RESUMO: O estudo destaca a pertinência do controle judicial das políticas públicas como instituto que garante o acesso aos direitos fundamentais sociais, nomeadamemte, os que asseguram o mínimo existencial que permite concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana. A judicialização da política é um fenómeno contemporâneo que apresenta posicionamentos divergentes, principalmente sob as óticas do Estado prestador e do juiz garantidor. Todavia, essa judicialização muitas vezes torna- se o único instrumento eficaz para a efetivação dos direitos sociais, individuais e coletivos. O presente trabalho apresenta uma breve explanação acerca dos argumentos justificadores da interferência do aparelho judiciário na implementação das políticas públicas, promovendo o debate sobre o tema e contra-argumentando face às teses usualmente utilizadas pelo Estado para refutar o ativismo judicial.
Palavras-chave:Políticas públicas; Direito Constitucional; mínimo existencial; reserva do possível; judicialização.
ABSTRACT: The study emphasizes the pertinence of judicial cooperation in public policies as an institute guaranteeing access to fundamental social rights, especially those that ensure the existential minimum able to realize the principle of human dignity. The judicialization of politics is a contemporary phenomenon that presents divergent positions, mainly under the optics of the providing State and the guarantor judge. However, this judicialization often becomes the only effective instrument for the realization of social, individual and collective rights. This paper presents a brief explanation about the justificatory arguments of the judicial intervention in the implementation of public policies, promoting the debate on the subject and counter-arguing the theses usually used by the State to refute judicial activism.
Keywords: Public policy; Constitutional right; minimum existential; reservation for contingencies; judicialization.
SUMÁRIO: 1.Introdução – 2. Direitos Fundamentais Sociais e o mínimo – 3. O papel das políticas públicas como garantidoras do mínimo existencial do indivíduo - 4. Teoria da Reserva do Possível – 5. Judicialização das Políticas Públicas – 6. Considerações Finais – 7. Bibliografia.
1. Introdução
Os direitos humanos vivem em constante evolução desde o estabelecimento dos direitos da liberdade, estes surgidos com as revoluções liberais e a transição do Estado Absolutista para o Estado Liberal de Direito, mais precisamente com o advento da Constituição Americana de 1787 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, da França. Esse momento foi entendido como a 1ª geração dos direitos humanos, cuja característica básica é o fato de servirem como limitadores negativos à atuação do Estado, que não poderia intervir nas liberdades pessoais.
Mais à frente, os direitos humanos evoluíram para o que se entende por sua 2ª geração. O período vivido é agora o de transformação do Estado Liberal para o Estado Social, em que se reclama a necessidade do Estado intervir no domínio econômico e praticar uma política distributiva de determinados serviços sociais, como a saúde e a educação, com o objetivo de promover a igualdade entre os assistidos. O Estado passa a assumir, então, o papel de prestador de direitos positivos, intitulados agora como direitos fundamentais.
Nesse âmbito, ou seja, analisando os limites formais e materiais do papel do Estado como implementador de políticas públicas de caráter social, bem como as nuances da judicialização desses direitos em caso de omissão estatal justificada, sobretudo, pelas suas impossibilidades orçamentárias, é feita a seguinte pergunta: quais os limites à legitimidade do Poder Judiciário para figurar como agente implementador de políticas públicas em face da omissão do Estado Prestador de direitos sociais?
O tema é de importante relevância quando se considera que os poderes estatais devem ser separados e harmônicos entre si. Ocorre que desenho e a implementação das políticas sociais são de responsabilidade primária do Poder Executivo, que os executa de acordo com seu planeamento orçamental, pelo que importa averiguar até onde se justifica a judicialização dos direitos fundamentais sociais sob essa ótica. É importante desenvolver e ponderar a tese da reserva do possível, confrontada com a garantia do mínimo existencial do indivíduo.
Para o desenvolvimento da pesquisa, lançaremos mão de recursos bibliográficos, através da consulta realizada em livros, artigos, periódicos etc., bem como, mediante pesquisa documental empreendida à jurisprudência dos Tribunais brasileiros, e de doutrinas reconhecidas internacionalmente e sítios de internet, visando conferir e analisar os critérios utilizados pelos pensadores, legisladores, gestores e julgadores acerca do tema.
2. Direitos Fundamentais Sociais e o mínimo existencial
Os direitos fundamentais do homem tiveram a sua evolução geracional notadamente em três grandes fases: a primeira, com o advento das liberdades individuais como forma de limitar o poder estatal e com a afirmação dos poderes políticos, tendo como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder; a segunda, após o fim da primeira guerra mundial, com o surgimento direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências da comunidade, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, mas material, o que passou a exigir do Estado uma função prestacional positiva; e, por fim, a terceira geração, que se entende pelos chamados direitos de solidariedade e fraternidade. Fala-se, ainda, de direitos fundamentais de quarta geração, que são os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.
Os direitos sociais manifestaram-se como condições de implementação da justiça social, e constituem um verdadeiro credenciamento ao indivíduo para exigir do Estado uma postura ativa, no sentido de colocar à disposição daqueles credores prestações de natureza formal ou material que lhes permita proporcionar melhores condições de vida, de maneira equitativa. Baseiam-se, portanto, no princípio norteador da dignidade da pessoa humana.
No Brasil, os direitos sociais são definidos no art. 6º da Constituição Federal de 1988, como sendo os direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados (Brasil, 1988).
A título de exemplo e de comparação, a Constituição Portuguesa, por sua vez, define como direitos e deveres sociais os previstos nos arts. 63 a 72, enumerados como: direito à segurança social e solidariedade, à saúde, à habitação e urbanismo, ao ambiente e à qualidade de vida, e direitos de proteção à família, à paternidade e maternidade, e proteção à infância, juventude, terceira idade e aos cidadãos portadores de deficiência (Portugal, 1976).
Dentro desse tema, acrescente-se a existência do princípio da proibição do retrocesso social, que vem adjudicar aos direitos fundamentais, especialmente aos direitos tidos como sociais, constância nas garantias dispostas na Carta Política. Para que haja concretização desses direitos, o Estado deve agir de forma a não barrar o avanço na aquisição pretérita das garantias constitucionais, possibilitando, assim, que a sociedade avance sempre no sentido de assegurar aos indivíduos o acesso ao que já fora disponibilizado anteriormente, evitando, assim, a supressão dos direitos individuais fundamentais.
Dentre todos os direitos sociais costuma-se apontar um grupo menor e mais específico, fundado na dignidade da pessoa humana, composto pelos bens e utilidades básicas imprescindíveis para uma vida digna, o que a doutrina denomina de mínimo existencial. Podem ser apontados como integrantes desse grupo os “direitos à saúde, à educação, à assistência aos desamparados (alimentação, vestuário e abrigo) e o acesso à justiça” (CUNHA JR. & NOVELINO, 2015: 150).
A Teoria do Mínimo Existencial trata a dignidade da pessoa humana como parâmetro para conferir efetividade às normas da Lei Fundamental. Tem como origem a Constituição Alemã de 1919 – Constituição de Weimar – que no seu art. 151 contextualizou que a vida económica do país teria como objetivo assegurar a todos uma existência com dignidade. (SARLET, 2015).
Mais tarde, o mínimo existencial pôde ser valorado através da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (ONU, 1948):
Art. 25. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
Sem a prestação do mínimo existencial, não há como se vislumbrar a igualdade social. Com mais importância entre os demais direitos sociais fundamentais, os direitos que compõem o grupo do mínimo existencial reclamam o desenho e a implementação de políticas públicas. Estas, por sua vez, necessitam de recursos para serem concretizadas, sendo o papel do Estado encontrar um equilíbrio entre o poder de arrecadação e o dever de prestação, de modo a atender as necessidades coletivas. O mínimo existencial, além de direito fundamental do indivíduo, configura-se como um verdadeiro dever do Estado.
3. O papel das políticas públicas como garantidoras do mínimo existencial do indivíduo
Objetivando exercer seu papel de promotor dos direitos prestacionais, o Estado desenvolve suas políticas sociais, definidas como uma série de políticas públicas planejadas e desenhadas com a finalidade de se alcançar as suas finalidades sociais, ou seja, o bem-estar da sociedade.
É nesse enquadramento que Joaquim Croca Caeiro define as políticas públicas como “o conjunto de actuações do Estado no sentido da prossecução dos objectivos sociais para os indivíduos que pertencem a uma dada sociedade” (2015a: 21). E continua o autor: “quanto às políticas públicas, constituem elas uma forma de intervenção do Estado na sociedade para de uma forma mais ou menos pronunciada, solucionar a ineficiência do mercado” (2015b: 55).
Em outras palavras, consistem as políticas públicas em ações, metas e planos que gestores governamentais, muitas vezes em conjunto com outros atores da iniciativa privada, traçam com o objetivo de atender a demanda da sociedade, tudo com o objetivo de atingir o bem-estar social. Ocorre que os governos buscam atender a determinados grupos sociais de acordo com a hierarquia das prioridades das suas solicitações, tendo em consideração, sobretudo, a limitação orçamental, o que pode acabar gerando um conflito de interesses dentro da sociedade.
A concretização dos direitos sociais nem sempre ocorre de forma efetiva, sobretudo em virtude da falta de planeamento estatal em propor soluções eficazes para atender às demandas da sociedade. Mesmo com a maioria dos direitos incorporados nas Cartas constitucionais, o que mais se vê como exemplo em diversos países é a falta ou ineficiência de atendimento à saúde, à educação de qualidade, à moradia etc, o que gera a exclusão social de uma parcela considerável da população.
Sobre o Brasil, especificamente, citemos como ilustração alguns dados oficiais do ano de 2014, obtidos do sítio da internet da Unicef – Fundo das Nações Unidas para a infância. O país tem uma população de mais de duzentos milhões de pessoas, dentre as quais quase sessenta milhões são crianças e adolescentes. Ainda é uma das nações mais desiguais do mundo em termos de distribuição de riqueza entre as classes. No país ainda se enfrenta uma crise educacional, com mais de três milhões de crianças fora da escola, na sua grande maioria todas pobres, negras, indígenas e quilombolas. Mais de um milhão e meio de crianças e adolescentes até quinze anos trabalham para contribuir com a renda familiar. E conclui a matéria (UNICEF, 2014):
O Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência. No entanto, é necessário adotar políticas públicas capazes de combater e superar as desigualdades geográficas, sociais e étnicas do País e celebrar a riqueza de sua diversidade.
A situação de pobreza em Portugal e na União Europeia também é preocupante. Segundo os indicadores exemplificados no sítio de internet da European Anti Poverty Network (Rede Europeia Anti-Pobreza), “em 2013, 24.5% da população europeia (aproximadamente 122.6 milhões de pessoas na EU28) era considerada como estando em risco de pobreza e/ou exclusão social (...). O valor registado para Portugal era de 27.5%”. (EAPN, 2015).
As políticas públicas de caráter social devem ter como objetivo, principalmente, a garantia do acesso do indivíduo ao mínimo existencial, seja abrangendo o caráter alimentar, seja possibilitando condições viáveis de educação e de trabalho, ou oferecendo serviços eficazes à saúde e viabilizando uma moradia digna, tudo de modo a concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana.
A efetividade do mínimo existencial tem uma importância fundamental em sua dimensão prestacional, pois é por meio de políticas públicas de distribuição de renda e serviços que se pretende promover a justiça social.
4. Teoria da Reserva do Possível
E é no contexto da garantia ao mínimo existencial que se estuda a existência ou não da limitação material orçamental como obstáculo ao gozo dos direitos sociais mínimos, compreendida como teoria da reserva do possível.
A reserva do possível consiste em um argumento jurídico surgido na Alemanha segundo o qual, em uma circunstância de escassez, o Estado não tem a obrigação de fornecer o impossível, o inexistente ou o indisponível. O princípio tem duas vertentes: a formal, que vem junto com a ideia de falta de capacidade para gerir os recursos e, a material, que é diretamente ligada à escassez orçamental. Essa última ótica é a normalmente adotada pelo Estado para justificar a sua omissão em estabelecer prestações positivas aos indivíduos através da implementação de políticas públicas sociais.
A ideia central de tal princípio é a destinação de todo o possível para atender os direitos fundamentais do indivíduo, até o seu esgotamento, no entanto, com intuito de evitar que se coloque em risco o orçamento público. Não se trata, portanto, da negativa do Estado em cumprir os direitos, ou negar direitos aos cidadãos, mas, sim, de limitar o que não há condições de atender. (SILVA & VITA, 2014).
O grande problema surge quando a sociedade procura uma prestação advinda do mínimo existencial e o Estado se utiliza da reserva do possível para se eximir de tal obrigação. Nesses casos, o mais coerente seria a utilização dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade como critério de aferição da urgência da garantia aos direitos fundamentais reclamados. Nessa ponderação de valores, pretende-se resguardar o equilíbrio entre a necessidade do indivíduo e a limitação material do Estado, de forma a não se promover o retrocesso social.
Numa análise processual, é necessário que o julgador se valha da utilização do princípio da proporcionalidade para coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, de forma a evitar a supressão de um bem de maior relevância em relação a outro bem de menor relevância, ainda que seja mais urgente. Trata-se, portanto, de “critério de aferição da validade e das limitações aos direitos fundamentais”. (SILVA & VITA, 2014).
5. Judicialização das Políticas Públicas
A questão que se propõe discutir e elucidar diz respeito à possibilidade de intervenção do Poder Judiciário na implementação de certas políticas públicas. Duvida-se, principalmente, da legitimidade desse poder estatal, frente ao princípio da separação dos poderes, já que os atos de administração estatal pertencem, sobretudo, ao Poder Executivo. Além disso, tem de se analisar a capacidade e a competência do juiz para intervir diretamente em questões que envolvem ônus ao orçamento público. Em contrapartida a tais aspectos, indaga-se como ficaria assegurado o acesso aos direitos fundamentais sociais constitucionalmente previstos em caso de omissão estatal? A resposta certamente não seria outra, a não ser o da possibilidade do indivíduo exercer efetivamente o direito também garantido constitucionalmente de acesso à justiça.
Robert Alexy cita como referência, na Alemanha, para o início da judicialização dos direitos sociais três decisões simbólicas sobre o tema, “a decisão acerca da assistência social, de 1951; a primeira decisão sobe numerus clausus; e a decisão da Lei Provisória sobre o Ensino Superior Integrado na Baixa Saxônia” (2011a: 436).
No primeiro exemplo, o tribunal alemão acaba por reconhecer que o indivíduo tem garantido constitucionalmente o direito à assistência estatal, todavia ressalta que caso o legislador se abstenha arbitrariamente de realizar tal tarefa, daí poderia surgir para o indivíduo uma pretensão a ser ajuizada a título de reclamação constitucional. Surge, neste caso, uma breve noção do que se entende hoje por mínimo existencial. Já o segundo marco trata sobre a decisão da recusa do pedido de estudantes que não foram aceites nos cursos de medicina em universidades alemãs em razão da limitação de vagas. O fundamento para a negativa foi de que não seria razoável esperar do Estado o oferecimento de vagas ilimitadas, tendo em vista que não se pode exigir desse Ente Público nada além dos limites da possibilidade e razoabilidade. Nasce, então, o princípio da reserva do possível. O terceiro exemplo citado por Alexy diz respeito ao direito a medidas estatais de caráter organizacional. Explica que “é um direito à criação de determinadas normas jurídicas. Com isso surge um novo aspecto no círculo dos direitos a prestações: o direito a prestações normativas” (2011b:440)
Sobre a controvérsia do tema, a primeira análise diz respeito à separação dos poderes estatais. O Brasil, por exemplo, é organizado sob um modelo que se fundamenta na separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos independentes e harmônicos entre si. A Constituição portuguesa, por sua vez, enumera como órgãos de soberania, separados e interdependentes, o Presidente da República (chefe de Estado que, dentre outras funções, fiscaliza as atividades de governo), a Assembleia da República (com função legislativa), o Governo (função executiva) e os Tribunais (função judicial). Ambas as repúblicas, portanto, baseiam-se no modelo de separação de poderes idealizada por Montesquieu.
Partindo da teoria da separação e independência entre os poderes estatais, é que o Estado baseia seu entendimento de que não cabe ao Poder Judiciário a interferência direta na implementação de política pública, ainda que de caráter social. Todavia, pelo menos no Brasil, essa justificativa não vem sendo aceita, notadamente quando se trata de julgamentos que envolvam direitos fundamentais sociais.
É bem verdade que seria um retrocesso se cogitar que o princípio da separação dos poderes pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos sociais. Ingrid Queiroz Dias acrescenta o seguinte (DIAS, 2009):
Nesse sentido, a correta interpretação do princípio da separação dos Poderes, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a Administração Pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Fora desse contexto, quando a Administração extrapola os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem sentido, ou fugindo da finalidade à qual estava vinculada, descabe a aplicação do referido princípio, e autorizado se encontra o Poder Judiciário a reconhecer que o Executivo não cumpriu com sua obrigação legal, agredindo, com isso, direitos difusos e coletivos, e a corrigir tal distorção para restaurar a ordem jurídica violada.
Em seguida, temos de questionar sobre os limites do controle em si dos atos da administração pela justiça. De um modo geral, o entendimento majoritário é de que o julgador, ainda que possa adentrar à análise da discricionariedade dos atos da administração, não poderia interferir diretamente no mérito administrativo, ou seja, estaria impedido de decidir acerca dos critérios de conveniência e de oportunidade da Administração.
Ocorre que no caso de averiguação das políticas públicas, há de se lembrar que em um Estado Democrático e Constitucional de Direito tem como pilares a dignidade da pessoa humana e a garantia aos direitos fundamentais, tudo fomentado em uma Carta Constitucional suprema, que há de ser seguida por todos, inclusive pelos poderes estatais. E é nessa ótica que se aceita o controle judicial de políticas públicas que assegurem o acesso do indivíduo aos seus direitos fundamentais. É o que se pode conceituar por ativismo judicial (DIAS, 2009):
Com base no ativismo judicial, é possível uma atuação ais ampla do judiciário, cabendo ainda alguma interferência no campo de atuação dos demais Poderes. Ele visa a tornar possível não só o controle de atuação dos Poderes adjacentes, como também uma maior concretização e efetiva implementação de valores e preceitos constitucionais. Tal atuação busca possibilitar o alcance máximo das potencialidades constantes do texto constitucional, sem permitir, entretanto, que o postulado de criação livre atinente ao Direito tenha seus limites invadidos.
É bem fácil constatar que os poderes legislativo e executivo muitas vezes são omissos em atender os mandamentos constitucionais assistenciais, seja por ineficiência da máquina pública, seja por ausência de leis ou por inexistência de políticas públicas. Nesses casos, o judiciário tem total legitimidade para agir, desde que seja provocado.
Quando se fala em ativismo judicial, portanto, não se está a autorizar que o judiciário faça as vezes de legislador, porque tal função não lhe compete. O que deve se ter em mente é que o julgador pode e deve garantir aos cidadãos a efetividade dos direitos básicos que lhes são ofertados constitucionalmente para a garantia do mínimo existencial. Saliente-se que esse é o entendimento adotado atualmente pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro, conforme decisão emblemática sobre o tema, na Arguição de Preceito Fundamental nº 45, cuja ementa serve de ilustração (STF, 2004):
EMENTA: arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao supremo tribunal federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)
Por fim, quanto ao argumento de escassez de orçamento trazido pelo poder executivo como óbice à interferência judicial coercitiva nas políticas públicas, há que se considerar que para que o Estado justifique a falta de orçamento a ser empregado nas medidas prestacionais sociais, ele tem que comprovar sua incapacidade econômico-financeira de modo geral e abrangente, de modo que não se detecte que há orçamento para a implementação de outras atividades de governo supérfluas em detrimento das atividades de base, garantidoras do mínimo existencial. Ademais, como solução para essa questão, não se olvide que o julgador pode conceder um prazo razoável para que o Poder Público promova o cumprimento do texto constitucional sem que comprometa o orçamento de outros programas governamentais em execução.
Vê-se, então, que o problema orçamentário utilizado como defesa do Estado pode ser resolvido através de um ativismo judicial cauteloso, porém austero e comprometido com o cumprimento e a guarda da Constituição.
6. Considerações Finais
Os direitos sociais, enquanto extensão dos direitos humanos, têm caráter de direito fundamental e devem ter acesso assegurado a todos os indivíduos, ainda que se objetivando a garantia do mínimo existencial.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 afirma ser dever do Estado a satisfação de uma série de direitos sociais, muitos garantidores do mínimo existencial. Entretanto, para que se concretizem plenamente as prestações positivas por parte da Administração Pública nesse sentido, muitos obstáculos devem ser enfrentados, notadamente os de caráter financeiro. Mesmo diante da limitação orçamentária e da justificação da reserva do possível, é bem verdade que o Poder Judiciário tem procurado sanar as omissões estatais, no sentido de garantir a implementação de certas políticas sociais prestacionais, sobretudo nos casos em que o pedido feito envolve situações em que está em risco o mínimo existencial.
Todas as esferas do Poder Público devem interagir de modo a cumprir os mandamentos constitucionais. E dentre todos os poderes, é da competência do Judiciário o controle jurisdicional dos atos da administração, seja para sanar ilegalidades, seja para ponderar a proporcionalidade e razoabilidade da matéria reclamada em juízo. E, mais do que tudo, é função precípua do judiciário zelar pela guarda e cumprimento do texto constitucional, incluindo aí a proteção dos direitos ali escritos contra quaisquer provocações externas, inclusive advindas de outros poderes do Estado.
Com o avanço da sociedade atual e a fixação dos direitos sociais fundamentais como espécies de direitos humanos, não há mais dúvidas acerca da possibilidade do judiciário interferir na atuação do poder político enquanto ator responsável pela coercibilidade da fixação e implementação de políticas públicas, quando cabível a sua participação.
O presente estudo não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim o de demonstrar a importância do tema escolhido, que merece constante reflexão.
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Advogada, Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado do Ceará. Mestranda em Gestão e Políticas Públicas pelo Instituto Superior de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Lisboa (ISCSP-ULisboa). Especialista em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALENCAR, Anne Carolinne Tavares Pereira de. A legitimidade do Poder Judiciário para implementar políticas públicas: os direitos fundamentais sociais, a garantia do mínimo existencial e a teoria da reserva do possível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52090/a-legitimidade-do-poder-judiciario-para-implementar-politicas-publicas-os-direitos-fundamentais-sociais-a-garantia-do-minimo-existencial-e-a-teoria-da-reserva-do-possivel. Acesso em: 23 dez 2024.
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