Resumo: O presente artigo busca, a partir das ideias de Habermas e Kant, analisar o problema da representatividade na UE. Utilizando-se de uma análise sistêmica para perceber quais as causas de problemas atuais, como o aumento dos eurocéticos, e como esse sistema pode ser alterado para superar esses problemas.
Palavras-chave: Legislativo; União Europeia; Euroceticismo; Habermas; Kant; Democracia.
Sumário: 1. Introdução. 2.Desenvolvimento. 3.Conclusão. 4.Referências Bibliográfica
Introdução
O déficit democrático é uma expressão que faz referência às situações em que a participação popular não está presente nas decisões tomadas pelos representantes eleitos. Essa expressão foi cunhada pelo cientista político britânico David Marquand. As decisões tomadas pelos representantes costumam ser executivas ou legislativas, mas esse problema de representação costuma ser mais perceptível na esfera legislativa, logo, essa será a esfera focalizada neste artigo.
As causas para esse déficit são diversas. O presente artigo, no entanto, focará principalmente nas relações interpessoais e sociais entre esfera Estatal e privada como causa dessa falta de participação popular no processo legislativo.
No intuito de fazer com que a análise não seja tão distante da realidade e de facilitar o entendimento, a União Europeia será utilizada como exemplo. A UE foi escolhida para ser a base dos exemplos pois a discussão sobre déficit democrático, após o BREXIT principalmente, vem sendo muito abordada. Para utilizar a UE como exemplo, no entanto, é preciso compreender como funciona o processo legislativo e como é feita a escolha dos membros que compõem as instituições atuantes no processo legislativo.
Existem dois tipos de processos legislativos na UE: o Procedimento Legislativo Ordinário, que é o mais utilizado, e o Procedimento Legislativo Especial. O PLO é caracterizado pela colegislação feita pelo Parlamento e pelo Conselho de Ministros. Nesse processo, a Comissão tem a iniciativa legislativa e cria uma proposta de lei. Essa proposta segue para o Parlamento que pode aprovar ou alterá-la e que depois envia a proposta, com ou sem alterações, para o Conselho. Cabe ao Conselho aceitar ou não a posição do Parlamento, caso não aceite, a proposta retorna ao Parlamento que a altera e a reenvia ao Conselho. Esse movimento pendular repete-se no máximo três vezes e a proposta de lei é abandonada caso não seja aprovada nessas três leituras. O PLE é utilizado para a elaboração de leis que abordam temas específicos e ele não é um processo de colegislação. No PLE, a Comissão elabora a proposta e cabe ao Conselho aprová-la, enquanto o Parlamento pode apenas proferir pareceres a respeito desse processo.
A composição dos membros das instituições participantes no processo legislativo é feita de forma diferente em cada uma. No Parlamento, os parlamentares são escolhidos por eleição direta em que cada país, de acordo com a população, tem uma quantidade determinada de parlamentares para eleger. No Conselho de Ministros, os membros são os ministros de Estado – como ministros de finanças, agricultura, saúde e meio ambiente - dos países membros da UE, logo, eles são escolhidos pelo chefe do Executivo de cada país. Na Comissão, o Conselho Europeu, composto pelos chefes de Governo e de Estado da UE, escolhe um presidente, que escolhe o restante dos membros que comporão a Comissão. Tanto o presidente, quanto os demais membros, têm de ser sabatinados e aprovados pelo Parlamento.
A análise desse problema enfrentado por diversas nações será feita a partir das ideias desenvolvidas por Habermas e Kant em suas obras. Baseando-se nas visões a respeito da forma com que as leis e o processo de elaboração delas relacionam-se com a sociedade.
Desenvolvimento
Kant entende que as leis jurídicas são uma categoria das leis morais. Isso significa que as leis jurídicas também precisam ser necessárias e precisam ter uma base a priori para ter força de lei. (KANT, 2014, p. 57)
Nas leis morais, além das leis jurídicas, há também as leis éticas. Elas se diferenciam porque as leis éticas são o próprio fundamento para as ações que estão de acordo com essa lei, enquanto as leis jurídicas são dirigidas a ações externas e são observadas porque há um temor a respeito da sanção. Dessa forma, o autor define que uma ação moral está de acordo com a lei ética, enquanto uma ação legal está de acordo com a lei jurídica. (KANT, 2014, p. 63)
As leis jurídicas, para Kant, buscam retirar a sua validade da garantia da liberdade. Isso significa que as leis têm de garantir a liberdade de cada um perante outros indivíduos e perante o Estado, logo, cabe à legislação sancionar aqueles que atentarem contra a liberdade de terceiros. (HABERMAS, 1997, p. 49)
Após a concentração do poder coercitivo nas mãos do Estado, tornou-se necessário estabelecer uma forma de garantir que as leis criadas fossem voltadas para a manutenção das liberdades. Kant entende que a imposição do Direito pelo Estado e as leis são válidas quando há o processo de normatização, que pressupõe garantir a liberdade e fundar legitimidade. Essa definição do que é válido é importante para que haja um ente responsável por solucionar conflitos de liberdades e evitar que as pessoas resolvam os conflitos entre si e para que esse ente não abuse do poder. (HABERMAS, 1997, p. 48)
Habermas tem uma visão de sociedade diferente da de Kant. Aquele, influenciado pelas ideias de Luhmann, entende que a sociedade se organiza em sistemas funcionalmente específicos que se relacionam a partir da razão comunicativa. (HABERMAS, 1997, p. 18) Kant, no entanto, tem a visão de sociedade que predominava na época dele, a visão de que o Estado tem o papel central e mais importante na organização social.
A razão comunicativa abarca todas as comunicações intersubjetivas para estabelecer a base de uma ordem social. Essa base resulta do engate contínuo dos planos de ações de diversos indivíduos. Isso significa que os indivíduos se comunicam e, a partir da forma com que eles entenderam que os outros vão agir, definem como irão agir. Seguindo a ideia de um efeito dominó, uma definição de ação comunicada influencia a outra, que influencia a outra e assim por diante, logo, a consequência é que se estabelece uma estrutura de ações coordenadas que vai ser a base da sociedade. (HABERMAS, 1997, p. 36)
Essa base, no entanto, é frágil e volátil demais para erigir uma sociedade. Surge então o Direito como um dos atores principais nesse processo de estruturação da sociedade. Isso acontece porque o Direito positivo permite a criação de estruturas artificiais a partir do temor às sanções e a partir do respeito a um suposto pacto social. (HABERMAS, 1997, p. 25)
A comunicação, por ser o começo da base da sociedade e por continuar sendo o meio de relação intersubjetivo, gera um pano de fundo consensual no mundo da vida. Isso significa que no mundo da vida, que é o contexto em que se dão as comunicações, de certa sociedade há uma série de pontos em que, por motivos culturais e históricos, há um posicionamento comum e geral. Esse consenso geral permite maior integração social e a consequente manutenção das sociedades. (HABERMAS, 1997, p. 40)
A partir dessa exposição das ideias de Habermas, surge uma conexão interessante entre os conceitos expostos e a organização da UE. Essa conexão é a de se é possível estabelecer uma sociedade europeia sólida considerando que essa sociedade representa a união de diversas culturas diferentes, ou seja, diversos panos de fundo consensuais. A dúvida aparece porque o pano de fundo, que resulta da comunicação, age como base inicial da sociedade e age na manutenção da sociedade, logo, questiona-se a possibilidade de manutenção de uma sociedade com panos de fundo tão diferentes.
Eu entendo que é possível estabelecer uma sociedade europeia forte e duradoura mesmo com diversos panos de fundo, no entanto, para isso acontecer, alguns requisitos são necessários. A compensação da falta de um pano de fundo consensual deve ser feita pelo Direito. De forma mais específica, a compensação deve ser feita por uma organização institucional democrática e representativa que elabore leis consideradas legítimas pela população.
Os dois autores concordam na definição da legitimidade do Direito. Ambos entendem que, para o Direito ser legítimo, ele tem de ter a função de garantir liberdades e tem de seguir o pensamento democrático. (HABERMAS, 1997, p. 53)
Garantir liberdades, como já exposto, é a ideia de que os sujeitos podem agir livremente, desde que não restrinjam a liberdade de outros. Além disso, cabe ao Estado usar o poder de coerção contra os indivíduos que estão restringindo a liberdade de outros. Essa busca de garantir a liberdade, então, é uma das formas de garantir legitimidade ao Direito.
Na situação da UE, a garantia de liberdades não é um problema. Isso acontece porque, desde os primeiros tratados, o bloco sempre teve a intenção de seguir um caminho liberal. Dessa forma, os princípios base da EU são a livre circulação de serviços, pessoas, mercadorias e capitais e eles fazem com que a questão da restrição de liberdades não seja um problema.
O outro ponto necessário para garantir a legitimidade do Direito é o do respeito ao pensamento democrático. Isso significa que é necessária uma vontade comum a todos os cidadãos para que seja construída uma ordem jurídica legítima. Essa noção comum aos dois autores dá a entender que é necessária a democracia direta para gerar essa legitimidade, no entanto, a forma direta de participação não é viável nos atuais Estados nação, logo, utiliza-se o sistema representativo. No sistema representativo, para haver a vontade comum e para gerar a legitimidade ao Direito, é necessário que os indivíduos sintam-se representados pelos representantes.
Esse ponto da representatividade que gera problemas na UE. Isso acontece porque o modelo de organização dessa união preza mais pela democracia do que pela participação popular. Esse menosprezo pelo povo fica claro na forma com que são elaboradas as normas que regem a UE. Enquanto a elaboração das propostas fica a cargo de um grupo de pessoas escolhidas pelo Executivo dos Estados membros, o povo só participa, por meio do Parlamento, fazendo alterações e aprovando ou recusando a proposta. Ainda há casos em que o Parlamento apenas dá pareceres, logo, a participação da população é praticamente nenhuma.
Esse pouco espaço que a participação popular tem nas definições dos caminhos da UE gera o déficit democrático. O déficit acontece porque as pessoas veem que não é efetivo ir votar em representantes para o Parlamento, pois essa instituição tem pouca força na hora de definir o destino da união e as decisões importantes acabam sendo tomadas pelas instituições que não foram eleitas pelo povo independente do posicionamento do Parlamento. Uma evidência do crescimento desses desinteresse é o de que os europeus votam menos para as eleições da UE do que votam nas eleições nacionais. Dessa forma, as pessoas se distanciam da união e entendem que as decisões tomadas pela UE não são as que elas tomariam se fossem realmente representadas. Dessa forma, o Direito produzido pela UE tem falta de legitimidade por ter falta de democracia.
A crítica às decisões tomadas pela UE gera o enfraquecimento da estrutura social europeia. Esse enfraquecimento pode ser entendido como resultado de um efeito cascata que começa no desenho institucional da UE, que afasta a participação popular. A cascata funciona assim: o desenho institucional da UE dá pouca força para o Parlamento; a pouca força do Parlamento faz com que as pessoas não tenham motivos para votar nas eleições para representantes europeus; não votar faz com que as pessoas entendam que as decisões tomadas pela união não representam o povo, mas representam a vontade dos burocratas; o Direito então perde legitimidade pois é uma representação apenas da vontade dos burocratas; e, como consequência da falta de legitimidade do Direito, há o enfraquecimento do sistema social europeu.
Conclusão
O enfraquecimento da sociedade europeia é o principal motivo para o aumento das críticas à UE. Além do caso extremo de abandono do bloco, como foi o caso do Reino Unido, há o crescimento do descontentamento da população com a organização da união. A maior parte da população europeia, como evidenciado em um estudo feito pelo Pew Research Center, entende que alguns poderes da UE deveriam retornar para os países, pois os europeus não estão de acordo com as decisões que estão sendo tomadas. O descontentamento cresce ainda mais quando se trata de assuntos mais sensíveis, como a questão dos refugiados e a situação econômica da Europa.
A democracia, mesmo estando presente na grande maioria dos países, ainda é um tema que merece ser aprofundado. Isso é necessário porque ela ainda pode ser a solução para diversos problemas atuais. A relação entre a falta de democracia e os problemas vividos pela UE fica evidente como o exposto a partir das teorias de Kant e Habermas. Cabe agora portanto buscar formas viáveis de intensificar a participação popular para garantir a manutenção desse bloco.
Referências Bibliográficas
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
MARTIN, Araceli Mangas; NOGUERAS, Diego J. Linãn. Instituciones y Derecho de la Union Europea. Madrid: Tecnos, 2012.
RANKIN, Jennifer. Is the EU undemocratic?. Disponível em: < https://www.theguardian.com/world/2016/jun/13/is-the-eu-undemocratic-referendum-reality-check#img-1 >. Acesso em: 13 Jun. 2017.
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Bacharelando pela Faculdade de Direito - UnB
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Pedro Henrique Fachini Lustosa da. O déficit democrático da UE analisado a partir de visões Habermasianas e Kantianas. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51956/o-deficit-democratico-da-ue-analisado-a-partir-de-visoes-habermasianas-e-kantianas. Acesso em: 23 dez 2024.
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