida, unilateral e desrespeitosa à soberania do país[68] (VENTURA; CETRA, 2012, p. 39-40).
Em 9 de junho do mesmo ano, o Congresso Nacional aprovou voto de solidariedade ao governo brasileiro e voto de censura à Comissão Interamericana, afirmando que a OEA precipitou-se no assunto, chegando a envolver-se em assuntos internos do Estado, o que iria de encontro aos princípios basilares do Direito Internacional (SENADO FEDERAL, 2011, p. 22954-22955).
A indicação do ex-ministro Paulo Vannuchi como candidato brasileiro para integrar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi retirada, decisão que foi tida como uma retaliação brasileira ao órgão internacional (SICILIANO, 2011, p. 4).
Com base em informações cedidas pelo Estado e pelos peticionários, a medida cautelar foi revista pela Comissão, sendo removida a requisição de suspensão das obras e exigindo-se de forma geral a adoção de medidas de proteção à vida, saúde e integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas, bem como a integridade cultural, e a rápida finalização dos processos de regularização das terras que restavam pendentes, protegendo-as da apropriação ilegítima e da exploração. Ademais, a Comissão julgou questão de mérito o debate sobre a existência ou não de consulta prévia às comunidades no projeto da Belo Monte (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011).
Posteriormente, em um posicionamento inédito do Estado brasileiro desde a instituição do sistema interamericano, não foram enviados representantes à reunião de trabalho convocada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em outubro de 2011, opção que levou diversas organizações ligadas à defesa dos direitos humanos a assinar nota de repúdio ao governo nacional sustentando que:
A decisão expõe a covardia de um governo que, sabendo das ilegalidades e arbitrariedades cometidas no processo de licenciamento e construção de Belo Monte, evita ser novamente repreendido publicamente pela Comissão. Mas não só isso: o Estado brasileiro dá ao mundo um triste exemplo de autoritarismo e truculência, deixando claro que o país estará fechado para o diálogo quando for contrariado em instâncias internacionais (REVISTA CONSCIÊNCIA, 2011).
A dissonância do Brasil com a intervenção da Comissão Interamericana culminou em documento apresentado ao Conselho Permanente da OEA, envolvendo propostas da delegação brasileira, em dezembro de 2011, que se referiu à outorga de medidas cautelares ao deliberar, em suma, que: a) a Comissão deveria ter em consideração que possui atribuição quase-judicial e que suas decisões têm natureza de recomendação; b) as medidas perderiam seu objeto se o Estado demonstrasse a eficácia dos remédios judiciais legais para solucionar a situação; c) as medidas deveriam possuir limite de tempo para seus efeitos; d) a concessão de uma medida cautelar deveria ser realizada após consulta ao Estado; e) deveria ser levada em conta a força maior que impedisse o cumprimento de uma medida cautelar (OEA, 2011, p. 2)[69].
Esta série de eventos representaram uma quebra patente da dinâmica do Brasil com o sistema interamericano, insurgindo-se o Estado contra a intervenção da Comissão Interamericana ao omitir-se na cooperação necessária e através de declarações de seu representantes oficiais, que amplamente divulgaram o entendimento de que a atuação do órgão internacional no caso foi inconveniente e irrazoável.
Assim relatados, tem-se dois casos paradigmas da aplicação das tutelas de urgência do sistema regional americano ao Estado brasileiro. Com resultados e níveis de atuação estatal distintos, ambas as situações demonstram a ineficácia destas medidas do sistema interamericano em circunstâncias em que a gravidade de um dano previsível e iminente impossibilitava o procedimento ordinário perante a Corte ou mesmo a Comissão.
Embora seja certo que em algumas ocasiões a instituição das decisões dos órgãos do sistema interamericano se deram de forma efetiva[70], o não cumprimento ou o cumprimento negligente e deficitário em casos notórios lesiona o funcionamento do sistema regional em seu fundamento, a ponto de levantar questionamentos sobre a necessidade de sua existência.
Não se pode olvidar que um Estado, assim como qualquer dos pólos de uma contenda, possui o direito de resposta e objeção às alegações de outra parte. Quando se trata do exercício de soberania de um país afetada por uma decisão de um órgão internacional, esta já influenciada pelos indícios de suposta violação aos direitos humanos trazidos pela parte requerente, a participação estatal é sem dúvidas impreterível.
Se estas decisões se referem à casos que demandam tutelas de urgência, no entanto, como já evidenciado, o procedimento usual que prevê a deliberação pela violação ou não dos direitos da Convenção Americana após a colheita de informações, investigações e audiências, é quase sempre impraticável e completamente ineficaz. A proteção em um caso grave e emergencial deve se dar de forma imediata, sob pena de perder seu objeto e a capacidade de produzir qualquer efeito, resultado de prejuízo insustentável quando se trata da vida e da integridade pessoal de diversos indivíduos. Ao Estado é possível, naturalmente, afastar o comando dado mediante prova de que o dano grave, potencial e irreversível foi eliminado.
Nos casos apontados, os órgãos do sistema interamericano não agiram de forma arbitrária com o intento de sobrestar a soberania estatal. As medidas de urgência concedidas calcaram-se nas evidências trazidas pelas partes requerentes. A Comissão Interamericana apresentou irrefutáveis sinais de má atuação político-administrativa na Penitenciária Urso Branco, e as comunidades indígenas obtiveram êxito em demonstrar indícios de falhas no projeto da hidrelétrica Belo Monte, potencialmente negligente em relação ao verdadeiro impacto resultante da obra.
Contudo, o Estado brasileiro demonstrou mínima ou nenhuma vontade política de atender às medidas necessárias e urgentes apontadas pelo sistema interamericano. Igualmente, a resposta ao desacato estatal pelo órgãos que compõe o sistema regional, incluindo a Assembleia Geral da OEA, não foi apta a garantir o cumprimento destas tutelas, demonstrando uma ineficácia da proteção regional em ambos os pólos.
O caso da Penitenciária Urso Branco foi a circunstância que envolveu o maior número de mortes de beneficiários de medidas provisórias da Corte Interamericana, ainda que por diversas vezes o órgão tenha explicitado sua preocupação de que o Estado não estaria adotando as medidas fundamentais à proteção dos internos, chegando a ser levado à Assembleia Geral pela Corte em 2005 como uma situação de descumprimento parcial das medidas (HERRERA, 2010, p. 190-210). Clara Herrera, ao tratar da atuação do Brasil no caso e de casos semelhantes referente ao sistema prisional, frisa que
Para que haja uma verdadeira mudança nas condições das prisões é necessário que exista uma série de ações, mas acima de tudo se requer uma vontade política. As autoridades do Estado devem perceber que a situação dos locais de detenção é grave e devem também determinar que esse problema sério seja resolvido. Apenas dessa forma tomarão as incisivas medidas necessárias para que seja alterada a condição das prisões desses países (2010, p. 208)[71].
Em relação à usina hidrelétrica de Belo Monte, ainda que se considerasse precipitada a decisão de suspensão das obras, a reação do Estado brasileiro se deu de forma desmedida e omissa, o que, além de deixar as comunidades indígenas suscetíveis a danos que não foram completamente compreendidos e impossíveis de reverter uma vez efetivado o projeto, prejudica severamente toda a instituição do Direito Internacional de Direitos Humanos com base em uma cooperação e proteção que transpõe a figura do Estado. Aberta a possibilidade de ignorar as decisões do único órgão em que o indivíduo possui acesso direto no sistema interamericano, a necessidade da própria existência deste órgão é posta em questionamento[72].
Ademais, o documento apresentado pela delegação brasileira ao Conselho Permanente da OEA indica que a função do instituto das tutelas de urgência da Comissão Interamericana não é corretamente entendido pelo governo, e que o papel desse órgão político, bem como do instrumento de medida cautelar, não é tido como relevante ou nem mesmo de observação necessária para o funcionamento do sistema ou da defesa eficaz dos direitos humanos.
Rodrigo Coelho, ao discorrer sobre formas de implementação das determinações da Corte Interamericana, julga que a legislação brasileira é farta de recursos disponíveis e adaptáveis às necessidades de execução das decisões, mas destaca a ausência a vontade política e a consciência das autoridades. Para o autor,
"[...] entre os principais desafios a serem enfrentados pelo Brasil está a falta de conhecimento dos dirigentes acerca do direito pátrio e da natureza jurídica dos compromissos externos firmados pelo país. É emblemático o desconhecimento por parte dos próprios legisladores nacionais sobre a maneira correta de se implementarem as sentenças da Corte Interamericana, sobre a interpretação sistemática do ordenamento jurídico nacional e sobre os meios apropriados para a defesa e a persecução dos direitos humanos. Se a camada social responsável por editar nossas leis tem parco conhecimento sobre esses assuntos, imagine-se a vulnerabilidade a que podem estar sujeitas as vítimas e toda a sociedade frente aos desafios crescentes que a proteção dos direitos individuais impõe atualmente. Não basta que o Brasil procure afirmar no plano internacional a defesa dos direitos humanos. É necessário que os mesmos sejam efetivamente aplicados em âmbito nacional. Teoria e prática devem andar juntas." (2008, p. 187).
Por outro lado, a capacidade de conceder eficácia para suas decisões é extremamente deficiente no sistema interamericano.
Jo M. Pasqualucci, analisando a eficácia do sistema, afirma que a universalidade por ele instituída nada significa se os Estados não implantarem domesticamente os direitos previstos pela Convenção Americana, as decisões da Corte e as recomendações da Comissão, ressaltando que o dever de cumprir as decisões da Corte advém da Convenção, enquanto as determinações da Comissão devem ser aplicadas em obediência ao princípio da boa fé. No entanto, assinala a falha da adequação dos órgãos políticos da OEA em seu apoio ao sistema regional, estabelecendo que a pressão política para o cumprimento das decisões, a cargo da Assembleia Geral, nunca se materializou. Isso porque o órgão não agiu, ou sequer reconheceu, situações de notórios e gravosos descumprimentos, como a rejeição de Trinidad e Tobago à medida provisória da Corte, após a denúncia da Convenção Americana. Acentua que o temor de publicidade negativa internacional é um assunto sensível aos Estados, sendo a opinião mundial uma força reconhecida de persuasão desperdiçada no sistema interamericano (2003, p. 342-346)[73].
Ao oferecer propostas para dar eficácia ao sistema regional de proteção, Flávia Piovesan também destaca a exigibilidade de cumprimento das decisões da Comissão e da Corte, acrescentando ainda a necessidade da OEA prever sanção ao descumprimento de forma reiterada e sistemática, como a expulsão da Assembleia Geral, e aprimorar a supervisão do adimplemento, mormente no que se refere à investigação dos fatos que ocasionaram a lesão. A autora também levanta a problemático do acesso direto do indivíduo, que deveria se estender à Corte Interamericana, devendo este órgão ter jurisdição vinculada por cláusula obrigatória, e não facultativa (2012, p. 355-357).
Por fim, Clara Herrera, ao tratar das medidas provisórias outorgadas pela Corte Interamericana e das dificuldades de sua aplicação, corrobora os defeitos da atuação do sistema interamericano, ponderando que entre os problemas se sobressaem, além da ausência de vontade política dos Estados, a falta de confiança dos indivíduos na atuação estatal para prevenir o dano e protegê-los em casos de urgência e gravidade e a total ausência de reação da Assembleia Geral, como órgão supremo da OEA, em qualquer caso de não cumprimento de decisões dos órgãos do sistema interamericano (HERRERA, 2010, p. 204-211).
Destarte, é notória a confluência no entendimento dos doutrinadores do Direito Internacional dos Direitos Humanos supracitados acerca das falhas existentes no sistema interamericano, bem como na solução de tais problemas. Estas dificuldades refletem diretamente na eficácia da atuação de todos os órgãos que o compõe e, em maior grau, nas tutelas de urgência que porventura concederem.
Ao tratar de situações de risco potencial iminente, grave e irreversível, as medidas de urgência demandam, mais do que qualquer outra espécie de deliberação da Comissão ou da Corte Interamericana, a total aplicabilidade das determinações. Considerando que o resultado da ineficácia de uma tutela emergencial representa uma lesão de extrema gravidade aos direitos humanos, torna-se ainda mais importante indivíduos e Estados conhecerem e compreenderem o procedimento destas medidas e a relevância de sua implementação.
No Estado brasileiro, como se pôde aferir dos casos pertinentes à Penitenciária Urso Branco e à usina hidrelétrica Belo Monte, parte da atuação prejudicada das medidas de urgência no sistema interamericano se dá pela carência de vontade política estatal, que resultou na permanência de uma situação de extrema tensão por quase dez anos no referido centro de detenção e em dano potencialmente permanente da dinâmica das medidas cautelares e do papel da Comissão Interamericana, no segundo caso.
Não é possível olvidar os problemas do próprio sistema interamericano, no entanto, que possui uma instância política que em nada contribui para o cumprimento das decisões da Comissão ou da Corte Interamericana, seja em situações de urgência ou em sentenças decorrentes de julgamentos, não possui meios de exigir a adimplência dos Estados por conta própria ou sequer prevê qualquer sanção para os países que sistematicamente desconsideram as decisões.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos, conforme foi descrito neste estudo, foi instituído a partir da necessidade histórica de sobrepor a condição do ser humano à posição de cidadão de um Estado ou parte de uma comunidade, relativizando a soberania estatal. Os sistemas regionais, por sua vez, atendem, de forma cooperativa ao sistema global, as necessidades peculiares de uma região, participação de extrema relevância quando se considerada a posição de maioria dos países americanos de transição de regimes militares, o qual deixou de herança terríveis lesões aos direitos humanos, a uma almejada democracia.
A compreensão do funcionamento do sistema interamericano pela sociedade civil, bem como das razões de sua atuação ser por vezes ineficaz à proteção dos direitos humanos, sobretudo quanto aos instrumentos que permitem decisões imediatas, é o primeiro passo, sem dúvidas, para que o arcabouço político do Estado brasileiro sinta-se pressionado a mudar sua resposta às requisições internacionais e para que se possa aproveitar de forma efetiva os procedimentos da Comissão e da Corte Interamericano, ainda que de alcance limitado.
Somado às mudanças estruturais necessárias ao sistema, é certo que a partir do desenvolvimento de uma consciência geral da proteção universalizada dos direitos humanos, seja através da ação das organizações não governamentais ou da própria promoção destes direitos feito pelo sistema interamericano, não restará alternativa ao Brasil que senão a cooperação com a proteção eficiente ao indivíduos e aos seus direitos mais fundamentais, oferecendo o suporte necessário ao cumprimento das medidas de urgência outorgadas pelo sistema regional e protegendo de forma imediata a vida, a integridade pessoal, a liberdade, a diversidade ou qualquer outro direito em perigo de ser violado por eventual falha estatal em sua salvaguarda.
O instrumento da tutela de urgência no sistema interamericano tem sido utilizado tanto pela Comissão Interamericana quanto pela Corte como forma de garantir a defesa dos direitos humanos na ocorrência de uma potencial violação grave e iminente que acarretaria em dano irreparável aos indivíduos afetados.
A eficácia de sua aplicação reside na efetiva complementação da lacuna deixada pelo procedimento usual. O processo ordinário nos órgãos internacionais oferece necessariamente um lapso temporal para investigações, prestação de informações e verificação dos fatos, tendo em vista tratar-se de um sistema voltado à averiguação da responsabilidade estatal, enquanto as medidas de urgência voltam-se para a prevenção de uma lesão que está prestes a se dar pela falha da proteção devida pelo Estado.
Todavia, em casos de repercussão internacional como o da Casa de Detenção José Mário Alves, conhecida como Penitenciária Urso Branco, o Estado brasileiro foi incapaz de conter atrocidades e realizar investigações efetivas mesmo após a determinação de medidas provisórias pela Corte Interamericana, adotadas, destaque-se, após a falha estatal em prevenir diversos homicídios sistemáticos entres os internos.
O atual caso da usina hidrelétrica Belo Monte, a ser construída no Rio Xingu, no estado do Pará, também é notável exemplo da prejudicada eficácia da tutela de urgência no Brasil. O Estado não cumpriu a medida cautelar 382/10 da Comissão Interamericana, emitida em 1° de abril de 2011, em que se exigia a paralisação das obras até que condições mínimas de proteção às populações indígenas em isolação voluntária fossem estabelecidas, e não se fez presente em audiência pública posteriormente realizada pelo mesmo órgão, sem que isso tenha resultado em qualquer medida coercitiva direcionada ao asseguramento da proteção destes direitos lesionados.
Como consequência, esta implementação inadequada e omissa das medidas outorgadas pela Comissão e pela Corte Interamericana em tais casos de notoriedade ocasionaram um inevitável impacto na perspectiva da atuação do sistema interamericano, pondo em questão a própria necessidade da existência das tutelas de urgência ou mesmo do controle e proteção realizados pelos órgãos do sistema regional.
No entanto, de forma concomitante, evidenciou-se as principais razões que resultaram na eficácia prejudicada das medidas de urgência no Estado brasileiro, oriundas não só do atuação relapsa governamental, como de problemas estruturais no funcionamento do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.
Por um lado, não parece atormentar o Estado brasileiro o fato de não honrar todos os seus compromissos internacionalmente assumidos, seja em casos de decisão de cumprimento obrigatório e executável emitido pela Corte ou mesmo em atenção ao princípio da boa-fé, quando se trata de recomendações da Comissão Interamericana.
A falta de vontade política na instituição de medidas aptas e satisfatórias manifestou-se através de terríveis consequências do descaso na Penitenciária Urso Branco, onde por uma década se noticiou uma situação de permanente urgência e gravidade, falhando o Estado, a cada morte ou violação da integridade pessoal e dignidade dos presos, em adimplir a prevenção ordenada pela Corte Interamericana no decorrer de dez relatórios distintos das circunstâncias no local.
O reflexo da negligência em relação às decisões internacionais ainda é patente nas escolhas políticas realizadas na situação da usina hidrelétrica Belo Monte, onde o Estado se dispôs a afrontar de forma direta a Comissão Interamericana e sua atribuição de outorgar medidas cautelares, sem contudo apresentar qualquer prova de que o perigo do dano permanente aos requerentes das medidas, as diversas comunidades indígenas da região atingida pelo projeto, teria sido devidamente afastando.
Os problemas do sistema interamericano são igualmente responsáveis pela implementação deficitária da tutela de urgência, bem como de qualquer decisão emitida pelos seus principais órgãos. Somada à inépcia estatal, a inexistência de instrumentos que garantam sua responsabilização acarreta na completa insegurança quanto ao cumprimento das ordens exaradas. O sistema interamericano resta prejudicado pela atuação inábil da Assembleia Geral da OEA, principal órgão político do sistema, e pela falta de mecanismos de supervisão e sanção.
A compreensão dos indivíduos acerca de sua posição central no Direito Internacional dos Direitos Humanos, assim como da atuação do sistema criado para atender especificamente às peculiaridades do Estado brasileiro e dos demais Estados americanos, é o ponto inicial para reverter esta situação de indiferença dos países e de debilidade da proteção internacional dos direitos humanos, pois só a partir dela as obrigações estatais frente aos sistemas regionais poderão ser devidamente exigidas por seus titulares, e os órgãos que os compõe terão uma fundação consistente para agir e fazer cumprir suas determinações, sobretudo no que tange as violações graves.
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[1] "O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de leis que busca, por razões humanitárias, limitar os efeitos dos conflitos armados. Ele protege as pessoas que não participam ou deixaram de participar das hostilidades e restringe os meios e métodos de guerra. O Direito Internacional Humanitário também é conhecido como Lei da Guerra ou Lei do Conflito Armado." (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2004, p. 1).
[2] As questões acerca da legalidade, legitimidade e limitações da intervenção humanitária, embora ensejem inúmeros debates no âmbito do Direito Internacional, não serão tratadas no presente estudo, aqui focado no desenvolvimento do ideário e na consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
[3] Original em inglês: "[...] treats internationally recognized human rights holistically, as an indivisible structure in which the value of each right is significantly augmented by the presence of many others."
[4] "[...] os direitos do homem nascem com os direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem uma plena realização como direitos positivos universais. A Declaração Universal contém um germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta dos direitos positivos universais" (BOBBIO, 2004, p. 30).
[5] "As normas não-convencionais servem para preencher vazios gerados pela ausência de adesões por parte dos Estados aos tratados internacionais, já que a aceitação das normas não-convencionais possibilita a superação de tais entraves. Muitos desses costumes originaram-se de resoluções da Assembléia Geral da ONU, bem como de deliberações do Conselho Econômico e Social e sua Comissão de Direitos Humanos, a exemplo da Declaração Universal de Direitos dos Homens, reconhecida pela Corte Internacional de Justiça como norma costumeira dessa matéria"(ANNONI, 2009, p. 27).
[6] Destaca-se, dentre os instrumentos posteriores a declarar uma visão global e integrada dos direitos humanos, a Proclamação de Teerã, de 1968, que dispõe em seu parágrafo 13: "Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta impossível. A realização de um progresso duradouro na aplicação dos direitos humanos depende de boas e eficientes políticas internacionais de desenvolvimento econômico e social."
[7] Como uma das medidas para garantir força normativa aos direitos humanos universalizados, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em especial, instituiu uma efetiva sistemática de monitoramento através de relatório periódicos, enviados pelos Estados-parte ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre medidas legislativas, administrativas e judiciárias adotadas a fim de implementar os direitos enunciados pelo Pacto. Ademais, seu Protocolo Facultativo, adotado em dezembro de 1966, ampliou este esforço de implementação das normas ali previstas permitindo que indivíduos apresentassem petições denunciando violação de direitos humanos constantes do Pacto (PIOVESAN, 2012, p. 228-236).
[8] O art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ratificado pelo Brasil em 1969 e que dispõe sobre regras concernentes à tratados de qualquer natureza, reforça esta característica dos diplomas internacionais, estabelecendo que o Estado não pode invocar disposições do seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado.
[9] "[...] o próprio direito dos tratados de nossos dias, como o atesta o artigo 60(5) da Convenção de Viena, descarta o princípio da reciprocidade na implementação dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, em razão precisamente do caráter humanitário desses instrumentos. Abrindo uma brecha em um domínio do direito internacional - como o atinente aos tratados - tão fortemente impregnado do voluntarismo estatal, o dispositivo do referido artigo 60(5) constitui uma cláusula de salvaguarda em defesa do ser humano" (TRINDADE, 1991, p. 11-12).
[10] "A prática internacional apresenta os seguintes entendimentos acerca do papel internacional do indivíduo: (I) é o único sujeito de DI, e o Estado é um agente ou representante; (II) é também sujeito, mas não o único; (III) sua presença no cenário internacional decorre de razões de caráter humanitário e, sendo um súdito do Estado, o indivíduo é o sujeito direto de DI; (IV) o DI aplica-se ao indivíduo em virtude de tratados especiais e de organismos internacionais; (V) não é sujeito de DI por submeter-se à jurisdição do Estado, sendo o destinatário das normas jurídicas, que lhe são aplicáveis a partir da conversão em Direito interno; (VI) é sempre objeto do DI." (SOUSA, 2010, p. 48)
[11] "Esse sistema era relativamente efetivo e bastante avançado para sua época. As petições eram analisadas por um Comitê de Três do Conselho da Liga, aos Estados interessados era dada uma oportunidade de apresentar suas observações e, quando conveniente, a Corte Permanente de Justiça Internacional era acionada para prestar opiniões consultivas nas questões controversas de direito" (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 13)
[12] As petições individuais de caráter judicial se consolidaram, conforme Denise Sousa (2010, p. 53), por sua adoção pelas Convenções Européia e Americana de Direitos Humanos, que deram fundamentação jurídica aos seus respectivos sistemas regionais de proteção os direitos humanos.
[13] A instituição do Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998, representou o ápice da consolidação da responsabilização do indivíduo por violação às normas de Direito Internacional, expressamente estendendo sua atuação ao julgamento de pessoas que tenham cometido os crimes previstos em seu Estatuto, ainda que sejam Chefes de Estado (PIOVESAN, 2010, p. 200-209)
[14] Não se trata aqui de um padrão universal etnocêntrico, este muito combatido pela doutrina do relativismo cultural, tendo em vista invocar uma visão hegemônica da cultura ocidental em detrimento dos sistemas políticos, econômicos, culturais, sociais e morais vigentes em cada sociedade, e sim da abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro como ser pleno de dignidade e direitos como condição para se atingir uma cultura dos direitos humanos e um universalismo de confluência (PIOVESAN, 2011, p. 44-48).
[15] "[...] aplicar o mecanismo unilateral de aferição da responsabilidade internacional consiste em equiparar o efeito erga omnes das normas imperativas (no caso, as de proteção de direitos humanos) como se fosse mera soma de relações bilaterais entre todos os Estados da comunidade internacional e o Estado violador" (RAMOS, 2002, p. 93).
[16] A responsabilidade internacional se mantém, no entanto, um instituto consuetudinário, não obstante várias tentativas de fixação de normas convencionais sobre seus conceitos básicos tenham sido realizadas. Em 11 de agosto de 2000, um projeto de 59 artigos foi provisoriamente aprovado, discorrendo, dentre outras matérias, sobre elementos da responsabilidade e procedimentos de implementação (ANNONI, 2009, p. 37-38).
[17] "De um lado, estão aqueles que consideram que tal regra é substantiva, afirmando que a responsabilidade internacional do Estado só surge após o esgotamento dos recursos internos. O esgotamento prévio dos recursos internos seria elemento da própria responsabilidade internacional do Estado. [...] De outro lado, parte da doutrina afirma que a responsabilidade internacional do Estado nasce com a violação do Direito Internacional, sendo a regra do esgotamento dos recursos internos requisito meramente processual" (RAMOS, 2002, p. 113).
[18] Cançado Trindade (1991, p. 20) expõe que, no caso da proteção diplomática, "é manifesto o caráter preventivo da regra de esgotamento dos recursos internos, abordada de modo "negativo", como objeção substantiva impedindo a intervenção diplomática até que os recursos internos tenham sido esgotados em vão".
[19] Como as conferências do México (1901-1902), do Rio de Janeiro (1906), de Buenos Aires (1918), de Santiago (1923), de Havena (1928), de Montevidéu (1993), de Lima (1938) e de Bogotá (1948) (COELHO, 2008, p. 55).
[20] "Há uma outra posição que é defendida pela jurisprudência internacional, segundo a qual as declarações expressam a "consciência moral da humanidade". Um Estado, ao assinar uma declaração, assume os direitos por ela protegidos como princípios gerais do direito, portanto, ficando obrigados a respeitá-los. Para o direito internacional, uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional passa a ter força de jus cogens" (HANASHIRO, 2001, p. 30). O efeito normativo das normas de jus cogens e sua definição como norma imperativa de Direito Internacional geral estão dispostos no artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que só permite sua derrogação por outra normal ulterior de mesma natureza.
[21] "A Declaração foi adotada como uma resolução de conferência não-vinculante que foi imaginada por aqueles que a elaboraram para não possuir efeitos legais [...]. Muito gradativamente, no entanto, a condição jurídica da Declaração Americana começou a mudar. Hoje é considerada como o instrumento normativo que incorpora a interpretação oficial dos "direitos fundamentais do indivíduo" que o artigo 3(l) da Carta da OEA proclama" (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 262).
[22] Todos os 35 Estados independentes e soberanos das Américas ratificaram a Carta da OEA, sendo membros: Antígua e Barbuda, Argentina, Barbados, Bahamas, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba (excluída em 1962, mas em processo de diálogo para restaurar sua participação), Dominica, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.
[23] Original em inglês: "[...] the legal mechanisms or norms of both systems apply to different aspects of one and the same human rights situation".
[24] "Ainda que a Convenção Americana seja modelada nos instrumentos de direitos humanos da ONU e na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, os elaboradores da Convenção Americana recusaram-se a simplesmente repetir esses tratados. [...] As circunstâncias e realidade social dos Estados desenvolvidos - de que era composto o sistema europeu de direitos humanos - diferenciavam-se bastante dos muitos Estados subdesenvolvidos do sistema interamericano. Extremos de pobreza e saúde contribuíram para uma instabilidade política no sistema interamericano. Miséria, injustiça e exploração são fatos característicos da região. Não surpreendentemente, a opressão econômica e social deu origem à opressão política e à violações dos direitos humanos. [...] Como resultado, por muitos anos os principais casos no sistema interamericano envolveram desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais resultantes de políticas governamentais intencionais" (PASQUALUCCI, 2003, p. 4-5).
[25] Ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago (embora posteriormente tenha denunciado a Convenção), Uruguai e Venezuela (denunciando a Convenção em setembro de 2012).
[26] Original em inglês: "The State Parties to the Convention have an obligation not only to "to respect", the rights guaranteed in the Convention, but also "to ensure" their free and full exercise. Consequently, they have both positive and negative duties, that is, they have the obligation not to violate the rights which the Convention guarantees and are required to adopt whatever measures may be necessary and reasonable under the circumstances "to ensure" their full enjoyment".
[27] Conforme o artigo 27, 1, da Convenção, são estes: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica; o direito à vida; o direito à integridade pessoal; a proibição da escravidão e da servidão; a legalidade e a proibição da retroatividade; o direito à liberdade de consciência e de religião; a proteção da família'; o direito ao nome; os direitos das crianças; o direito à nacionalidade e os direitos políticos.
[28] O referido art. 5°, §3°, dispõe: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
[29]"Por essa razão, não falamos em jurisprudência da Comissão, mas em prática" (HANASHIRO, 2001, p. 37)"
[30] Apenas uma denúncia desta natureza foi peticionada até hoje, sendo considerada inadmissível pelo fato do Estado requerente, o Nicarágua, que se posicionava em face da Costa Rica, não ter exaurido os recursos internos para solucionar o conflito, falhando ainda em demonstrar a prática sistemática de discriminação que motivou a reclamação (BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART, 2009, p. 269).
[31] "A operação da regra, assim concebida, na proteção dos direitos humanos, não há de ser excessivamente dificultada (o que poderia ocorrer em decorrência de analogias inadequadas com sua incidência no direito internacional geral), pois há sempre a possibilidade de estabelecer diretrizes específicas para aquela aplicação, particularmente em um sistema que se baseia, ainda em grande parte, em obrigações derivadas de tratados de proteção. A razão de ser da regra dos recursos internos, abordada de modo "positivo" no presente domínio, não impede, e antes recomenda, sua interpretação e aplicação mais flexíveis no contexto da proteção dos direitos humanos" (TRINDADE, 1991, p. 20-21).
[32] Jo M Pasqualucci (2003, p. 220) destaca que os Estados têm constantemente ignorado sua responsabilidade perante a Comissão, assumindo-as posteriormente quando o caso é levado à Corte, causando uma prorrogação desnecessária no deslinde dos casos.
[33] "Desde sua instituição, em meados de 1979, a Corte já teve quatro Regulamentos. O primeiro foi adotado em 1980, tendo se inspirado no Regulamento da Corte Européia de Direitos Humanos (que, por seu turno, seguiu o Regulamento da Corte Internacional de Justiça de Haia, à qual apenas os Estados têm acesso); o Segundo, em 1991 (a ele se seguirem resoluções da Corte aperfeiçoá-lo); o Terceiro, em 16.09.1996, passando a vigora a partir de 01 de janeiro do ano seguinte; e o Quarto, em 24.11.200, vigente a partir de 01.06.2001" (SOUSA, 2010, p. 158).
[34] Consoante Olaya Hanashiro, "tal definição tem sido muito criticada por reduzir a Corte a uma simples instituição estabelecida pela Convenção em vez de outorgar-lhe o status de organismo especializado da OEA, o que lhe daria uma posição bem mais definida dentro da Carta da Organização. Embora a Comissão tenha sido fortalecida ao ter sua existência afirmada por um tratado, a amplitude de suas ações deve-se ao fato de ela ter sido transformada em órgão da Organização" (2001, p. 41).
[35] Não reconhecem a competência da Corte em matéria contenciosa, dentre aqueles que ratificaram a Convenção Americana, os Estados de Barbados, Granada e Jamaica.
[36] Flávia Piovesan e Cançado Trindade compartilham a opinião de que tal dispositivo constitui um anacronismo histórico, que dever ser superado, a fim de que se consagre o "automatismo da jurisdição obrigatória da Corte para todos os Estados-partes da Convenção", nas palavras de Trindade. Isto é, todo Estado-parte da Convenção passaria a reconhecer como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, integralmente e sem restrição nenhuma, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção (PIOVESAN, 2012, p. 338).
[37] "Frise-se que além desse Dec. Legislativo 89/98, não houve a necessidade de Decreto do Poder Executivo para fins de promulgação do reconhecimento da jurisdição contenciosa da corte, uma vez que aquele apenas autorizou o Executivo a aceitar jurisdição da Corte, não tendo inovado a ordem jurídica brasileira (dispensando, assim, a promulgação por meio de um novo decreto presidencial" (MAZZOULI, 2011, p. 33).
[38] Além dos Estados-membros, podem apresentar consulta à Corte os seguintes órgãos da OEA: o Conselho Permanente, a Comissão Consultiva de Defesa, o Órgão de Consulta, resultado da Reunião de Consultas dos Ministros das Relações exteriores dos Estados-membros da OEA e, é claro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (ANNONI, 2009, p. 103).
[39] "Essas opiniões consultivas não ajudam de imediato na proteção desses direitos, mas reforçam os princípios e a interpretação dos instrumentos de proteção aos direitos humanos que devem orientar o sistema interamericano, criando uma espécie de "jurisprudência emergente"" (HANASHIRO, 2001, p. 39).
[40] "Nos processos interpostos perante a Corte, a representação dos Estados será feita por meio de um "agente" (que poderá ter a assistência de qualquer pessoa de sua escolha). Já a representação da Comissão será realizada por meio de "delegados" designados que, igualmente, também poderão ser assistidos por quaisquer pessoas de sua escolha" (SOUSA, 2010, p. 155).
[41] Original em inglês: "Cases before international tribunals are generally heard by judges who were trained in different legal traditions. The two primary legal systems are civil and common law. [...] Under common law, the parties are adversaries who bear the iniative in presenting evidence. The function of the judge is to serve as a disinterested umpire. [...] Under civil law, the functions of the judge are more comprehensive that under common law. Judges take a much active part in the direction of the proceedings and in the examination of the witnesses. [...] Evidentiary practice in international law more closely parallels that of civil law in that it is encumbered by fewer technical and restrictive rules, and the judge determines the weight to be given to the evidence submitted".
[42] Assim é determinado no artigo 68, 1, da Convenção Americana, quando dispõe que: "Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo o caso em que forem partes.".
[43] Há situações em que há a própria Corte falhou em não submeter os casos para a Assembleia Geral, espécie de negligência que pode comprometer ainda mais a funcionalidade política já pouco expressiva do sistema interamericano. A exemplo, Buergenthal, Shelton e Stewart (2009, p.302-303) citam que o governo de Honduras deixou por vários anos de pagar o valor total devido a título de compensação definido pela Corte no caso Velasquez Rodriguez e Godinez Cruz. Nos relatórios anuais da Corte para a Assembleia Geral nos anos em o que o governo de Honduras restou em débito, nenhuma reclamação formal foi feita. Como resultado, o pagamento foi cumprido anos depois pelo governo de Honduras na presidência de Carlos Roberto Reina, ex-presidente da Corte Interamericana.
[44] Marinoni e Arenhart, considerando a tutela inibitória como uma tutela em face de ato contrário ao direito, fazem referência aos artigos 461 do Código de Processo Civil e 84 do Código de Defesa do Consumidor. Em redações idênticas, estes artigos prevêem a possibilidade da tutela ser concedida liminarmente quando relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final. Os autores acreditam que neles se estabelecem técnicas processuais que permitem a construção mais adequada no caso concreto, viabilizando o alcance do direito material almejado da melhor forma possível, inclusive evitando sua violação, se possível (2011, p. 73-80).
[45] Original em inglês: "The purpose of interim measures is precisely to close that gap. These measures are an institution whose objective is to guarantee the practical effectiveness of rights so that they are not just rhetorical. In the end, what is most significant is the recognition that rights are not only included on an international plane and the States internationally responsible in the event of their violation, but that all individuals believe that those rights will be protected before they are affected".
[46] O artigo 25, 2, do Regulamento da Comissão Interamericana, estabelece que: "Em situações de gravidade e urgência a Comissão poderá, por iniciativa própria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis a pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, independentemente de qualquer petição ou caso pendente."
[47] Referido artigo dispõe: "Para os efeitos desta Convenção, a tramitação de petições ou comunicações apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em que se alegar o desaparecimento forçado de pessoas estará sujeita aos procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e nos Estatutos e Regulamentos da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive as normas relativas a medidas cautelares."
[48] O conceito de recomendação está estritamente ligado à concepção de soft law no Direito Internacional, que incorpora noções de flexibilidade e capacidade de oferecer soluções mais rápidas para os problemas das relações sociais em razão do grau de normatividade menor que o tradicional e a consequente elaboração de regras sem as dificuldades inerentes a esforços de articulação prolongados e de inúmeros óbices jurídicos-políticos (PORTELA, 2011, p. 82-84).
[49]“Quando uma ordem de medida provisória não reflete de forma integral ou em parte a opinião unânime dos juízes, qualquer um deles pode juntar à ordem uma opinião individual ou discordante. […] Em suas opiniões concordantes, os juízes oferecem razões adicionais para apoiar a decisão da Corte” (HERRERA, 2010, p. 143)
[50] O Complexo do Tatuapé, da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - FEBEM, foi a maior e mais antiga unidade do sistema, porém marcada por rebeliões e acusações de espancamentos que levaram à Corte Interamericana a conceder medida provisória para garantir a integridade física dos adolescentes, sendo desativada em outubro de 2007 (FOLHA ONLINE, 2007). As rebeliões foram marcadas por violência e morte de menores, enquanto se relatava a ausência de tratamento médico, superlotação e o uso de represálias com sinais de tortura nas crianças e adolescentes internos (CORTE INTEAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005c, p. 2-5).
[51] As medidas são apresentadas, nos diplomas citados, com redação semelhante à do artigo 63, 2, da Convenção Americana. O artigo 41 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, por exemplo, determina que: "A Corte terá faculdade para indicar, se considera que as circunstâncias assim o exijam, as medidas provisórias que devam ser tomadas para resguardar os direitos de cada uma das partes".
[52] Jo M. Pasqualucci (2003, p. 299) explica que o esboço inicial da Convenção não fazia referência às medidas provisórias. A proposta de incluí-las foi feita pela Costa Rica, sugestão que foi acatada de forma unânime sem que os Estados-membros apresentassem discussões ou objeções.
[53] Original em inglês: "The question of whether a Court has inherent powers to order provisional measures is no longer controversial, since this power is essential to protect human rights. The object and purpose of the American Convention is the protection of the rights of individuals, and the final result of the international procedure must have some practical relevance for the person concerned. The Court must have the legal authority to order provisional measures in any case in which there will be immediate and irreparable damage, even after the Court determines the rights of the parties in the case. This power is necessary for the effective functioning of the Inter-American rights system".
[54] Esta prática, no entanto, é fruto da modificação do procedimento anterior, em que a Corte exigia evidências contundentes da Comissão que fossem capazes de provar a veracidade das alegações (PASQUALUCCI, 2003, p. 301-302).
[55] Debate-se acerca do momento em que a Comissão passa a ter competência para requisitar uma medida provisória à Corte. Não obstante as teorias que defendem que as medidas só podem ser solicitadas após a Comissão ter aceitado a petição do caso e declarado sua admissibilidade, a prática da Corte tem demonstrado que é suficiente que a Comissão tenha registrado e tomado conhecimento da petição, sem que seja necessária decisão formal sobre sua admissibilidade (HERRERA, 2010, p. 9-12).
[56] Clara Herrera (2010, p. 18-25) destaca que a requisição de medidas provisórias pelas vítimas passou por um processo de reconhecimento até estar expressamente prevista no Regulamento da Corte de 2004, mas que esta possibilidade sempre foi acatada pelo órgão, nos casos em as vítimas solicitaram esta proteção.
[57] Original em inglês: “An example would be when a witness had received death threats and another witness in the same proceedings was threatened and the killed. The witness who is still alive is in a situation of real danger because in the same case another person who had been in the same position – witness – and who was in the same situation – had received threats – was killed”.
[58] Em estudo comparativo realizado por Clara Herrera, a autora constatou quem em mais das metades dos casos a adoção de medidas provisórias é realizada entre o dia da requisição e cinco dias depois, em reflexo da natureza de urgência do comando (2010, p. 96-97).
[59] Original em inglês: " [...] the State has a special role as guarantor for the persons deprived of liberty in prisons or detention centers, as the prison authorities have total control over them. In addition, one of the duties which the State must inescapably fulfill as guarantor, with a view to protecting and assuring the right of life and physical integrity of persons deprived of liberty, is to [afford] them the minimum conditions in keeping with their dignity while they are held in detention centers”.
[60] “[…] a Corte considera que o dever de investigar, identificar e punir aqueles responsáveis pelos atos que tornaram necessário a adoção de medida provisória é um elemento essencial de proteção, que deve ser levado a feito seriamente e não como mera formalidade fadada a priori a falhar. O dever de investigar está relacionado com a obrigação de cada Estado de combater a impunidade por todos os meios legais disponíveis” (HERRERA, 2010, p. 203-204).
[61] “[...] com o fim de supervision (sic.) o cumprimento das medidas provisórias ordenadas pela Corte, membros da ONG Centro de Justiça Global visitaram a Penitenciária Urso Branco em 15 de julho de 2002. Na madrugada de 16 dejulho de 2002, como forma de represália da referida visita, todos os presos que estavam nas celas que foram visitadas pelos membros do Centro de Justiça Global foram brutalmente espancados e gravemente torturados pelos agentes penitenciários e policiais militares. Estes acontecimentos constituem uma violação do direito à integridade física dos reclusos e, ademais, têm o efeito de intimidá-los para evitar que ofereçam informação sobre a grave situação da penitenciária” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002b, p. 7).
[62] " [...] o Estado informou sobre algumas melhorias na proteção de vida e integridade das pessoas que se encontram na Penitenciária Urso Branco. O aumento de agentes penitenciários por plantão, bem como seu treinamento contribuirão para melhorar tal proteção. Entretanto, trata-se de medidas que surtem efeito a médio prazo e por si não são suficientes para resolver a situação da segurança. O Governo Federal demostrou sua boa vontade em atender as medidas provisórias; entretanto, em seus relatórios não transmite a verdadeira situação da penitenciária. Muitos problemas só são resolvidos provisoriamente quando a Comissão Especial se reúne, já que as autoridades de Rondônia têm se mostrado ineficientes na implementação das medidas" (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005a, p. 12)
[63] "Na visita realizada na Penitenciária em 08 de setembro de 2008 pelo juiz de Execução Penal e membros do Ministério Público, foram encontrados dezesseis detentos com graves sinais de lesões físicas na cela F6. Os atos de tortura física e psicológica teriam sido perpetrados pelo ex-Diretor Geral da Penitenciária e outros quatro agentes, que estariam tentando obter informação sobre a posse de um telefone celular. De acordo com o Ministério Público em sua denúncia penal, os internos foram obrigados a ajoelhar-se durante horas sobre o piso quente e a roer suas próprias unhas até que sangrassem, enquanto permaneciam sob a mira de armas de fogo e eram agredidos pelos agentes com pontapés no corpo e nos pés. Depois da denúncia dos fatos, os detentos receberam ameaças de sofrimento físico, de introdução de drogas em suas celas, entre outras represálias, bem como promessas de vantagens por parte dos agentes carcerários para que mudassem o conteúdo de suas declarações prestadas no marco da investigação. Ademais, o ex-Diretor Geral acusado dos fatos foi removido de suas funções em Urso Branco, mas passou a exercer o cargo de Gerente do Sistema Penitenciário de Rondônia, tendo controle sobre todas as unidades prisionais desse estado" (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 10-11).
[64] "A respeito da supervisão da implementação do Pacto, as partes acordaram em: a) manter em funcionamento a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; b) enviar relatórios semestrais à Comissão Interamericana sobre o cumprimento do Pacto, e c) solicitar uma reunião de trabalho anual perante a Comissão Interamericana para avaliar seu cumprimento. Com base no Pacto assinado entre as partes e as medidas a ser implementadas, o Estado solicitou o levantamento das presentes medidas provisórias." (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011b, p. 4).
[65] Deisy Ventura e Raísa Cetra observam que, na concessão de medidas cautelares, "nota-se o predomínio de dois tipos de situação: de detenção, inclusive de menores, em condições desumanas e degradantes, amiúde agravadas por motins; e de ameaças de eliminação de defensores de direitos humanos (sobretudo envolvidos em conflitos de terra e denúncias de tortura em presídios), de testemunhas de crimes praticados por policiais, grupos de extermínio e crime organizado, e de indígenas envolvidos em processos de demarcação de terra" (2012, p. 23).
[66] Original em inglês: "The right to life is a basic human right, essential for enjoyment of the other human rights. This right encompasses not only the right of every human being not to be arbitrarily deprived of his or her life, but also the right not to be denied the conditions required to ensure a decent existence. The State, by not ensuring the right of the Community to its ancestral territory, has failed to comply with its duty to guarantee the life of its members, as it has deprived the Community of its traditional means of subsistence, forcing it to survive under appalling conditions and leaving it at the mercy of State assistance".
[67] André Luz Siciliano, em artigo em que discorre acerca da questão da implantação da hidrelétrica, entende que, apesar de constituir um rico documento acadêmico e apresentar críticas contundentes, o painel de especialistas falha em não apresentar especialistas em todas as áreas, sendo de notável maioria os antropólogos e biólogos, e em não trazer melhores soluções para os defeitos apontados (2011, p. 19-20).
[68] Em manifestação no sítio eletrônico oficial do Partido Comunista do Brasil - www.pcdob.org.br - o partido julgou que: "A Comissão da OEA, cuja missão de defesa dos direitos humanos tem caráter suplementar à dos Estados nacionais que a compõem, nesse caso claramente ultrapassou sua competência. É lamentável que um órgão multilateral se deixe instrumentalizar por interesses mal-intencionados. Este inusitado pronunciamento se verifica num contexto em que a OEA perde relevância, sobretudo por ser conhecida entre os povos latino-americanos como ‘ministério das Colônias’ dos Estados Unidos – dado seu nefasto papel histórico de suporte e braço da ação norte-americana na região. (...) Em especial, quanto à questão de respeito e de proteção de sua população indígena, o Brasil não reconhece em nenhuma autoridade externa condições para criticar ou orientar suas políticas".
[69] "Ao menos por enquanto, as propostas do Grupo de Trabalho, embora aprovadas pelo Conselho Permanente da OEA, não foram aprovadas pela Assembleia. Estima-se que sejam discutidas numa assembleia extraordinária da OEA, prevista para o primeiro semestre de 2013" (VENTURA; CETRA, 2012, p. 57).
[70] No caso envolvendo a proteção da vida e da integridade física dos internos da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, em Araraquara, a Corte reconheceu que, após a concessão de medida provisória, o Estado brasileiro realizou a transferência de 1.200 beneficiários da medida sem qualquer incidente, garantiu o acesso dos representantes aos centros de detenção e a comunicação dos detentos com familiares, cumpriu com o dever de informação periódica e, ainda, promoveu a modernização na Penitenciária, tornando-a um estabelecimento modelo (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2008a, p. 3-9).
[71] Original em inglês: "In order for there to be a true change in the prison conditions it is necessary that there be a series of actions, but above all it requires a political will. The State authorities must realize that the situation in the places of detention is grave and they must also determine that this serious problem must be resolved. Only in this way will they take the profound measures necessary to change the prison conditions in those countries".
[72] "Por meio de um protocolo adicional à Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1998, a comissão foi extinta e os particulares passaram a ter acesso direto à jurisdição. A comparação inspira cuidados, eis que, no caso das Américas, se a CmIDH fosse extinta, os países que não aceitam a jurisdição obrigatória da CrIDH, entre eles os Estados Unidos, ficariam desprovidos de controle. Por outro lado, permitir o acesso irrestrito à jurisdição interamericana sem dotá-la de meios materiais à altura de uma vertiginosa multiplicação de demandas, resultaria em seu descrédito. Ou seja, extinguir a CmIDH poderia significar, ainda que indiretamente, o colapso da CrIDH" (VENTURA; CETRA, 2012, p. 57).
[73] O autor destaca, ainda, como falhas gerais do sistema interamericano, a falta de participação de potências de influência global, como os Estados Unidos e o Canadá, e a ausência de financiamento adequado à Corte e a Comissão, que impede o funcionamento em tempo integral dos órgãos (PASQUALUCCI, 2003, p. 337-348).
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão e pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera - Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Leonardo Fernandes. Tutelas de urgência no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e sua eficácia no Estado Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51866/tutelas-de-urgencia-no-sistema-interamericano-de-protecao-aos-direitos-humanos-e-sua-eficacia-no-estado-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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