Resumo: O objetivo do presente artigo é demonstrar juridicamente em que consiste a responsabilidade ambiental, relacionando-a com a função social da propriedade, esclarecendo o caráter propter rem das obrigações daí advindas, notadamente quanto ao instituto da reserva legal. Ademais, busca-se explicar a tutela civil do meio ambiente, justificando a adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro da teoria objetiva da responsabilidade na modalidade do risco integral; apontar a relação entre o interesse público na função social da propriedade e a obrigação propter rem na reparação do dano ambiental; e analisar o instituto da reserva legal à luz dos conceitos de responsabilidade civil, obrigação propter rem e função socioambiental da propriedade. Concluiu-se que o reconhecimento na ordem jurídica brasileira de que a mantença da preservação nas propriedades privadas, notadamente no que se refere à reserva legal, possui natureza jurídica de obrigação propter rem, entendimento amplamente ratificado pelos Tribunais Superiores brasileiros, alterou as características da relação responsabilidade, propriedade e função social, consolidando o sistema de responsabilidade objetiva na modalidade do risco integral. Para tanto, tomou-se por base metodológica a utilização de pesquisa documental e bibliográfica, apoiando-se no método dedutivo, contando com o amparo da jurisprudência brasileira, que debate e ratifica os posicionamentos abordados e dos doutrinadores especializados que reconhecem a obrigação propter rem no sistema de responsabilização civil pelo dano ao meio ambiente, servindo este instituto, inclusive, como garantidor da função social da propriedade.
Palavras-chave: direito ambiental; função social da propriedade; obrigação propter rem; reserva legal; responsabilidade civil ambiental.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Meio ambiente ecologicamente equilibrado, um dever de todos. 1.1 A proteção ao meio ambiente na ordem constitucional brasileira. 1.2 A tutela civil do meio ambiente. 1.3 As teorias de aplicação da responsabilidade civil no direito ambiental. 2 A ecologização da propriedade. 2.1 O valor da proteção e o valor do desenvolvimento. 2.2 A função socioambiental da propriedade. 3 Reparação do dano ambiental como obrigação propter rem. 3.1 A reparação do dano ambiental. 3.2 O caráter propter rem da responsabilidade ambiental. 3.3 Uma análise efetiva: a reserva legal e a função socioambiental da propriedade. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
A Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/81, definiu meio ambiente como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Ao conceituar nestes moldes o instituto, entendeu-se a natureza de um modo interativo e integrativo. Com isso, a lei finalmente encampou a ideia de ecossistema, que é a unidade básica da ecologia, ciência que estuda a relação entre os seres vivos e o seu ambiente, de maneira que cada recurso ambiental passou a ser considerado como sendo parte de um todo indivisível, com o qual se relaciona mutuamente e depende de forma direta.
Atribui-se, ainda, ao bem ambiental, uma natureza jurídica difusa, pautada nos direitos transindividuais, isto é, transcendendo o direito subjetivo privado e se estendendo pelo público, de modo a constituir um interesse comunitário de natureza cultural, não corporativo.
Nesse sentido, em respeito à definição jurídica do meio ambiente e sua natureza, apreende-se que tutela deste bem se propõe a resguardar não apenas a vida humana, mas o equilíbrio ecológico e todos os seus componentes. Não pode o homem, desta forma, subjugar a natureza apenas fazendo uso dos bens ambientais, sem levar em consideração o dever jurídico de preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A par disso, a Constituição brasileira asseverou a conservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, qualificando-o como bem de uso comum do povo e elemento essencial à sadia qualidade de vida. Diante das eventuais ameaças a esse direito, foi necessária a criação de um sistema de responsabilidade civil ambiental, cujas normas distinguem-se daquelas atinentes a responsabilidade civil clássica.
Isso só foi possível a partir do comprometimento do Direito com os valores consagrados pela sociedade que, admitindo a simbiose entre princípios e normas para determinar as regras de conduta social, permite ao legislador atribuir a responsabilidade civil objetiva – cujos elementos são: uma conduta (positiva ou negativa), também chamada de evento danoso, o dano propriamente dito e o nexo de causalidade entre eles, não se avaliando a culpa – para os prejuízos causados ao patrimônio ambiental, considerando que tais danos, uma vez executados, são sofridos por toda coletividade, além da insegurança material e jurídica consequente da dificuldade em se demonstrar a conduta culposa do causador das lesões.
Tais medidas foram adotadas em função da necessidade de se equilibrar a crise ambiental decorrente do processo de industrialização da sociedade, que provocou um sensível aumento na degradação da natureza. Salta aos olhos que o interesse público, neste caso, é superior ao do particular que violou o meio ambiente para obter proveitos ou benefícios de qualquer espécie.
A obrigação correspondente à responsabilização pelo dano ambiental consiste, preferencialmente, na restauração, recuperação e correção do meio degradado, iniciando-se esse processo com a cessação da atividade lesiva. A moeda que quita este tipo de débito com a sociedade de imediato, não é a de cunho monetário e apenas quando o dano ambiental, do ponto de vista ecológico, é irreversível, admite-se a reparação pecuniária. Isso se deve ao fato de que a ofensa não é à ordem econômica e nem a um valor abstrato, mas sim a um bem concreto e que para cumprir sua função social, necessita ser recuperado. Ressalte-se que este entendimento se aplica independente do infrator ser uma grande empresa ou um pequeno proprietário rural.
Neste particular, nota-se que o cumprimento da função social da propriedade necessita estar em paridade com a preservação do meio ambiente, a fim de possibilitar o equilíbrio fundamental para garantir a dinâmica da vida em comunidade. Fala-se, então, em função socioambiental da propriedade, que não é uma mera proibição de se lesar o meio ambiente, mas sim a adequação das atividades exercidas pelos particulares à manutenção dele.
Ao se tratar de dano ecológico, não se pode pensar em outra forma de responsabilidade objetiva que não seja a do risco integral, pois ela é a que permite a mais eficiente responsabilização de prejuízos ambientais, ao exigir para a sua caracterização tão somente a configuração do evento danoso e do nexo causal. Tal posicionamento legal viabiliza, ainda, o cumprimento da função socioambiental da propriedade e sua respectiva exigência.
Diante de toda a proteção jurídica ambiental, bastante relevante doutrinaria e jurisprudencialmente é a discussão acerca da natureza real propter rem da obrigação de promover a reparação de uma área degradada. Em razão dela, o novo proprietário de um imóvel que tenha sofrido dano ambiental também é responsável por ele, ainda que a referida lesão tenha sido causada pelo antigo proprietário. Com isso, tenta-se evitar que o novo responsável deixe de adotar as providências necessárias a permitir o retorno do equilíbrio ambiental, sob o argumento de não ter sido o causador do dano ou de não o ter iniciado.
Daí, surge a indagação acerca da consistência e amplitude da responsabilização do adquirente de uma propriedade eivada de danos ambientais, considerando o caráter propter rem relativo a essa obrigação e a função socioambiental da propriedade.
Esta indagação é o ponto de partida deste trabalho, que tem por objetivo geral, em razão disso, demonstrar juridicamente em que consiste a responsabilidade ambiental, relacionando-a com a função social da propriedade, além de esclarecer o caráter propter rem das obrigações daí advindas. Buscando, ainda explicar a tutela civil do meio ambiente, justificando a adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro da teoria objetiva da responsabilidade na modalidade do risco integral; apontar a relação entre o interesse público na função social da propriedade e a obrigação propter rem na reparação do dano ambiental e analisar o instituto da reserva legal à luz dos conceitos de responsabilidade civil, obrigação propter rem e função socioambiental da propriedade desenvolvidos na pesquisa.
Para tanto, será tomado por base metodológica a utilização de pesquisa documental e bibliográfica, contando com o amparo da jurisprudência brasileira, que ratifica os posicionamentos abordados e dos doutrinadores do Direito Ambiental que reconhecem a obrigação propter rem no sistema de responsabilização civil pelo dano ao meio ambiente, servindo este instituto, inclusive, como garantidor da função social da propriedade.
1 MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO, UM DEVER DE TODOS
1.1 A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
No ordenamento jurídico brasileiro, o Direito Ambiental tem como principal fonte formal a Carta Magna de 1988. Entretanto, essa é uma novidade em nosso sistema normativo constitucional, que durante muito tempo deixou desamparado o meio ambiente, não reconhecendo a necessidade de proteção a esse fundamental bem jurídico, nem regulamentando o seu uso racional. Com a atual Constituição Federal, a fruição de um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado foi elevada ao patamar de direito fundamental, possibilitando a criação de um conjunto de garantias da qualidade de vida dos cidadãos e de desenvolvimento econômico com respeito ao meio ambiente.
Neste documento legal, há a definição de um sistema que ultrapassa meras disposições esparsas, tendo em vista a existência de um capítulo próprio para as questões ambientais e outros diversos artigos que disciplinam as obrigações da sociedade e do Estado brasileiro com o meio ambiente. Há um enorme progresso entre a atual Carta Magna brasileira e as anteriores no tocante a proteção ambiental, sendo ela chamada, por muitos, inclusive de “constituição verde”.
A complexidade da norma constitucional ambiental é abordada por Paulo de Bessa Antunes:
Em 1988 buscou-se estabelecer uma harmonia entre os diferentes dispositivos voltados para defesa do meio ambiente. A norma constitucional ambiental é parte integrante de um complexo mais amplo e podemos dizer, sem risco de errar, que ela faz a interseção entre as normas de natureza econômica e aquelas destinadas à proteção dos direitos individuais. Decorre daí parte da grande complexidade do Direito Ambiental e de sua aplicação prática e concreta.[1]
Infere-se, pois, que a aplicação e interpretação das normas constitucionais relativas ao meio ambiente deve se concretizar a partir da análise das diferentes ligações que elas guardam entre si e entre outros ramos do direito, além da sensibilidade social. O artigo constitucional que representa a referida proteção é o 225 que estabelece em seu caput: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.[2]
Dele, se extrai que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é universal, o que confirma o status de importância desse bem jurídico na sociedade. Verifica-se também a obrigação compartilhada entre as esferas pública e privada para sua conservação e defesa. Deste comando emergem duas obrigações distintas: a de não degradar e a de promover a recuperação das áreas já deterioradas, salientando o caráter dinâmico da predita conservação. Este é o entender de Antunes, ao escrever:
[...] Isto porque não estamos diante de um bem que possa ser incluído dentre aqueles pertencentes a uma ou outra pessoa jurídica de direito público, pelo contrário, o meio ambiente é integrado por bens pertencentes a diversas pessoas jurídicas, naturais ou não, públicas ou privadas. O que a Constituição fez foi criar uma categoria jurídica capaz de impor, a todos quantos se utilizem de recursos naturais, uma obrigação de zelo para com o meio ambiente. Trata-se de uma modalidade de intervenção econômica que visa garantir a todos o acesso aos bens ambientais. Não se olvide, contudo, que o conceito de uso comum de todos rompe com o tradicional enfoque de que os bens de uso comum só podem ser bens públicos. Não, a Constituição Federal estabeleceu que, mesmo no domínio privado, podem ser fixadas obrigações para que os proprietários assegurem a fruição, por todos, dos aspectos ambientais de bens de sua propriedade.[3]
Um meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui, portanto, não apenas um direito de todos, mas também um dever.
1.2 A TUTELA CIVIL DO MEIO AMBIENTE
Como visto, na atual conjectura constitucional jurídica brasileira, em se tratando de matéria ambiental, não há falar-se em irresponsabilidade, tendo em vista o contido no art. 225 da Constituição Federal. No entanto, antes da promulgação da Carta Magna vigente, dispositivo anterior cuidou de disciplinar a tutela civil ambiental, a Lei nº 6.938/81 (PNMA), ainda em vigor, cujo art. 14, § 1º, fundamentando a responsabilidade no risco da atividade, dispõe:
Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.[4]
Entretanto, para que a conduta lesiva ao meio ambiente fosse disciplinada, necessária foi a evolução no pensamento jurídico sobre a responsabilidade civil. De modo geral, o desenvolvimento da vida em sociedade pressupôs o disciplinamento do uso (e do abuso), tanto dos bens individuais, quanto dos que pertenciam e interessavam a coletividade, através de um sistema de regras que indicasse condutas e que tornasse possível a aferição da responsabilidade do sujeito infrator, sobretudo quando a consequência era a perturbação social.
Partindo disso, elaborou-se a teoria da responsabilidade subjetiva, que tornava imprescindível a apuração da culpa e da existência da lesão, avaliando o nexo de causalidade entre eles a fim de promover a reparação do dano por quem a este tivesse dado causa. Daí é que, doutrinariamente, classifica-se o dever genérico de não lesionar direito de outrem como matriz originária do dever jurídico, do qual decorre a responsabilidade.
A teoria subjetiva da responsabilidade, corrente vigorante no direito tradicional e também adotada pela legislação civil pátria, defende que a reparação por conduta ilícita só pode ser atribuída ao agente após a aferição da vontade deste em cometer o ato, enquadrando-a nos critérios do dolo (consciência e vontade livre de praticá-lo) ou da culpa em sentido estrito (em que deve ser observado se infrator agiu com negligência, imprudência ou imperícia, omitindo-se no cumprimento do dever de cuidado, que causou danos a outrem).
Entendendo a responsabilidade civil como uma importante arma de defesa dos interesses coletivos, manifesta-se precisa a sua relação com a preservação do meio ambiente, considerando que a degradação dos recursos naturais constitui um grave prejuízo patrimonial, tanto do ponto de vista particular, como do coletivo, constituindo, nítida e inegavelmente, um dano e gerando, consequentemente, a obrigação de repará-lo. Constata-se, pois, que a responsabilização civil necessita ser a reação ao cometimento de um dano ambiental.
Antônio Herman Vasconcelos e Benjamin defende a necessidade da referida responsabilização, identificando as razões que justificam a aplicação do instituto neste campo:
a) A transformação do ambiente de recurso infinito e inesgotável (por isso mesmo res communis) em recurso crítico e escasso, daí valorizado, b) a percepção de que a intervenção solitária do Estado, via comando-e-controle (ou seja, Direito Público), não protegia suficientemente o meio ambiente, c) a compreensão de que, por melhores que sejam a prevenção e a precaução, danos ambientais ocorrerão, na medida em que “os acidentes são normais em qualquer atividade”, d) o caráter contraditório da mensagem enviada pelo ordenamento ao mercado, colocando seu exército sancionatório penal e administrativo em combate e, ao mesmo tempo, isentando o bolso (o “orgão” mais sensível do ser humano) do poluidor, ao afastar a possibilidade de sua responsabilização civil, e) o surgimento de novos direitos subjetivos , até constitucionalizados (art. 225, da Constituição brasileira, p. ex.), a exigir submissão das condutas anti ambientais a duplo controle, público (centralizado) e privado (descentralizado), f) uma maior sensibilidade do Direito para com a posição da vítima (favor victimae), própria do Welfare State.[5]
Nota-se, portanto, que o Direito Ambiental necessita da reparação aliada a prevenção e precaução para que possa alcançar a efetividade no cumprimento daquilo que tutela. Até mesmo porque admite-se inevitável a ocorrência de eventos que prejudiquem o equilíbrio ambiental, posto que qualquer atividade que sofre interferência humana está sujeita a acidentes.
Diante disso, ao resguardar a natureza, o instituto da responsabilidade civil precisa seguir por outra vertente, beber em novas fontes que conservem paridade com princípios e objetivos próprios do Direito Ambiental e que honrem a magnitude deste bem jurídico, viabilizando também a superação dos obstáculos que se apresentam frente à regulamentação desta proteção.
Nesta linha de entendimento, pode-se afirmar que a questão que permeia a reparação do dano ambiental não é a de se verificar a intenção ou a culpa do agente, mas sim a ocorrência, a causalidade do prejuízo. Tal preceito encontra azo na teoria objetiva da responsabilidade, que se baseia na abstração do elemento culposo, imputando-se o dever de indenizar a quem cause dano a outrem, independentemente da subjetividade presente na conduta seguida. Isto é, a responsabilidade surge do próprio fato que causou o prejuízo ao violar o direito de alguém, tornando dispensável a avaliação da culpabilidade do agente. É suficiente apurar se houve o dano, vinculado a um fato qualquer, para assegurar a vítima uma indenização.
Daí se depreende que os elementos da responsabilidade objetiva são: uma conduta (positiva ou negativa), também chamada de evento danoso, o dano propriamente e o nexo de causalidade entre eles. Diga-se de passagem, esses são os mesmos da teoria subjetiva, na qual se acrescenta a culpa.
Em se tratando do meio ambiente, o evento danoso é toda e qualquer conduta, positiva ou negativa que possua o condão de prejudicar as condições naturais do meio e dos seus componentes, poluindo-o, degradando-o ou lesando-o, independentemente de eventuais investigações quanto à inobservância de regras ou padrões específicos. Vale destacar que pouco importa a licitude da atividade ou se ela está amparada por licenças ou autorizações expedidas pelo Poder Público para o seu exercício, uma vez que a lesividade é bastante para a provocação da tutela jurisdicional.
O dano ambiental, ao seu turno, é a consequência do evento danoso, já demonstrado acima, constituindo a ofensa a um bem comum que anteriormente era passível de uso e fruição pelas vítimas. Ele se traduz na violação da paz pública e no desequilíbrio social.
O último elemento da responsabilidade objetiva, qual seja, o nexo de causalidade, representa a relação de causa e efeito entre a atividade e o dano por ela produzido. É analisada a atividade em busca de se descobrir se o dano foi causado em decorrência de seu exercício, para se concluir que o risco que lhe é inerente é suficiente para estabelecer o dever de reparar o prejuízo. Isto é, interliga-se um comportamento a um evento, a fim de se demonstrar a existência do dano.
Salienta-se que o dano, em algumas hipóteses, pode não ter sido causado imediatamente por uma atividade, mas sua execução criou o risco sem o qual não haveria prejuízo. Trata-se de uma causalidade jurídica. Sobre o tema, assevera Laurício Alves Carvalho Pedrosa:
Deve, por conseguinte, ser reconhecido o nexo de causalidade pelo dano ambiental quando o exercício de uma atividade de risco, ainda que associado a um outro evento, tenha sido essencial para a configuração de um prejuízo ao meio ambiente, desde que não se regrida ao infinito na busca pelo nexo causal entre atividades e o dano, como permite a teoria da conditio sine qua non. Como o risco de causar danos ao meio ambiente é inerente ao exercício de atividades econômicas, as conhecidas excludentes de responsabilidade dificilmente afastam o nexo causal nas hipóteses de prejuízos ambientais, pois, em verdade, verifica-se que houve mais de uma causa contribuindo para o resultado lesivo.[6]
Delineados os elementos da teoria objetiva da responsabilidade civil, averigua-se que a sua adoção tem, ainda, a função de equilibrar a crise ambiental decorrente do processo de industrialização da sociedade, que provocou um sensível aumento na degradação do meio ambiente. Segundo Pedrosa[7], o surgimento de novos processos e técnicas de produção, vinculados à modificação das relações de apropriação econômica dos bens produtivos, aliados à tecnicização dos processos de gestão e legitimação do conhecimento, caracterizaram o novo perfil do capitalismo e provocaram profundas modificações na forma de organização das relações econômicas e sociais, bem como na forma de legitimação do poder e do seu exercício.
Esse novo modelo de sociedade conhecido como sociedade de risco, marcado pelo consumo em massa e pela desenfreada (in)utilização dos recursos naturais, que sujeita a coletividade à ameaças de diversas fontes que, por muitas vezes, só podem ser aferidas após a concretização do dano, tornou necessária a busca por formas de evitar, minimizar e, sobretudo, reparar as lesões e perigos que eram produzidos para que se alcançassem demandas econômicas.
Daí, mais uma vez, nítida a importância de um sistema de responsabilidade civil pelo dano ambiental pautado na objetividade, que diferisse daquele defendido no sistema civilista privado tradicional, uma vez que aquele garante maior segurança à coletividade e permite uma compensação entre os problemas ambientais e a sociedade que os causa.
Os objetivos do Direito Ambiental são essencialmente preventivos, razão pela qual a reparação constitui uma atividade menos valiosa se comparada à prevenção. Enquanto a reparação cuida do dano já causado, a prevenção atém-se ao mero risco. Uma se baseia na ação inibitória, a outra no remédio ressarcitório. Ratificando o entendimento, Fábio Feldmann diz:
É essa – a prevenção – a ótica que orienta todo o Direito Ambiental. Não podem a humanidade e o próprio Direito contentar-se em reparar e reprimir o dano ambiental. A degradação ambiental, como regra, é irreparável. Como reparar o desaparecimento de uma espécie? Como trazer de volta uma floresta de séculos que sucumbiu sob a violência do corte raso? Como purificar um lençol freático contaminado por agrotóxicos?[8]
Nestes termos, pode-se afirmar que o princípio da prevenção não deve ser deixado de lado, nem mesmo na aplicação do instituto da responsabilidade civil. Isso se verifica, por exemplo, quando do ajuizamento de ação civil pública, situação em que os legitimados para tanto não estão obrigados a aguardar a consumação do dano ambiental para agir. Ao revés, o remédio processual deve ser usado para conter práticas que, conforme ressalva de Édis Milaré[9], apresentem mera potencialidade de dano, obrigando os responsáveis por essas atividades a ajustarem-se às normas técnicas aplicáveis, de modo a mitigar o risco a elas inerentes.
Já o princípio do poluidor-pagador se relaciona com a responsabilidade na medida em que visa afastar o ônus financeiro dos ombros da sociedade, direcionando-o diretamente ao usuário do recurso ambiental que causou o dano.
Não há aqui a pretensão de recuperar um bem ambiental lesado, mas sim de estabelecer um mecanismo econômico que coíba o desperdício de recursos ambientais, internalizando os custos decorrentes das externalidades negativas causadas. Ora, cada vez que um recurso ambiental é degradado, ainda que involuntariamente, gera-se um custo público para sua revitalização que é suportado por toda a coletividade. O princípio do poluidor-pagador busca a minimização dessa despesa pública. Completando o raciocínio, vale a explicação de Cristiane Derani:
O verdadeiro custo está numa atuação preventiva, consistente no preenchimento da norma de proteção ambiental. O causador pode ser obrigado pelo Estado a mudar o seu comportamento ou adotar medidas de diminuição da atividade danosa. Dentro do objetivo estatal de melhora do ambiente deve, então, participar ativamente o particular [...] Esse princípio é um meio de que se vale tanto o aplicador da legislação, especialmente na formação de políticas públicas, como o legislador, ma elaboração de textos destinados a uma proteção mais eficiente dos recursos naturais.[10]
O princípio da reparação integral, que é adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, significa que o agente é obrigado a reparar todo o dano, sob pena de incorrer em impunidade, de modo que qualquer norma jurídica que disponha em razão diversa ou imponha limite ao montante indenizatório é considerada inconstitucional. O dano ambiental provoca um desequilíbrio social tamanho, que só pode ser reestabelecido com a reparação integral do prejuízo ou com o que mais se aproxime disso. Seu próprio conceito (e seu próprio nome) demonstra a cristalina relação com a tutela civil do bem ambiental.
É possível afirmar que a adoção da responsabilidade civil objetiva na tutela do direito ambiental, ao determinar o ressarcimento do dano sem discutir a culpa e restringindo a investigação dos prejuízos aos limites do nexo causal, visa conferir ampla proteção ao meio ambiente e a segurança de que a coletividade terá preservado o seu direito constitucional de viver em equilíbrio com a natureza.
Além disso, fere abertamente o princípio da equidade a imposição à toda sociedade não causadora do evento danoso o seu peso, em virtude da dificuldade de se demonstrar a culpa do agente responsável. Foi essa a preocupação do legislador brasileiro ao atribuir desde a Política Nacional do Meio Ambiente, o caráter objetivo à responsabilidade civil por lesão ambiental.
1.3 AS TEORIAS DE APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO AMBIENTAL
Para a efetiva proteção do meio ambiente e para atender as demandas coletivas neste sentido em um contexto de desenvolvimento da sociedade industrial e tecnológica e os perigos inerentes ao exercício das atividades econômicas, somente a responsabilização objetiva pelos danos ambientais não é o suficiente. Por essa razão, entendeu-se o risco como um fator integrante da sociedade e das práticas humanas, fator esse que provoca incerteza e indeterminação na busca por soluções dos conflitos levados à apreciação do Judiciário.
A conexão estabelecida pela lei foi a da responsabilidade ambiental à teoria do risco integral, que defende a reparação do dano ainda que involuntário, recaindo a responsabilidade do agente por todo e qualquer ato que cause lesão ao patrimônio natural. Tal vinculação deixa clara a preocupação em se definir um sistema de responsabilidade o mais rigoroso possível, ante o nítido quadro de degradação ambiental que se percebe no Brasil. Aqui, tem-se que qualquer fato culposo ou não que tenha causado danos, enseja a reparação.
Nessa linha de entendimento, interessante o posicionamento pioneiro de Sérgio Ferraz, que em 1979, mesmo antes da Política Nacional do Meio Ambiente, defendia a adoção da teoria do risco integral:
Em termos de dano ecológico, não se pode pensar em oura colocação que não seja a do risco integral. Não se pode pensar em outra malha que não seja a malha realmente bem apertada, que possa, na primeira jogada da rede, colher todo e qualquer possível responsável pelo prejuízo ambiental. É importante que, pelo simples fato de ter havido omissão, já seja possível enredar agente administrativo e particulares, todos aqueles que de alguma maneira possam ser imputados ao prejuízo provocado para a coletividade.[11]
Dentre as consequências da objetivação da responsabilidade civil fundada na teoria do risco integral, salientam-se: a prescindibilidade de investigação de culpa, conforme clara previsão do art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81: “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causador ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”[12]; a irrelevância da licitude da atividade, uma vez que tão somente a lesividade é suficiente para a responsabilização do poluidor, sendo objeto de consideração a potencialidade do dano que a atividade possa trazer aos bens ambientais; e a inaplicabilidade das excludentes de responsabilidade: caso fortuito, força maior e fato de terceiro.
Nesse diapasão, salienta-se que conforme inteligência da Lei nº 6.938/81, a solidariedade passiva foi expressamente acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro, pois ainda que o indivíduo tenha apenas contribuído de alguma forma para o dano ambiental, ele poderá ser responsabilizado integralmente, já que sua responsabilidade é solidária. A ele, caberá posteriormente, caso queira, em ação própria, exigir o seu direito de regresso.
Ademais, admite-se que em razão da responsabilidade objetiva aqui tratada, a jurisprudência pátria firmou entendimento no sentido de que o dever de proteção ao meio ambiente, bem como as responsabilidades daí decorrentes devem se transferir, automaticamente, com a alteração do domínio do bem lesado, o que significa que sua reparação poderá também ser exigida do novo proprietário. Isto é, a degradação preexistente não pode ser aceita como desculpa utilizada pelo atual proprietário de um determinado bem.
2 A ECOLOGIZAÇÃO DA PROPRIEDADE
2.1 O VALOR DA PROTEÇÃO E O VALOR DO DESENVOLVIMENTO
As mudanças na ordem jurídica brasileira acerca da proteção do meio ambiente são fruto de uma mudança na concepção axiológica do bem ambiental. Isso é consequência do fato de que todas as instituições sociais são constituídas de valor, cabendo ao direito tutelar o que é relevante para a coletividade. A compreensão da vida social e as relações advindas da atitude humana tornam possível perceber de forma plena as disposições valorativas que impulsionaram o exercício da práxis jurisdicional ao longo do tempo.
O fundamento do direito é o próprio valor. Ao rever uma estrutura normativa é preciso imergir no universo axiológico, para assim determinar a sua positivação em consonância com a realidade social. O conteúdo valorativo da ordem jurídica permite conceber diversos modelos ideais de sociedade, que se distribuem conforme os processos de atualização dos valores e as preferências de cada tempo e civilização.
Seja como valor social ou jurídico, o direito representa importante papel social, na medida em que é um instrumento de organização da sociedade. Como afirma Reale, “toda sociedade obedece a uma tábua de valores, de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores se distribuem ou se ordenam.”[13] O direito aproveita desta característica para fortalecer seu poder e sua aceitação social.
A compreensão valorativa do bem ambiental foi o que proporcionou a ruptura pela atual Carta Magna do tratamento dado ao meio ambiente pelas Constituições brasileiras antes de 1988, cuja proteção ambiental servia exclusivamente aos interesses econômicos da elite, inexistindo em nossa legislação qualquer mecanismo que oferecesse efetiva proteção à natureza.
O bem ambiental passou a ser compreendido não somente como fonte geradora de riquezas, da qual se pode explorar incessantemente seus elementos, mas também como fonte necessária para manutenção da vida em todas as suas formas. O meio ambiente é um recurso produtivo, mas o valor de sua preservação é imensurável, até mesmo porque somente o dinheiro não é capaz de reparar os danos causados a ele.
O desafio do legislador e de toda sociedade é justamente o de integrar a preservação do meio ambiente ao desenvolvimento econômico, reconhecendo a sua importância enquanto elemento que possibilita a vida e também como elemento que integra a ordem econômica. Por essa razão, também foi inserida em nossa Constituição a defesa do meio ambiente como princípio geral da atividade econômica, no artigo 170.
Todo esse cuidado faz-se necessário, uma vez que os recursos ambientais são esgotáveis. Se exauridos, rompe-se a rede da vida terrestre e é inaceitável que as atividades econômicas se desenvolvam alheias a esse fato. Os eventos da natureza são cíclicos, enquanto que a economia se comporta de maneira linear. Um impacto provocado pelo homem poder fazer um efeito cascata em toda a cadeia, afetando inclusive o próprio homem, pela interdependência e interconexão dos seres vivos e os elementos do planeta.
O princípio do desenvolvimento sustentável tem como substância a conservação dos alicerces da produção e reprodução do homem e suas atividades, conciliando o crescimento econômico e a conservação do meio ambiente, numa relação harmônica entre os seres humanos e os recursos naturais para que as futuras gerações tenham também oportunidade de ter os recursos que temos hoje, em seu equilíbrio dinâmico. A legislação ambiental também funciona como instrumento de intervenção na ordem econômica, justamente para provar que o seu valor está muito além do aspecto financeiro.
2.2 A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE
Com tantos dispositivos relacionados ao meio ambiente em nossa Constituição, fruto da nova concepção valorativa atribuída ao bem ambiental e da necessidade de efetiva proteção a esse bem, o que justifica, ainda, o sistema de responsabilização civil pelo dano ao meio ambiente adotado pela legislação brasileira, que também é ratificado pelo art. 225 da Carta Magna atual, Benjamin afirma que houve não somente ecologização da constituição brasileira, mas uma ecologização da propriedade. Sobre o tema, o autor discorre:
A ecologização da Constituição, portanto, teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explícito componente ambiental. Os arts. 170, VI, e 186, II, da Constituição brasileira, inserem-se nessa linha de pensamento de alteração radical do paradigma clássico da exploração econômica dos chamados bens ambientais. Com novo perfil, o regime da propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais. A tutela expressa do meio ambiente nas Constituições mais recentes, por poder constituinte originário ou derivado, reitera a função social da propriedade, ou, para utilizar a expressão de Guilherme Purvin, enfatiza a "dimensão ambiental da função social da propriedade". Também relegitima, numa perspectiva mais ampla e profunda, direitos que, de uma forma ou de outra, os indivíduos e a coletividade, não obstante o silêncio do texto constitucional, sempre foram considerados detentores, na medida em que correlates a limites intrínsecos do direito de propriedade privada, justificados sob o império da preservação da vida e de suas bases naturais.[14]
Neste sentido, vale ressaltar que o constituinte de 1988 ressalvou dentre as garantias fundamentais, o direito de propriedade, conforme se observa do art. 5º, XXII, indicando no inciso seguinte que a propriedade também deverá atender sua função social. Este princípio se coaduna tanto com a manutenção da ordem econômica, como com a proteção ao meio ambiente.
O que se infere desta disposição constitucional é que a propriedade deixou de ser vista sob a óptica privada, da mesma maneira que o exaustivamente mencionado “meio ambiente” deixou de ser percebido como aquele composto apenas por grandes florestas, montanhas, vales, rios, mares, entre outros elementos comumente entendidos como geograficamente distantes da civilização, sendo formado também por pequenas propriedades, a quais estamos integrados em todos os aspectos, que devem servir não somente ao seu dono, mas também funcionar de forma ambientalmente regular, a fim de atender aos anseios da vida em comunidade ou, noutras palavras, cumprindo com sua função social.
Nesse sentido, é possível afirmar que a função social da propriedade constitui o alicerce estrutural e nuclear do conceito de propriedade, qualificando-o e modificando sua natureza, de forma que ela não pode mais ser compreendida no aspecto individual e privatista, mas também no coletivo, público e social. Ao estabelecer que a propriedade deverá atender a sua função social, o constituinte não estava simplesmente impondo limitações e obrigações ao proprietário privado, mas adotando um princípio de transformação de tal direito, um preceito que condiciona a propriedade como um todo, não apenas em seu exercício, mas aos modos de aquisição em geral. O que há aqui é a vinculação entre o interesse privado e a necessidade coletiva, uma vez que a propriedade está inserida em um universo muito maior do que aquele limitado pelas aspirações de seu dono.
Vale lembrar o tratamento constitucional dado ao meio ambiente pelo art. 225, que o definiu em seu caput como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida do qual todos têm direito e impôs ao poder público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Relacionando os conceitos e dispositivos acima expostos, percebe-se que, constitucionalmente, o direito de propriedade está ambientalmente qualificado, sendo essa característica um critério para aferição do cumprimento de sua função social. Não por outra razão, o atual Código Civil brasileiro proclama em seu artigo 1.228 que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.[15]
A inclusão do respeito ambiental dentre os indicadores de cumprimento da função social da propriedade se deve ao fato de que o meio ambiente é considerado um “macro bem”, pertencente a toda coletividade e, como é cediço, seu equilíbrio é fundamental para a garantia da própria existência da vida e, consequentemente, para a manutenção e o exercício pleno dos demais direitos individuais. Fala-se, então, em função socioambiental da propriedade, que não é uma mera proibição de se lesar o meio ambiente, mas a adequação das atividades exercidas pelos particulares à preservação ambiental, cujos efeitos serão benéficos para todos.
3 REPARAÇÃO DO DANO AMBIENTAL COMO OBRIGAÇÃO PROPTER REM
3.1 A REPARAÇÃO DO DANO AMBIENTAL
Mas afinal, em que consiste a reparação do dano ambiental? O conceito literal da palavra “reparação” se traduz em vários sinônimos: consertar, refazer, restabelecer, retornar, remediar, corrigir. Gilberto Passos de Freitas ensina que, jurídica e ambientalmente, a reparação constitui forma de reposição patrimonial dos bens lesados. [16]
Nesse sentido, observa-se que a reparação do dano decorre precipuamente do princípio do poluidor-pagador, que impõe aquele que provocou a lesão o dever de arcar com as despesas de prevenção, reparação e repressão da poluição. Neste particular, interessante destacar que a colocação gramatical do termo “poluidor-pagador” não resulta em confusão ou ambiguidade em sua interpretação, pois, não se trata de afirmar que se pagou, pode poluir, mas sim que se poluir, arcará com o dano.
Além disso, a Política Nacional do Meio Ambiente possui previsão no sentido de engajar a legislação a fim de impor a reparação do dano como forma supra de acoimar o poluidor, ou seja, constitui um meio coercitivo eficaz, para que se veja o transgressor punido por um ato ilícito ou não que venha a degradar o meio ambiente.
É sabido que tendo ocorrido um dano, surge para o lesado a pretensão de reparação ou punição do agente causador dele, uma pretensão autônoma correspondente a cada responsabilidade. Ante o princípio da legalidade, insculpido em nossa Constituição Federal no art. 5º, II, somente haverá responsabilidade quando houver disposição legal expressa. Tendo em vista ser objetiva a responsabilidade pela reparação do dano ambiental, a obrigação de reparar integralmente os danos ambientais causados pelo agente decorre da própria Constituição, art. 225, § 3º, bem como da Lei nº 6.938/81 (PNMA), art. 14, § 1º, que consagra o posicionamento pela objetividade quanto à responsabilização dos danos ambientais.
Em linhas gerais, através da reparação do dano, busca-se uma recomposição daquilo que foi destruído, quando possível. A Política Nacional do Meio Ambiente estabelece que há duas formas de reparação do dano ambiental: a recuperação do meio ambiente degradado ou o pagamento de indenização em dinheiro levando-se em conta, conforme entendimento de Álvaro Luiz Valery Mirra, que apesar de, em certas hipóteses, o dano ambiental ser irreversível do ponto de vista ambiental e ecológico, jamais é irreparável do ponto de vista jurídico, pois uma compensação in natura ou pecuniária deverá ser concedida para a recomposição do ambiente degradado ou substituição equivalente.[17]
Ressalte-se que a preferência sempre será para a recuperação do patrimônio natural iniciando-se pela cessação da atividade lesiva, ainda que essa opção se configure mais onerosa, tendo em vista que o valor econômico não é capaz de substituir a existência e fruição do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O dano ao meio ambiente atinge toda a coletividade, na medida em que se trata de um bem difuso, isto é, de titularidade indeterminada, indivisível em relação ao objeto, que possui uma nítida dimensão social. Não é o patrimônio particular que está sendo dilapidado e nem a honra ou imagem de alguém que está sendo maculada ou manchada, mas sim um bem coletivamente relevante, que uma vez degradado, não retorna ao estado anterior à ocorrência do dano. Por essa razão, a reparação busca aproximar-se o máximo possível da situação anterior ao prejuízo. Na esteira dessa raciocínio é o entendimento de Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CARACTERIZADA - DANO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - RECUPERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA - REPOSIÇÃO NATURAL: OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO - CABIMENTO. 1. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. Tratando-se de direito difuso, a reparação civil ambiental assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de responsabilidade do degradador que é objetiva, fundada no simples risco ou no simples fato da atividade danosa, independentemente da culpa do agente causador do dano. 3. A condenação do poluidor em obrigação de fazer, com o intuito de recuperar a área degradada pode não ser suficiente para eximi-lo de também pagar uma indenização, se não for suficiente a reposição natural para compor o dano ambiental. 4. Sem descartar a possibilidade de haver concomitantemente na recomposição do dano ambiental a imposição de uma obrigação de fazer e também a complementação com uma obrigação de pagar uma indenização, descarta-se a tese de que a reposição natural exige sempre e sempre uma complementação. 5. As instâncias ordinárias pautaram-se no laudo pericial que considerou suficiente a reposição mediante o reflorestamento, obrigação de fazer. 6. Recurso especial improvido. G.N 6 (grifos próprios)[18]
Na reparação do dano ambiental é imposto ao poluidor um custo, cuja finalidade é oferecer uma resposta econômica ao lesado e dissuadir comportamentos semelhantes do agente degradador e de terceiros.
3.2 O CARÁTER PROPTER REM DA RESPONSABILIDADE AMBIENTAL
Bastante interessante e relevante doutrinaria e jurisprudencialmente é a discussão acerca da natureza real propter rem da obrigação de promover a reparação de uma área degradada. Em linhas gerais, a obrigação propter rem (ou ob rem) é aquela que recai sobre uma pessoa por força de determinado direito real, só existindo em razão da situação jurídica do obrigado, de titular do domínio ou de detentor de determinada coisa. Para Sílvio de Salvo Venosa: “A terminologia explica bem o conteúdo dessa obrigação. Propter, como preposição, quer dizer ‘em razão de’, ‘em vista de’. A preposição ob significa ‘diante de’, ‘por causa de’. Trata-se, pois, de uma obrigação relacionada com a coisa” [19].
Em resumo, tal modalidade de obrigação pode ser classificada como de contexto híbrido, haja vista a sua característica, já denominada de acessória e mista. Acessória, pois estará sempre vinculada a um direito real e mista, por se constituir de diversas características de direitos pessoais e reais.
Para o Direito Ambiental, trata-se de questão que envolve a situação em que o adquirente de uma área degradada assume a obrigação de recompor a violação ao meio ambiente, restituindo a higidez ambiental ao local. O ponto culminante da discussão é que o referido adquirente não provocou o dano, isto é, não se enquadra na condição de “poluidor” estabelecida pela Lei nº 6.938/81, em seu art. 3º, IV [20], entretanto, apesar disso, ele responde pela reparação, ficando obrigado a restituir as condições ambientais anteriores, o máximo possível.
Relevante notar que a solução apontada para esse tipo de reparação de dano ambiental apresenta, aparentemente, radical afastamento de um dos requisitos fundamentais da teoria clássica da responsabilidade civil, qual seja, o nexo de causalidade. Com efeito, mesmo que determinada pessoa não tenha provocado a degradação, responde por ela, pela única condição de proprietária ou possuidora do locus objeto da lesão.
O fato é que os atuais proprietários possuem responsabilidade direta sobre as atividades executadas na área, bem como pelas lesões ambientais que se consolidaram antes do imóvel integrar o seu patrimônio pessoal ou tiveram continuação por sua ação ou mesmo omissão. Ora, carece de fundamentação sólida, levando em conta tudo quanto exposto acerca da tutela civil do meio ambiente e do necessário cumprimento da função social da propriedade, qualquer argumento utilizado para excluir a sua responsabilidade civil reparatória. A restauração do dano, conforme o sistema legislativo vigente, configura-se verdadeira obrigação imposta ao proprietário ou possuidor da área degradada.
O reconhecimento do caráter propter rem da reparação do dano ambiental tem reconhecimento firme na jurisprudência brasileira, tendo julgado mais de uma vez o Superior Tribunal de Justiça nos seguintes termos:
ADMINISTRATIVO - DANO AO MEIO-AMBIENTE - INDENIZAÇÃO - LEGITIMAÇÃO PASSIVA DO NOVO ADQUIRENTE. 1. A responsabilidade pela preservação e recomposição do meio-ambiente é objetiva, mas se exige nexo de causalidade entre a atividade do proprietário e o dano causado (Lei 6.938/81). 2. Em se tratando de reserva florestal, com limitação imposta por lei, o novo proprietário, ao adquirir a área, assume o ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que não tenha contribuído para devastá-la. 3. Responsabilidade que independe de culpa ou nexo causal, porque imposta por lei. 4. Recursos especiais providos em parte. [21]
Se não fosse atribuído o caráter propter rem a reparação do meio ambiente lesionado, a higidez ambiental raramente seria reestabelecida, uma vez que para a concretização e legitimação do dano sem qualquer ônus ou responsabilidade, bastaria o indivíduo desfazer-se do bem lesado após a degradação. A obrigação de reparação ser propter rem, noutras palavras, seguir a coisa independentemente do atual titular do domínio ou posse apresenta-se como uma barreira frente a esse tipo de burla.
Diante disso, caso o domínio de determinada atividade poluidora ou propriedade que esteja em desacordo com as leis ambientais seja transferido a terceiro, será este responsável de forma solidária pela sua regularização, assim como pela recuperação dos danos causados. Com isso, se pretende evitar que o novo responsável deixe de providenciar as medidas cabíveis a permitir o retorno do equilíbrio ambiental.
Em verdade, é forçoso reconhecer que a omissão do novo proprietário/possuidor acerca da necessária regularização ambiental já é o bastante para consolidar o nexo causal. Sem contar que, sua ação ou omissão, além de não promover a reparação que se objetiva, irá possibilitar o prosseguimento do dano ambiental já existente e por outrem iniciado. Caracteriza-se, então, a responsabilidade civil.
3.3 UMA ANÁLISE EFETIVA: A RESERVA LEGAL E A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE
Um importante exemplo de intervenção estatal na propriedade, notadamente nos imóveis rurais, de modo a destiná-la socioambientalmente é a reserva legal. Tal instituto ratifica, ainda, tudo o que foi estudado no presente artigo acerca da responsabilidade civil objetiva pelo dano ambiental e a natureza propter rem dessa obrigação. Vejamos.
A reserva legal constitui um grupo especialmente protegido pela legislação brasileira, onde pode se enquadrar também as áreas de preservação permanente. Ao contrário das unidades de conservação, que objetivam a conservação ou a preservação de áreas maiores ou menores de um determinado ecossistema dentro de um bioma, a reserva legal, que possui esta mesma função protetiva, está disseminada por todas as propriedades rurais do país. Por conseguinte, por mais que o poder público se esforce na criação de unidades de conservação (que demandam verbas para sua constituição e cuidado), nunca será capaz de criar tantos desses espaços territoriais quanto o necessário para a manutenção da biodiversidade e do equilíbrio ecológico no Brasil. Nisso reside a necessidade da reserva legal.
Como visto, o artigo 225 da Constituição Federal, em seu caput, declara que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito e dever de todos. A reserva legal, enquanto faceta da função social da propriedade, constitui-se em efetiva limitação desse direito em benefício da coletividade, podendo ser analisada, ainda, como instrumento de garantia à conservação da biodiversidade. Neste sentido, a definição do atual Código Florestal, em seu art. 3º:
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: [...] III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa; [22]
Em outras palavras, a Reserva Legal é a área do imóvel rural que, coberta por vegetação natural, pode ser explorada com o manejo florestal sustentável, nos limites estabelecidos em lei para o bioma em que está localizada a propriedade. Por abrigar parcela representativa do ambiente natural da região onde está inserida, esses espaços se tornam necessários à manutenção da biodiversidade local.
No Brasil, a Constituição da República garante a todos o direito tanto a um meio ambiente diverso e sustentável, como o direito ao desenvolvimento econômico. Não é difícil perceber que a busca da realização de um destes direitos pode vir a conflitar com o outro. O instituto da Reserva Legal é mais um dos instrumentos pelos quais o legislador brasileiro busca criar uma ponte entre estes dois interesses fundamentais.
O primeiro conceito de Reserva Legal surgiu em 1934, com o primeiro Código Florestal. Foi atualizado em 1965, na Lei Federal nº 4.771 (o Código Florestal recentemente revogado) que dividia as áreas a serem protegidas de acordo com as regiões, e não pelo tipo de vegetação como é no atual Código. Fixava um mínimo de 20% a ser mantido nas "florestas de domínio privado" na maior parte do país, ressalvando uma proibição de corte de 50% nas propriedades "na região Norte e na parte Norte da região Centro-Oeste".
Hoje o conceito é mais restritivo. A Reserva Legal, que junto com as Áreas de Preservação Permanente, tem o objetivo de garantir a preservação da biodiversidade local, é um avanço legal na tentativa de conter o desmatamento e a pressão da agropecuária sobre as áreas de florestas e vegetação nativa. Ambientalistas defendem a sua preservação, enquanto o setor produtivo argumenta se tratar de intromissão indevida do Estado sobre a propriedade privada, o que diminuiria a competitividade da agricultura e a capacidade de produção do país. Contudo, certo é que o direito difuso de proteção ao interesse social coletivo se sobrepõe ao interesse individual de explorar integralmente a propriedade, mesmo que haja, com tal exploração, benefício social e econômico para a sociedade. Clara aqui, a presença da função social da propriedade, quando da exigência da reserva legal. Nesse sentido, Antunes:
A reserva legal caracteriza-se por ser necessário ao uso sustentável dos recursos naturais. Como se sabe, uso sustentável dos recursos naturais pode ser assim definido: a) aquele que assegura a reprodução continuada dos atributos ecológicos da área explorada, tanto em seus aspectos de flora como de fauna. É sustentável o uso que não subtraia das gerações futuras o desfrute da flora e da fauna, em níveis compatíveis com a utilização presente; b) recursos naturais são os elementos da flora e da fauna utilizáveis economicamente como fatores essenciais para o ciclo produtivo de riquezas e sem os quais a atividade econômica não pode ser desenvolvida.[23]
O percentual da propriedade que deve ser cadastrado como Reserva Legal vai variar de acordo com o bioma e a região em questão, sendo: 80% em propriedades rurais localizadas em área de floresta na Amazônia Legal; 35% em propriedades situadas em áreas de Cerrado na Amazônia Legal, sendo no mínimo 20% na propriedade e 15% na forma de compensação ambiental em outra área, porém na mesma microbacia; 20% na propriedade situada em área de floresta, outras formas de vegetação nativa nas demais regiões do país; e 20% na propriedade em área de campos gerais em qualquer região do país, conforme art. 12 do atual Código Florestal, Lei nº 12.651/2012.
Cumpre destacar que a não obediência ao percentual legal ou a degradação da reserva legal implica em responsabilização do proprietário do imóvel, não necessariamente do agente lesivo – nos moldes definidos em lei para a lesão ao bem ambiental (responsabilidade objetiva, na modalidade do risco integral) – isto porque analisando as reservas legais em relação ao proprietário ou possuidor rural, verifica-se que a natureza desse instituto jurídico é de obrigação em razão da coisa, ou propter rem, conforme raciocínio desenvolvido no tópico anterior.
Consigne-se, por fim, que os entendimentos jurisprudenciais consolidados a esse respeito foram objeto de expressa incorporação no Código Florestal, nos termos de seu art. 2º, que dispõe:
art. 2o As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem. § 1o Na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da propriedade, aplicando-se o procedimento sumário previsto no inciso II do art. 275 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos do § 1o do art. 14 da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, e das sanções administrativas, civis e penais. § 2o As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. [24]
Interessante destacar, por fim, que quanto à reserva legal, o Superior Tribunal de Justiça entende que a obrigação de reparar o dano na área degradada independe de ter sido a alienação onerosa ou gratuita, isso com fundamento nos princípios do poluidor-pagador, do desenvolvimento sustentável e da função social da propriedade, uma vez que a reparação efetiva do dano é necessária para se cumprir o desejo constitucional de se conservar os bens ambientais para as presentes e futuras gerações. Nesse diapasão, o Recurso Especial nº 948.921 elucida com precisão que a reserva legal é passível obrigatoriamente de reparação, não importando saber a origem do domínio/posse ou da propriedade:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA 282 DO STF. FUNÇÃO SOCIAL E FUNÇÃO ECOLÓGICA DA PROPRIEDADE E DA POSSE. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVA LEGAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELO DANO AMBIENTAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. DIREITO ADQUIRIDO DE POLUIR. [...] 3. Décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente. [...] 6. Descabe falar em culpa ou nexo causal, como fatores determinantes do dever de recuperar a vegetação nativa e averbar a Reserva Legal por parte do proprietário ou possuidor, antigo ou novo, mesmo se o imóvel já estava desmatado quando de sua aquisição. Sendo a hipótese de obrigação propter rem, desarrazoado perquirir quem causou o dano ambiental in casu, se o atual proprietário ou os anteriores, ou a culpabilidade de quem o fez ou deixou de fazer. Precedentes do STJ. 7. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (grifos próprios) [25]
A finalidade na imposição da cláusula propter rem para se reparar os danos causados nessa espécie de vegetação, é o simples dever de cumprir o princípio da função social da propriedade a fim de viabilizar o equilíbrio ecológico. Justifica-se aí a obrigatoriedade em fazer o adquirente constar na matrícula do imóvel, devidamente registrado no cartório competente, o cadastro da reserva legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É difícil pensar em uma forma mais eficaz de se responsabilizar quem degrada o meio ambiente do que aquela que é sustentada em nosso ordenamento jurídico. A inclusão do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado no rol de garantias fundamentais pela Carta Magna brasileira e o reconhecimento coletivo da importância do bem ambiental enquanto matriz vital da existência e sobrevivência humana evidenciam o tratamento dado pelo legislador à sua proteção.
Somando-se ao sistema de responsabilização civil ambiental, que assume a modalidade objetiva e do risco integral, está a exigência do atendimento da função social da propriedade, que abarca o aproveitamento racional e adequado dela, a utilização equilibrada dos recursos naturais e a preservação do patrimônio natural, o que juntamente com o disposto na Constituição brasileira acerca do meio ambiente, justificam os ônus do adquirente de uma propriedade que desrespeite os padrões legais referentes a seu uso e manutenção, ainda que a este dano não tenha dado causa, atribuindo a esta obrigação o caráter híbrido de propter rem, em atenção a máxima proteção ao patrimônio ambiental, o que ultrapassa o caráter econômico e o princípio da função social da propriedade.
É constatado que ainda que o referido adquirente não tenha provocado o dano, isto é, não se enquadre na condição de “poluidor” estabelecida pela Política Nacional do Meio Ambiente, ele responde pela reparação, ficando obrigado a restituir as condições ambientais anteriores, o máximo possível.
Relevante notar que a solução apontada para esse tipo de reparação de dano ambiental não guarda proximidade com um dos requisitos fundamentais da teoria clássica da responsabilidade civil, o nexo de causalidade. Entretanto, levando em conta tudo quanto exposto acerca da tutela civil do meio ambiente e do necessário cumprimento da função social da propriedade, não há escusas para excluir a sua responsabilidade civil reparatória. A restauração do dano, conforme o sistema legislativo vigente, configura-se verdadeira obrigação imposta ao proprietário ou possuidor da área degradada.
Diante de tudo isso, percebe-se nas Reservas Legais características que se coadunam com os princípios do desenvolvimento sustentável e da função social da propriedade, na medida em que o instituto que se apresenta como instrumento de efetivação da sustentabilidade por garantir que a propriedade rural dedique uma parcela de seu espaço à proteção ambiental e manutenção do equilíbrio ecológico, devendo o imóvel manter área com cobertura de vegetação nativa. Além disso, representam a interferência estatal nos imóveis privados, de modo a condicionar o seu uso aos preceitos ambientais definidos em lei.
Cumpre destacar que a não obediência ao percentual legal ou a degradação da reserva legal implica em responsabilização do proprietário do imóvel, não necessariamente do agente lesivo – nos moldes definidos em lei para a lesão ao bem ambiental (responsabilidade objetiva, na modalidade do risco integral) – isto porque analisando as reservas legais em relação ao proprietário ou possuidor rural, verifica-se que a natureza desse instituto jurídico é de obrigação em razão da coisa, ou propter rem.
A subordinação entre a obrigação propter rem de reparação do dano ambiental e o interesse público na função social da propriedade, que ultrapassa o caráter meramente econômico ou produtivo do imóvel, deixam claro qual foi a concepção do legislador ao estabelecer os ditames legais para a preservação do meio ambiente. A concepção valorativa do direito permite que se enxergue além da norma e além do fato, tornando possível a consolidação de um sistema que considere os anseios coletivos e a perspectiva de desenvolvimento economicamente sustentável da sociedade.
REFERÊNCIAS
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[1] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 9. ed. 2006. p. 57.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 225.
[3] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 9. ed. 2006. p. 60-1.
[4] BRASIL. Lei 6.938, de 31.08.1981, art. 14, § 1º.
[5] BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos e. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 9, p. 5-1, jan/mar. 1998. p. 80.
[6] PEDROSA, Laurício Alves Carvalho. Responsabilidade civil objetiva: perspectivas diante do exercício de atividades de risco e de danos ao meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2011. p. 169.
[7] PEDROSA, Laurício Alves Carvalho. Responsabilidade civil objetiva: perspectivas diante do exercício de atividades de risco e de danos ao meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2011. p.122.
[8] FELDANN, Fábio. Apresentação. In: BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e (Coord.) Dano ambiental: preservação, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 05.
[9] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed., 2001. p. 829.
[10] DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 158 e 164.
[11] FERRAZ. Sérgio. Responsabilidade civil pelo dano ecológico. Revista de Direito Público, São Paulo, vol. 49-50,1979, p. 38.
[12] BRASIL. Lei 6.938, de 31.08.1981, art. 14, § 1º.
[13] REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Saraiva, 26. ed., 2002, p. 191
[14] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Constitucionalização do meio ambiente e ecologização da constituição brasileira.In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.).Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 72.
[15] BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10.01.2002, art. 1.228.
[16] FREITAS, Gilberto Passos de. Ilícito Penal Ambiental e Reparação do Dano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 67.
[17] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Responsabilidade civil pelo dano ambiental e o princípio da reparação integral do dano. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 32, p. 69-82, out./dez. 2003.
[18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1165281/MG. Rel. Ministra Eliana Calmon. Segunda Turma. Julgado em 06/05/2010. Publicado em DJe 17/05/2010. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/9272128/recurso-especial-resp-1165281-mg-2009-0216966-6. Acesso em: 06/10/2014.
[19] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direto Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 60.
[20] art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: [...] IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.
[21] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 327.254/PR. Relator(a): Ministra Eliana Calmon. Segunda Turma. Julgamento: 03/12/2002. Publicação: DJ 19/12/2002. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7524627/recurso-especial-resp-327254-pr-2001-0064980-4. Acesso em: 09/10/2014.
[22] BRASIL. Código Florestal. Lei nº 12.651, de 25.05.2012, art. 3º.
[23] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 9. ed. 2006. p. 533-534.
[24] BRASIL. Código Florestal. Lei nº 12.651, de 25.05.2012, art. 2º.
[25] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 948921 SP 2005/0008476-9. Segunda Turma. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgamento: 23/10/2007. Publicação: DJe 11/11/2009. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5915927/recurso-especial-resp-948921-sp-2005-0008476-9-stj. Acesso em: 12/10/2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Likem Edson Silva de. A reparação do dano ambiental como obrigação propter rem nas reservas legais: uma análise à luz da tutela jurídica do meio ambiente e da função socioambiental da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 ago 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52162/a-reparacao-do-dano-ambiental-como-obrigacao-propter-rem-nas-reservas-legais-uma-analise-a-luz-da-tutela-juridica-do-meio-ambiente-e-da-funcao-socioambiental-da-propriedade. Acesso em: 23 dez 2024.
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