RESUMO: O presente artigo visa conhecer as medidas da influência “eu” subjetivo na construção dos sistemas jurídicos, em uma noção atemporal. Nessa empreitada, são compilados os pensamentos de nomes relevantes no cenário filosófico como forma de se entender como a concepção particular se altera na medida em que se alteram também as concepções jurídicas e sociais. O que seria a justiça para o indivíduo? A partir daí, é natural que a linha de estudo extrapole o ser humano isolado e esbarre nas relações intersubjetivas entre eles e as condições nas quais se dão. Como um terceiro passo, analisa-se o requisito básico para o estabelecimento de quaisquer relações interindividuais: o meio em que se dão. Como os sujeitos, em suas particularidades individuais, relacionam-se entre si e com o meio?
Palavras-chave: indivíduo, sociedade, intersubjetivo, justiça, norma, filosofia jurídica.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A massificação do indivíduo como origem do totalitarismo. 2.1. As individualidades e o sistema jurídico. 2.2. O indivíduo “em sociedade” ou “da sociedade”? 3. A resposta positivista. 3.1. O direito como Teoria Pura. 3.2. A pessoa kelseniana e a intersubjetividade. 4. A construção do indivíduo como alicerce do sistema jurídico. 4.1. As últimas consequências de Kant em Fichte. 5. O palco das interações. 5.1. Estado Natural em Rousseau, precursor das políticas ambientais. 6. Conclusões. 7. Referência Bibliográficas.
1. Introdução
O desdobrar histórico da Filosofia e o do Direito, incontestavelmente, esbarram-se e entrelaçam-se. Com o aumento da complexidade das relações sociais e das interações interpessoais, fizeram-se necessários um sistema jurídico que ordenasse a vida em sociedade e uma base que o sustentasse. O indivíduo, quando deixado à mercê de suas liberdades individuais a serem exercidas de forma ilimitada e irrestrita, traduz-se em perigosa arma apontada diretamente para a própria humanidade. Porquanto o homem não vê estabelecida uma linha clara que delimite onde termina o seu direito e começa o do outro, encontrar-nos-emos em uma situação caótica que tende a evoluir para o colapso.
Entra em cena o Direito como responsável por ordenar a vida em sociedade, estabelecendo padrões de conduta e sanções para aqueles desviantes do estabelecido. O Direito é tão perene quanto a própria sociedade e com o transcorrer histórico e à medida que a configuração social se altera, altera-se também a configuração legal. É nesse contexto que, paulatinamente, manifestaram-se as correntes da Filosofia do Direito.
Entende-se aqui como fundamental que se ressalte o papel do indivíduo em algumas dessas correntes. Muitas vezes diluído em uma multidão, em uma comunidade, o ser humano em suas particularidades proeminentemente subjetivas foi, em muitos momentos, um mero coadjuvante, cedendo o papel de protagonista para o ideal comunitário coletivo. O indivíduo não só como receptor do sistema legal, mas como aplicador desse sistema, visto como um leitor mecânico da letra da lei, outrora se configura responsável por adequá-la ao caso concreto. A essa modificação da concepção do indivíduo e como passa a se relacionar com o outro e com o meio é que se busca dar particular atenção.
2. A massificação do indivíduo como origem do totalitarismo
Feito um recorte temporal do período entre as Grandes Guerras, o fenômeno que permeou não só o Direito mas todos os aspectos da sociedade europeia da época foi a associação absoluta entre o indivíduo e a nação a que ele pertencia. Cada partição da vida de cada homem e mulher era ligado à sua nacionalidade: a cultura, a religião, a língua e, notoriamente, o Direito. Para se inserir no sistema jurídico e ver seus direitos resguardados, o indivíduo precisa invariavelmente se localizar e se entender como pertencente a um Estado-Nação.
Um dos múltiplos reflexos desse fenômeno era a diluição das particularidades subjetivas e individuais em um sentimento de pertencimento nacional fomentado pelos nacionalismos efervescentes resultantes da Guerra. O clima de tensão e insegurança que se instaurava na Europa fez com que os cidadãos se abrigassem na proteção estatal, ainda que essa atitude significasse abrir mão de sua individualidade e a inserção em um sistema que tratasse a todos como um bloco massificado de indivíduos nivelados por seu sentimento de pertencimento. A cidadania era também a única forma de obter-se os famigerados Direitos Humanos, em uma clara deturpação do conceito primeiro desse instituto: tais direitos, outrora criados com o intuito de se aplicarem ao ser humano desde o seu nascimento, na realidade somente eram válidos a partir do momento em que esse ser passava a fazer parte da Nação respectiva.
Nesse sentido, Hannah Arendt[1] afirma ser o processo de nacionalização objeto necessário para a obtenção de direitos, o que daria um poder exagerado à ideia de Estado. Por consequência, alimenta o poder totalitário por parte desse Estado que, inflado, permeia – autoritariamente – a vida dos seus cidadãos e até daqueles que não o são, tratando-os como corpos estranhos. O conceito de indivíduo não faz sentido algum em uma sociedade em que tudo o que importa é o povo como uma massa uniformizada submetido a um Estado inflado no qual o único meio de obtenção de direitos e de inserção em um sistema jurídico é uma identificação cultural e nacional.
Para elucidar sua argumentação, Arendt faz uso do exemplo do apátrida, aquele com status de deslocado que se encontrava em um território no qual havia sido inserido a fórceps, em uma nação a qual não pertencia, não o representava nem o amparava, mas, pelo contrário, o repelia. O apátrida estava, teoricamente, sob a proteção internacional da Liga das Nações, mas na prática os Estados-membros que deveriam tutelar essas pessoas não o faziam. Só eram dotados de direitos aqueles que se identificavam com uma nação. A partir daí, era natural que as nacionalidades fossem desleais com o governo que lhes fora imposto e que os governos oprimissem ao máximo essas nacionalidades: países com numerosos grupos minoritários se sentiam encorajados pelo exemplo da Alemanha a se livrar de alguns deles, afinal, como proferiu Hitler “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”.
A situação do apátrida pode ser toda analisada a partir da origem, da semente maligna que era a desvinculação do homem da sua subjetividade, uma verdadeira massificação do indivíduo a partir de uma concepção excessivamente comunitarista. Os expulsos da trindade Estado-povo-território foram a primeira gota de um verdadeiro dilúvio previsto por Arendt e que hoje assola o mundo europeu na forma do refugiado, o novo “indésirable”.
É mister que se ressalte e se preste a máxima atenção ao fato de que Arendt não defende, em qualquer nível, a adoção de um individualismo egoísta como o surgido no liberalismo político, mas sim, uma humanidade que não se vendasse para as particularidades de seus integrantes. Tudo isso com o propósito de uma máxima efetivação e otimização dos Direitos Humanos a todos aqueles que se enquadrassem na situação de humano e não apenas àqueles que se inserissem em determinada sociedade.
2.1. As individualidades e o sistema jurídico
Hannah Arendt assume como de máxima importância a justiça na aplicação do Direito coberta nas vestes da equidade, de forma que o sistema se ajuste a particularidades subjetivas do indivíduo. De um ponto diametralmente oposto parte Hans Kelsen ao tratar como secundário o tema da justiça na aplicação do Direito. O conceito de justo, para Kelsen, residia na adequação ou não do direito positivado ao direito natural: se havia correspondência entre eles, o direito era justo. Essa adequação, porém, era realizada no momento de positivação das leis e das normas da justiça – que eram sempre normas morais.[2]
Em um primeiro momento, as ideias de Kelsen parecem divergir absolutamente das de Arendt e, de fato, eles partem de premissas contrárias no que diz respeito à importância da justiça na construção do Direito. Levemos agora os argumentos de Hannah Arendt às suas últimas consequências. A justiça na aplicação do Direito é o fim último e isso só pode ser atingido a partir de um sistema jurídico de leis que sejam aplicadas de fato, não àqueles selecionados pela nacionalidade, mas àqueles que se adéquem à condição de ser humano. Dessa maneira se daria a construção de uma sociedade justa na visão da filósofa política. Quando analisada minuciosamente, a intenção de Kelsen se mostra muito próxima a esta: a de que o sistema jurídico seja aplicado na vida real dos seres humanos em consonância com as leis que em seu processo de positivação já seriam, por natureza, justas caso seguissem as normas de justiça, sempre morais, mas sendo esse aspecto absolutamente secundário.
A partir da lente jurídica, pode surgir nesse ponto o problema dos casos concretos que não se adéquam ao que foi positivado. Desde Aristóteles até Kelsen, sempre houve os defensores de que existia de fato a possibilidade de lacunas na aplicação do direito. Esses pensadores, contudo, discordam sensivelmente quanto a posição a se tomar nesses casos. O antigo, ao assumir que a lei – de caráter universalizador e absoluto – pode não prever um caso concreto por erro do legislador, soluciona o problema fazendo como o legislador faria se estivesse presente no caso em questão[3]. Kelsen, por sua vez, defende que ao se deparar com esses casos, o aplicador do Direito deve adequar o texto ao caso in concreto[4]. É defensável que a atitude proposta por Kelsen seja a mais indicada na visão de Arendt, porquanto a pensadora alerta para os perigos da universalização absoluta na aplicação das leis.
2.2. O indivíduo “em sociedade” ou “da sociedade”?
É de fácil percepção que o indivíduo sempre foi um ator presente nas cenas da Filosofia do Direito, seja como protagonista, seja como coadjuvante. A individualidade deve sempre ser preservada, mas com a ressalva de que o propósito dessa preservação é justamente o convívio harmonioso em sociedade, não havendo espaço para a sobreposição de um ideal sobre os demais por meio da manipulação do Direito, como ocorria no totalitarismo ou no individualismo.
Surge a distinção entre o “indivíduo em sociedade” e o “indivíduo da sociedade”. O indivíduo em sociedade é aquele que se vê como pertencente a um elo amplo, mas, ao mesmo tempo, é uma parte relevante desse elo que reconhece a subjetividade na medida que é benéfica para a vida social. Em uma sociedade que balanceie a individualidade dos homens e mulheres e o bem-estar social é mais difícil a ocorrência do totalitarismo e de imposições que cerceiam a própria cidadania. Nessa hipótese, o reconhecimento daqueles que merecem a tutela estatal e jurídica não se dá pelo pertencimento a uma nação, mas sim pela qualidade de ser humano que merece a garantia de direitos e um tratamento justo. Situação oposta é observada nos casos de “indivíduos da sociedade”. Nesses casos, a individualidade se perde em meio a uma hipervalorização do social e sufocamento do indivíduo. Nos casos em que o Estado for a base para a ideia de sociedade e ela se resumir a ele, o que se presencia é um terreno extremamente fértil para totalitarismos e opressões.
O ser humano “em sociedade”, ao ser pertencente a esse contexto mais amplo, estabelece relações intersubjetivas e interage com o meio ao seu redor. A ideia de um ser humano isolado é irrealizável, sob pena de perder as características de humano. O meio aqui é determinante para essa construção individual.
3. A resposta positivista
A corrente positivista do Direito é uma das mais famosas formas de se enxergar o sistema jurídico. Essa concepção tomou seus primeiros contornos com a transformação das formas de trabalho da ciência do Direito – inicialmente com a Escola Histórica do Direito com Puchta e Savigny – e foi muito desenvolvida até o positivismo jurídico científico[5].
O positivismo jurídico se alinhava à filosofia natural na operação com enunciados, axiomas ou “princípios primeiros”, forma de realização máxima do projeto sistemático. Aqui, percebe-se a maior aproximação entre o positivismo e a individualidade. Esses princípios primeiros são concentrados no conceito de liberdade, tratada como possibilidades de seleção dirigidas pela vontade. Nesse sistema, a objetividade do Direito era totalmente dependente da vontade subjetiva do aplicador da lei, desde que reconhecesse o Direito objetivo como superior a si. Esse pensamento se encontra bem elucidado na obra de Thomas Vesting:
“A livre vontade estava fundada em um universal, em um outro da razão, para cuja estranheza o indivíduo e sua vontade deveriam abrir-se. (…) A escola Histórica do Direito e o positivismo jurídico-científico enfatizavam, sobretudo, a contribuição ordenadora dos direitos decisórios subjetivos descentrais, em especial, na forma da liberdade de propriedade e da liberdade de contratar. Mas, aqui, o Estado, como personalidade jurídica, também estava integrado na forma de uma subordinação de caráter geral a leis oriundas de um “poder da vontade”.”[6]
Uma face interessante do positivismo jurídico-científico foi o embasamento do sistema jurídico a partir do “poder da vontade” que passaria a ser tomado como base das concepções legais. Essa era, para Puchta, justamente a tarefa de um pensamento sistemático do Direito: a de classificar de modo completo todos os direitos, uma Construction jurídica que significava o sistema como projeto global e era operada segundo regras autocriadas e tinha como nominado objetivo o desenvolvimento de princípios gerais.[7]
É ideal que um dos conceitos líderes do projeto de Universalização do Direito seja a igualdade entre todas as pessoas, para, assim, reduzir o espaço de arbitrariedades que podem surgir ao se delegar a poderes locais a função de adequação do direito à práxis. A quem se dirigem as leis é uma questão fundamental em qualquer sistema legal, no entanto, deve ser analisada com extrema cautela. Nesse ponto, ressalta-se o estudo de Savigny ao adotar a frenologia, ciência da medição de crânios, para definir a qual povo pertencia determinada pessoa e, consequentemente, em qual sistema jurídico ela se inseria. Os desdobramentos dessa concepção são muito perigosos, podendo levar a uma concepção de direito excludente, que resuma a universalização do Direito a um “universal local” de encontro ao conceito de igualdade intentado.[8]
3.1. O Direito como Teoria Pura
Após a crise do projeto sistemático jurídico-positivista por volta de 1900 a obra de Kelsen rechaçou a ideia de um Direito fundado em uma vontade pessoal e adotou a de uma “norma fundamental”. Para tanto, o filósofo afasta do estudo do Direito as outras áreas como a sociologia ou a psicologia.
Para Kelsen, a produção normativa, como já atestado em tópicos anteriores desse artigo, é fruto de um ato de vontade, a qual, não nega ele, está permeado de interferências políticas, religiosas, ideologias, valorações, etc., mas que deve ser explicado pela Ciência do Direito sob um regime depurado, visando-o somente pelo prisma do objeto (a norma jurídica). Assim, o que confere validade ao ato não seria propriamente o seu conteúdo, mas a autorização para produzi-lo.
Diferentemente dos autores da Escola Histórica, Kelsen faz uma distinção muito clara entre o dever-ser e a norma. Assim, a norma como dever-ser dita o ser, a conduta adequada para cada cidadão segundo o estabelecido nas leis.
A lei é concebida como aplicação da Constituição. Aqui, a individualidade tem um papel muito importante, porquanto cada um em seu particular é responsável por seguir ou não as leis. Da mesma forma, o juiz e o administrador, ao estabelecerem a sentença ou o ato administrativo, estão aplicando a legislação. O descumprimento do estabelecimento legal dá margem à punição, sendo que a mera existência de leis já apresenta função coativa. O indivíduo em Kelsen é, como assim já visto, moldado pelas leis:
“O indivíduo que, com o seu ato intencional dirigido à conduta de outrem, criou uma norma jurídica, não precisa continuar a querer essa conduta para que a norma que constitui o sentido do seu ato valha (seja vigente). Os indivíduos que funcionam como órgão legislativo, depois de aprovarem uma
lei que regula determinadas matérias e de a porem, portanto, em vigor, dedicam-se, nas suas resoluções, à regulamentação de outras matérias.”[9]
3.2. A Pessoa Kelseniana e a intersubjetividade
Em Kelsen, estuda-se a distinção entre sujeitos de um dever jurídico e sujeitos de um poder jurídico, sendo esse segundo competente para criar e aplicar normas jurídicas. O jurista defende ainda que a autonomia jurídica só existe em um sentido muito limitado e impróprio:
“Na verdade, ninguém pode conceder-se direitos a si próprio, pois o direito de um apenas existe sob o pressuposto do dever de outro, e uma tal conexão jurídica, de acordo com a ordem jurídica objetiva, apenas pode constituir-se, no domínio do direito privado, em regra, através da manifestação concordante da vontade de dois indivíduos. E isto também somente na medida em que o contrato é assumido pelo Direito objetivo como fator criador de Direito, de tal forma que a regulamentação jurídica, em última análise, resulta precisamente deste Direito objetivo e não do sujeito jurídico que lhe está subordinado.” [10]
Kelsen julga a forma mais aproximada de um direito individual a asseguração da propriedade privada. A ideologia da subjetividade jurídica se liga com o valor ético da liberdade individual, da personalidade autônoma da propriedade. Ora, não há razão de ser da confirmação da propriedade privada perante o nada, apenas perante o outro, ainda que observadas as particularidades subjetivas. Não há de se pensar a análise do Direito, portanto, sem as relações intersubjetivas.
O comum dualismo entre o Direito subjetivo, a titularidade jurídica do sujeito, e o Direito objetivo, da ordem jurídica do sistema de normas, é superada na Teoria Pura que entende a pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas. Kelsen reduz o dever e o direito subjetivo à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e torna a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida.[11]
4. A construção do indivíduo como alicerce do sistema jurídico
Outro passo importante para o reconhecimento individual, após as particularidades individuais de Arendt e a intersubjetividade do positivismo de Kelsen, foi a filosofia moral (ou prática) de Kant, todos isoladamente considerados, mas ainda assim intimamente relacionados.
A moral kantiana consiste no reconhecimento da pessoa como fim em si mesma. O conceito que orienta todo esse estudo é o da liberdade, não como “conferir poder”, mas como “estar autorizado a” estreitamente conectado com a capacidade racional do indivíduo e não com sensações ou busca pela felicidade, de prazeres, ou de fuga da dor. A liberdade aqui é pautada pela autonomia da vontade, uma ação consciente e acordada com a lei que cada um impõe a si mesmo. Consolida-se a tríade kantiana: liberdade, autonomia e moral.[12]
A lei, para Kant, é interna ao indivíduo. Se somos livres, somos obrigados a agir de acordo com uma lei que outorgamos a nós mesmos. Essa lei viria invariavelmente da razão, conceito sempre interligado ao da moral, “uma razão prática pura, que cria suas leis a priori, a despeito de quaisquer objetivos empíricos”. O imperativo categórico, caro conceito para a filosofia de Kant, surge como a ação boa em si, não direcionada a qualquer fim, não relacionado com o objetivo da ação e seus possíveis resultados, mas sim com sua forma e com o princípio do qual partiu. Seria esse o verdadeiro imperativo da moralidade. O indivíduo só age livremente quando age segundo o imperativo categórico, desvinculado de algum interesse ou objetivo externo.[13]
O sistema jurídico, por sua vez, é um imperativo ligado ao poder de coerção e coação do Estado. Assim surgem os deveres como ações às quais os indivíduos estão obrigados. No entanto, é, ao mesmo tempo, natural, porquanto o direito é fruto da racionalidade que é uma só para todos os seres humanos. É a vertente objetiva da moral aquela responsável pela regência do Direito. A partir do conceito de liberdade como autorização, nasce o de licitude/ilicitude, paralelamente ao de justo/injusto. A transgressão é caracterizada como fato contrário ao dever. É sensível, portanto, a distinção entre a conformidade de uma ação com a lei do dever (legalidade) e a conformidade da máxima de uma ação com uma lei (moralidade). O indivíduo é livre para escolher agir de acordo com a lei ou não, mas sempre de acordo com a razão.[14]
O Direito é a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com a lei universal da liberdade. No entanto, o Direito não é a imposição de leis, porquanto é baseado na razão e a razão é uma só para todos os seres humanos, ainda que use como pressuposto a moral universal:
“A lei universal do direito [...] age externamente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma obrigação, mas não guarda de modo algum a expectativa de que eu próprio devesse restringir minha liberdade a essas condições simplesmente em função dessa obrigação; em lugar disso, a razão diz apenas que a liberdade está limitada àquelas condições em conformidade com sua ideia e de que ela pode também ser ativamente limitada por outros. Quando o objetivo de alguém não é ensinar virtude, mas somente expor o que é direito, não é permissível e nem deveríamos representar aquela lei do direito como ela mesma sendo o motivo da ação”[15]
Em última análise, é perceptível que toda a filosofia de Kant reverbera os sons do indivíduo: sua razão, sua liberdade e sua moral. A partir da autonomia da vontade, o homem ou mulher define se age ou não de acordo com a lei, pautado sempre por um limite moral. Assim se constrói o Direito: a soma das atitudes morais individuais de acordo ou não com as leis, o que dá espaço para o poder coercitivo do Estado.
4.1. As últimas consequências de Kant em Fichte
A filosofia Kantiana, pautada pelo indivíduo, foi marcada pela extrapolação trazida em Johann Fichte. O alemão enxerga o indivíduo, mas ressalta a relação desse indivíduo com os demais. O “eu” agora não está sozinho, mas acompanhado do não-eu. Nessa visão a partir da qual o indivíduo enxerga o mundo ao seu redor, a identidade ou unidade é a origem da oposição e da diferença.
Particularmente em seu Segundo Teorema, Fichte transmite a ideia de que não há consciência própria sem consciência do outro, ou seja, o ser racional finito não pode pôr a si mesmo como livre, no mundo sensível, sem admitir outros seres racionais fora de si. O argumento, portanto, que revela a estrutura intersubjetiva da razão finita é bastante claro: o reconhecimento do outro – como ser racional – é condição da própria consciência[16]. Isso porque a razão tem como núcleo fundamental a liberdade, em alinhamento com Kant.
Com o desenvolver de seu pensamento, Fichte chega ao seu Quinto Teorema, no qual afirma que “a pessoa não pode se atribuir um corpo sem o pôr como se encontrando sob influência de outra pessoa fora dela”[17]. A conjugação dos teoremas nos leva a uma reflexão acerca das interações sociais, possibilidade que só existe graças à existência corpórea dos indivíduos.
5. O palco das interações
A linha de raciocínio desenhada até aqui abordou a existência do “eu”, do “não-eu” e das interações entre eles. Volta-se a atenção agora ao elemento que possibilita as relações corpóreas: o meio. Pela análise racional o “eu” não pode existir no nada, bem como o reconhecimento do “não-eu” não ocorre no vazio, uma vez que os indivíduos são corpóreos, em conformidade com a teoria de Fichte. O indivíduo só existe no meio em que habita, onde trava também suas relações interpessoais. O meio é, portanto, requisito ontológico do “eu”, do “não-eu”, e da relação entre eles.
A partir de uma análise das intenções de Fichte em sua obra, a possibilidade de sanção a um indivíduo que ofenda o ambiente é um claro exemplo da existência do “não-eu” e da sua relação com o indivíduo. A punição é aplicada mesmo a quem titulariza o direito, porquanto o ordenamento percebe que uma vida social organizada não pode ter como objeto apenas a proteção dos interesses individuais nas suas esferas particulares, mas sim de toda a comunidade para propiciar um equilíbrio nas relações intersubjetivas.
5.1. Estado Natural em Rousseau, precursor das políticas ambientais
A natureza, como meio de interação entre o “eu” e o “outro”, é de tamanha onipresença que permeia a obra de relevantes autores da filosofia do Direito. Rousseau indica a natureza como conceito filosófico estruturante de uma reforma moral e intelectual. Assim, é visto como um precursor dos movimentos ecológicos, pois, mesmo sem conhecer as consequências destrutivas que o progresso e a revolução industrial causariam aos recursos naturais do planeta, Rousseau contribuiu para a criação de uma nova mentalidade a respeito de nossas relações com a natureza, como enunciado por ele, “a ponto de me fundir, por assim dizer, no conjunto dos seres, de me identificar com a natureza inteira”. [18]
Rousseau radicaliza essa concepção de natureza: não é mais um conceito místico, tampouco mecânico, como na física contemporânea, mas uma unidade pré-empírica que age autonomamente, uma unidade perfeita, anterior à sociedade. A análise do autor não é tampouco irrelevante: a natureza, como já visto anteriormente nesse artigo, é um pré-requisito, portanto, anterior à existência do ser.
Aqui é estabelecida a unidade entre homem e universo, aspirando uma interioridade vinda da natureza, fornecedora de harmonias e proporções. Para a individualidade, Rousseau supera a razão como regente do indivíduo e passa a adotar a própria natureza[19]. Admite, no entanto, que o estado de natureza original não pode mais ser alcançado, mas que o uso dos padrões da natureza permite uma referência para aquilo que há de enganoso na sociedade. Rousseau diferencia ainda o homem, que tem por objetivo a própria conservação, e o cidadão, como aquele que objetiva a conservação do corpo social. No entanto, a liberdade moral do cidadão depende da preparação do homem, pois o homem só respeita as leis sociais a partir do domínio das paixões. O alicerce da educação, para Rousseau, está na natureza e ressoa também na educação ambiental. O homem, no entanto, está “na” natureza e, junto a ela, e a partir dela se constrói a subjetividade e a intersubjetividade.[20]
A relação entre o indivíduo e o meio não pode ser enxergada, assim, como uma relação entre sujeito e objeto. A consciência que temos hoje em relação ao meio ambiente é adequada nesse ponto na medida em que é adotada a noção de socio-ambiente, uma relação dialética da interação cultura-natureza, englobando a informação técnica para se sintetizar em decisões.
6. Conclusões
O estudo do indivíduo na Filosofia do Direito parte da objetivação de justiça social. Uma sociedade justa se constrói a partir do comportamento justo de cada um dos seus participantes e, principalmente, daqueles responsáveis pela aplicação do Direito. A individualidade e as relações de interações individuais são de fundamental importância nessa empreitada. A adequação e aplicação das normas à realidade social concreta é a forma mais efetiva de se alcançar a eficiência do sistema jurídico como instrumento de garantia da justiça na vida em sociedade.
O arranjo normativo como estabelecimento de preceitos básicos a serem seguidos por todos os ordenamentos, na forma de Construction como apregoado pela Escola Histórica, é uma estratégia interessante para o cerceamento de ideais totalitários que cerceiem individualidades. Dessa maneira, mesmo que partindo de premissas opostas, muitos dos filósofos se alinham no sentido de buscarem estruturar um sistema jurídico efetivo e válido, seja a lei moldando o indivíduo, ou a moral sendo fonte da lei.
O caminho percorrido no presente ensaio nos leva à evolução de um entendimento do indivíduo como fim em si mesmo. O “eu” racional como fonte de moral não é constituinte de um ordenamento jurídico. As relações interpessoais só surgem quando o indivíduo percebe o outro e com ele estabelece contato. Contudo, interação alguma seria possível sem o suporte material do meio em que vivem. O meio é, portanto, em última análise, o alicerce da filosofia do ser, do outro e das relações entre eles. Não é possível a existência de um ser racional dotado de vontade em um ambiente definhado. Assim, o Direito é a forma de conservação em cada uma dessas etapas para possibilitar a continuidade de cada um dos institutos da tríade apresentada nesse artigo.
Remanescem questionamentos para pensadores e pesquisadores: teria o individualismo deturpado a construção de Arendt e se desenvolvido na atual crise ambiental? Em que medida o totalitarismo pôde ser combatido quando do reconhecimento das particularidades? Como o Direito enxerga o indivíduo na reforma ambiental? Questionamentos nessa linha podem servir de sugestões para trabalhos que complementem o presente artigo e prossigam com o pensar da Filosofia do Direito.
7. Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro, Oito Exercícios sobre o pensamento Político. Lisboa, Relógio de Água, 2006.
______. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia de Letras, 1998.
ARISTÓTELES. “Ética a Nicômaco” in. Os pensadores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
HERMANN, Nadja. Rousseau: o retorno à natureza, in: Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental, 2006, p.97. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001831/183196poro.pdf Acesso em: 12/06/2018.
FICHTE, Johann G. Foundations of Natural Rights. Cambridge: University Press, 2000.
KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. O Problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ROUSSEAU, J.J. Os devaneios do caminhante solitário, 1782. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986.
______. Lettres philosophiques. Paris: Librarie Philosophique J., 1734.
VESTING, Thomas. Teoria do Direito. São Paulo: Saraiva, 2015.
[1] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo, 1998, p. 322.
[2] KELSEN, Hans. O problema da justiça, 1998, p. 6.
[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1137b.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito, 2003.
[5] VESTING, Thomas. Teoria do Direito, p. 108.
[6] Idem, p. 113
[7] Idem, p.115.
[8] Idem, pp. 115-118.
[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito, p. 11.
[10] Idem, p. 119.
[11] Idem, p. 134.
[12] KANT, Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. 2014, p.58.
[13] Idem, p.63.
[14] Idem, p.69.
[15] Idem, p.77.
[16] FICHTE, 2000, pp. 29-39.
[17] Idem, p.61.
[18] ROUSSEAU, J.J. Os devaneios do caminhante solitário, 1782, p. 95.
[19] ROUSSEAU, J.J. Lettres philosophiques, 1734, p. 54.
[20] HERMANN, Nadja. Rousseau: o retorno à natureza, in: Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental, 2006, p.97.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARUSO, Vitória da Costa. O indivíduo na construção filosófica do Direito: do eu ao outro ao meio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2018, 21:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52018/o-individuo-na-construcao-filosofica-do-direito-do-eu-ao-outro-ao-meio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
Precisa estar logado para fazer comentários.