SIMONE GROHS FREIRE
(Orientadora)
RESUMO: O seguinte trabalho propõe uma discussão sobre a tributação no Brasil, e como o modelo instaurado atualmente corrobora para agravação das disparidades sociais. Ademais, busca propor, com base na nossa Constituição Federal, alternativas muito melhores às políticas de austeridade impostas pelo Governo Federal nos últimos anos. Utilizou-se como método geral de pesquisa a bibliográfica, bem como a análise documental.
Palavras-chave: Tributação brasileira; Paraíso fiscal; Justiça social.
1. INTRODUÇÃO
Com o crescimento populacional, os humanos foram se concentrando em grupos, e se organizando em sociedade. Toda coletividade de indivíduos livres que se une por congruências e para realizar um objetivo comum é uma forma de sociedade. Destarte, podemos inferir que o Estado é uma forma de sociedade, que visa o bem público por meio de organizações de poder.
A concepção de Estado foi se lapidando. Passamos por diversos modelos de Estados, que foram modificados por meio de diversos embates, como, por exemplo, a Revolução Francesa. Os costumes, as normas sociais e jurídicas e toda a história de construção do que chamamos Estado Moderno foram consolidados em Constituições, escritas ou orais e a tributação se engessou como um dos seus pilares fundamentais. Há um contrato tácito, estabelecido no momento em que nascemos: para termos a segurança jurídica, social e acesso a todos os bônus providos pelo arcabouço estatal, tal como acesso às escolas e hospitais públicos, devemos pagar tributos, para manutenção dessas funções fundamentais do Estado.
Para promulgação de uma Constituição, é imprescindível a existência de representantes que primem pelos princípios tão caros àquela sociedade, traduzindo-os em normas que nortearão as estruturas daquela sociedade – esses são os detentores do poder constituinte. As teorias majoritárias sobre o Poder Constituinte ditam que os detentores desse poder são os cidadãos, ou seja, o povo, entretanto, há teorias conflitantes, como a de Carl Schmitt. Esse pensador acredita que os detentores do poder constituinte, o poder de redigir e editar a carta magna que rege aos mínimos detalhes a estrutura de um país, são aqueles que têm o poder da decisão soberana, em suma, a construção da Constituição está intimamente ligada aos interesses daqueles que detém o poder político de fato. Por óbvio, os mandos e desmandos de quem detém o poder político de fato não se atém apenas às normas constitucionais, vivemos um momento político no Brasil em que leis infraconstitucionais e emendas constitucionais traduzem os interesses da classe dominante, reduzindo os direitos da população. A teoria de Noam Chomsky no documentário Requiem for the American Dream complementa a ideia de Schmitt: segundo o filósofo estadunidense, o poder decorre da concentração de dinheiro, esse ciclo se retroalimenta, ou seja, aqueles que detém dinheiro detém também poder no Estado.
O Direito Tributário tem grande potencial de ser uma ferramenta para justiça social, entretanto, ainda corrobora para manutenção dos interesses dos mais abastados. Nosso país ainda tributa excessivamente o consumo, afetando especialmente a renda dos menos favorecidos, e ainda um paraíso fiscal para os super ricos. Em suma, é a representação prática das teorias de Chomsky e Schmitt: a lei criada para manutenção dos poderes político e econômico daqueles que já os detém. Nesse sentido, objetiva-se avaliar o Direito Tributário como instrumento da Justiça Social.
Pela demanda social, inerente ao conteúdo deste trabalho, os métodos baseiam-se, sobretudo, pela análise de contribuições, com a intenção de trazer reflexões acerca da sociedade e suas construções. Utilizou-se, como método geral de pesquisa, a bibliográfica, bem como a análise documental.
2. O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS E A FUNÇÃO DO ESTADO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um Estado Democrático de Direito, que visa “garantir uma sociedade livre, justa e solidária” Tendo como princípio basilar para a efetivação dessa garantia a dignidade da pessoa humana.
Esse entendimento de Estado é pós-moderno e se norteia pelos Direitos Humanos e prima pela dignidade da pessoa humana, conceitos que ganharam força especialmente após a Segunda Guerra Mundial, e visam limitar o poder estatal. A esse Estado também é incumbida a tarefa de minimizar os efeitos do capitalismo, promovendo justiça social, e garantindo qualidade de vida àqueles que são menos favorecidos ou estão à margem do capitalismo. Essa ideia contemporânea de organização estatal demanda muitos recursos para se manter, exigindo uma contraprestação pecuniária daqueles que vivem sob sua égide.
A relação entre viver e sociedade e pagar tributos é muito íntima, ou seja, para que o Estado realize suas atividades fim, é necessário que haja contribuição daqueles sob sua tutela. Os contratualistas versam muito bem sobre essa simbiose entre pessoas e o poder soberano: o Estado detém poder de polícia, o Estado legitima a propriedade e consequentemente, as liberdades individuais, promovendo paz social.
Conforme exposto no texto “Tributação e Dignidade Humana”, o “dever fundamental de pagar impostos” é o dever pecuniário que o indivíduo tem para com a sociedade em que está inserido, inspirado especialmente pelo princípio da solidariedade. Em suma, o ser humano, dotado da capacidade e necessidade de viver em sociedade, deve contribuir para a edificação de bens públicos que promovem um bem-estar àquela sociedade em vive, melhorando a qualidade de vida da coletividade.
Consequentemente, a vida daquele contribuinte em específico também sofre melhorias, pois Estados que efetivamente combatem a desigualdade e promovem políticas públicas visando o bem comum tendem a ser países com maior qualidade de vida. Por exemplo, uma pessoa não necessariamente precisa utilizar a escola pública para mantê-las por meio de impostos, pois essas instituições refletem positivamente em várias áreas da sociedade.
Casalta Nabais, reforça a ideia que é por meio dos impostos que nossas liberdades individuais são mantidas:
De outro lado, é de chamar a atenção para que os impostos representam para as liberdades de que usufruímos, que levou o conhecido aviso de Abraham Lincoln: “Acabem com os impostos e apoiem o livre comércio e nossos trabalhadores em todas as áreas da economia passarão a servos e pobres como na Europa”; ou para o tipo de estado de que beneficiamos que está na base da célebre afirmação de Olivier Wendell Holmes: os impostos são o que pagamos por uma sociedade civilizada. (apud, BUFFON, 2005, pg.42)
Em outras palavras, o Estado tem por finalidade manter o bem-estar social, e por meio dos tributos que os entes podem promover melhorias diretas na vida dos contribuintes. Há tributos que são vinculados, ou seja, tem destinação direta para serem usados, mas o imposto, por exemplo, é um tributo não vinculado, ou seja, o Estado pode cobrá-lo sem que exista destinação específica para esse dinheiro, o que gera muitos problemas, em especial em países como o Brasil, em que há um quadro muito grande de desigualdade, concentração de renda e pouco interesse político em realizar a atividade fim do Estado: proporcionar uma vida digna a todos cidadãos, utilizando como premissa a equidade para melhorar a vida dos menos favorecidos.
Também é necessário frisar que para garantir a liberdade das pessoas, é preciso que os impostos não interfiram no mínimo existencial, ou seja, o mínimo necessário para uma pessoa viver dignamente. Se a pessoa não possui esse mínimo, nunca terá liberdade, será apenas uma escrava do sistema. Portanto, em consonância com o princípio da progressividade tributária, aqueles menos favorecidos deveriam pagar menos impostos, enquanto os mais favorecidos contribuem progressivamente, de acordo com a sua renda.
À luz da Constituição Federal, nosso Estado visa construir uma sociedade livre, justa e igualitária, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, no entanto, a óptica liberal que se instaurou nas esferas de poder desmantela o Estado Social, construído a duras penas, e agrava a situação de desigualdade. Há uma promoção de benefícios fiscais para empresas, bancos e pessoas abastadas, em detrimento da qualidade de vida do brasileiro médio, que é extremamente precária pela carga excessiva de impostos e poucos serviços gratuitos de qualidade, indispensáveis para manutenção de uma vida digna, como a saúde, educação e a segurança.
3. BRASIL: O PARAÍSO DAS CLASSES DOMINANTES
Bourdieu tem interessantes pensamentos acerca da dominação que pode nos ajudar a compreender como se perpetua um sistema que inquestionavelmente beneficia uma fatia mais abastada da sociedade. Para o sociólogo francês, não podemos compreender isoladamente um fenômeno social, há uma relação. Os pilares fundamentais para entendermos a teoria Bourdiesiana são o habitus, o campo e o capital.
Primeiramente, campo é um espaço abstrato constituído pelos agentes sociais e as suas posições relativas uns aos outros, espaço esse no qual ocorrem as relações, alianças e disputas de poder. As posições no campo são determinadas pelo capital, conceito de Bourdieu utilizado para explicar os recursos ao dispor do agente (individuo, instituições, grupos) para disputar pela subversão dos dominantes ou a conservação da posição de dominação, caso o agente já a detenha. Bourdieu descreve quatro tipos de capital, econômico, cultural, social e simbólico. E por último e mais importante de todos os conceitos, o habitus que seriam as disposições sociais, maneiras de pensar, comportamentos, desejos, que são incorporados socialmente.
Podemos compreender a conservação do poder nas mãos daqueles que já o detém pela disseminação da ideologia dominante pelo acumulo de capital nas mãos dos super-ricos, não apenas de capital econômico, mas também capital social exemplificado nas relações mantidas entre empresários e políticos tendo assim um empréstimo mútuo de capital. E garantindo a conservação dessas relações através do capital simbólico transferindo de uma ideologia que legitima as diferenças sociais, fazendo-as parecerem justas para os dominados, que então acreditam na legitimidade de seu lugar na sociedade. Como descrito por Bourdieu.
A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. (BOURDIEU, 2006, p.30)
Utilizando a história de outros países para compreender a lógica de nossas estruturas de poder, podemos citar um importante documento que demonstra claramente a concatenação de interesses da classe dominante: o Memorando Powell. Era um momento de progresso: o movimento negro, movimento feminista, movimentos contra a guerra no Vietnã em meados dos anos 60, movimentos ambientalistas e até mesmo movimentos em favor aos direitos dos consumidores tinham força política suficiente para pressionar o Governo a fim de estabelecer políticas públicas que atendessem à população. Esses eram os grandes inimigos do corporativismo dos Estados Unidos.
Não eram apenas os anticomunistas histriônicos que viam no grande ascenso dos movimentos pelos direitos civis dos negros, do feminismo, do movimento gay nos anos 1960 uma ameaça ao sistema. De fato, o conjunto desses movimentos estremecia as bases racistas, machistas e moralistas do establishment americano. Segundo o teórico literário Fredric Jameson, os anos 1960 começam com a Revolução Cubana (1959), sob a influência da descolonização da África inglesa e francesa, e com os primeiros sit-ins organizados pelo movimento negro nos EUA. Começando, deste modo, um pouco antes de 1961, a década, segundo esta periodização, encerra-se com outra série de eventos que atingem seu ápice em 1973. (apud, HOEVELER, 2017, p.350).
Diante das iminentes ameaças aos pilares estabelecidos pelos setores dominantes e conservadores da sociedade daquele país, houve mobilização dessa classe a fim de barrar os avanços sociais e o “excesso de democracia”. O Memorando Powell é um dos mais conhecidos documentos elaborados em contraponto ao Estado Social, e determinava uma ofensiva midiática, política e jurídica àqueles grupos que exigiam mais direitos aos cidadãos.
É interessante notar que a sugestão de que o antagonista da empresa global era movido por motivos ocultos faz parte do discurso empresarial do período. James Roche, durante a sua guerra com Nader, chegou a declarar à revista Newsweek que realmente havia “uma conspiração”, “por parte de certas pessoas”, para produzir “mudanças tão radicais que, praticamente, destruiriam a livre iniciativa como a conhecemos” (Muller & Barnet, 1974, p. 114). Também se percebe aqui outra “manobra” semântica bastante presente no discurso empresarial do período: classificar os interesses de trabalhadores, mulheres, negros, consumidores, etc. como “interesses especiais” e identificar os interesses empresariais com o “interesse público”, o “interesse geral” ou mesmo o “interesse nacional”. (HOEVELER, 2017, p.350)
Interessante observar como repercutiram essas desmobilizações da classe dominada: em recente estudo realizado por pesquisadores das Universidades norte americanas Princeton e Northwestern foi demonstrado que o poder político do estadunidense que não pertence a uma elite financeira é ínfimo em comparação ao poder pertencente à classe dominante. Essa mesma pesquisa determinou que projetos de lei, apoiados pelo conglomerado corporativista estadunidense, têm sessenta por cento de chance de serem aprovados, enquanto leis apoiadas pela grande maioria da população têm apenas trinta por cento de chance de serem promulgadas, ou seja, individualmente o poder político do cidadão comum é irrelevante para as engrenagens que movem a política. Podemos inferir que isso ocorre especialmente pela quantidade de lobbys feitos em favor do grande capital, corresponde a um volume trinta e quatro vezes maior do que o lobby feito pelas representações sindicais, conforme exposto pelo professor e ex-secretário do trabalho dos Estados Unidos, Robert Reich, em Saving Capitalism.
Em solo brasileiro também há uma ínfima força política que emana do povo e um sistema de leis extremamente benéfico para elite econômica. Segundo um estudo publicado na Le Monde Brasil, intitulado de “O paraíso dos super-ricos”, o Brasil é o país com informações disponíveis para estudo com a maior concentração de renda. Ainda esse estudo demonstra que a alíquota média paga pela elite econômica brasileira é inferior àquela paga pela classe média, a despeito do princípio da progressividade tributária, proposto constitucionalmente.
De acordo com a referida pesquisa, essa distorção ocorre especialmente porque há isenção de tributos sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas de grandes empresas. Em dissonância à falta de tributação sobre a renda, conforme dados divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE, aproximadamente 65% dos impostos arrecadados em solo brasileiro advém de tributação sobre o consumo. Isso significa que todas as classes sociais pagarão o mesmo ao consumir, entretanto, aqueles com menos acesso a recursos financeiros, proporcionalmente à sua renda, pagam mais impostos.
Em termos de estrutura tributária (a parcela dos principais tributos em relação ao total da receita tributária), a percentagem de impostos indiretos e particularmente o IVA (ICMS) é relativamente alta no Brasil em comparação com os países da OCDE. A participação dos impostos indiretos se manteve praticamente estável entre 1990 e 2010, com um ligeiro aumento nas receitas de impostos específicos sobre o consumo (por exemplo, impostos especiais sobre o consumo e os impostos sobre o comércio internacional). Esta tendência de aumento dos impostos específicos sobre o consumo contrasta com o seu papel decrescente observado na região e nos países da OCDE. Além disso, as elevadas receitas provenientes da tributação indireta no Brasil estão ligadas a quatro formas distintas de IVA, que são arrecadados em nível estadual, tornando o sistema complexo. No que tange à tributação direta, as receitas tributárias de impostos sobre os rendimentos e lucros têm desempenhado um papel secundário como uma fonte de receita na América Latina, apesar da tendência de aumento observada durante o período de 1990-2010.2 2 Na maioria dos países da LAC, além de aumento de receitas de impostos de renda da pessoa jurídica e sobre exportações, o preço internacional de commodities e, em particular, as receitas provenientes dos recursos naturais (petróleo e minérios), também contribuem para o aumento da participação dos impostos diretos em relação ao total das receitas arrecadadas. Tais impostos também aumentaram no Brasil, mas em ritmo mais lento do que a média na região, chegando em 2008 a um patamar de 23% (em comparação com 27% na região e 35% na OCDE). (OCDE, 2010, p.02)
Ainda nesse sentido, há uma problemática que perdura desde 1988, com a promulgação da nossa Constituição: o artigo 153 da carta magna é de eficácia limitada, e prevê que a União deveria promulgar lei infraconstitucional que tributasse as grandes fortunas, entretanto, é um projeto que sequer tem previsão para ser votada, muito menos tem interesse político para entrar de fato em vigor. Esse é um dos exemplos que expõe a falta de interesse do Estado brasileiro em instituir impostos sobre a renda, seja pela facilidade de arrecadar impostos sobre o consumo, seja pela concatenação de interesses a fim de atender uma elite econômica.
4. A PEC 55 E DEMAIS MEDIDAS DE AUSTERIDADE
O princípio da dignidade da pessoa humana, apresentado como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil no art 1º da nossa Constituição Federal, é de suma importância para nortear as políticas públicas que devem ser dotadas pelos governos conseguintes. Embora seja possível certa discricionariedade ao governar o país, está atrelado à esse fundamento basilar a ideia de segurança jurídica, ou seja, direitos adquiridos pela população, além disso, dele decorrem as ideias dos direitos fundamentais que constam na carta constitucional.
Poderíamos até dizer que a eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspiram a ordem jurídica, Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito, Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional. (DA SILVA,1998, p.92)
Em dissonância a esse princípio, especialmente no período em que governa o presidente interino Michel Temer, há um desmonte dos direitos adquiridos pela população e também a desvinculação do Estado de suas atividades fim, seguindo uma agenda neoliberal de Estado mínimo.
Desde a promulgação do Código Tributário, em 1966, os impostos, uma espécie de tributo, não tinham vinculação específica, exatamente para garantir maior liberdade aos governantes. Entretanto, é um meio para desmantelar o Estado Social. A título de exemplo, temos a Emenda Constitucional 55, promulgada em 2016, que prevê um teto de gastos para o Governo, afetando em especial os gastos sociais de previdência, saúde e educação. Outra grande problemática que circunda essa emenda constitucional é a limitação apenas dos gastos sociais, e não há limitação alguma para gastos com a dívida púbica, beneficiando diretamente o mercado financeiro e os grandes capitalistas.
A dívida pública abrange empréstimos contraídos pelo Estado junto a instituições financeiras públicas ou privadas, no mercado financeiro interno ou externo, bem como junto a empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros governos. (AUDITORIA CIDADÃ, 2013, p.01)
É a instauração da lógica neoliberal de Estado mínimo, sucateando os serviços estatais. Com limite de gastos para funções fim do Estado, há consequentemente maior desvinculação dos impostos. Ou seja, o cidadão contribui e não tem a contraprestação do Estado de fornecer serviços gratuitos. Além de pagar uma carga tributária muito alta, o contribuinte muitas vezes terá que recorrer aos serviços particulares para ter acesso a serviços básicos à manutenção da dignidade da pessoa humana. Conforme Chomsky aponta em Requiem for The American Dream a melhor forma de privatizar um serviço estatal é tirar os recursos que o mantém, com o advento da emenda supracitada, gradualmente os serviços públicos serão sucateados e a tendência é privatizá-los, beneficiando os detentores de capital.
Em conformidade à lógica predominante, o Congresso Nacional também promulgou leis que desestruturam o Estado Social como a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), que foi recentemente aprovada, além do projeto de lei 4.302/98 que diz respeito a terceirização para todas as atividades de uma empresa. Agora a classe operária venderá sua força de trabalho por cada vez menos, trabalhar mais, pagar uma carga excessiva de impostos e ainda receber poucas contraprestações do Estado que mantém.
O estado neoliberal é, pois, parte de uma totalidade maior que é o regime de acumulação integral. Onde quer que tenham sido implantadas as políticas neoliberais implicaram sempre em aumento da exploração, da miséria, dos conflitos sociais. As análises de Braga (2013; 2016) demonstram, por exemplo, o crescimento do lumpemproletariado à escala mundial. Processos que ocorreram na maioria dos países: a) privatizações das empresas estatais; b) nova regulamentação das regras de mercado (alguns chamam desregulamentação), como abertura dos mercados nos países subordinados (livre mercado) enquanto nos países imperialistas predomina um certo protecionismo; c) radicalização dos mecanismos de financeirização da economia (aumento do poder político e econômico dos capitalistas financeiros em relação aos demais ramos de atividade); d) retirada de recursos das áreas sociais (assistência social, saúde, educação etc.) e sua reconversão para setores do capital (financeiro, industrial etc.); e) retirada ou enfraquecimento de direitos trabalhistas garantidos pelas formas estatais integracionistas e intervencionistas, demandas que a reestruturação produtiva impuseram aos estados; f) mudanças na legislação de saúde, previdência etc. aumentando a mercantilização e privatização destes setores; g) intervenção radical do FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio determinando as políticas econômicas dos países subordinados etc. (MAIA, 2016, p.56)
Podemos fazer um paralelo com o contexto em que se despertou a Revolução Francesa. Embora tenha ocorrido em outro momento político, melhor dizendo, a monarquia, ocorreu especialmente pela sobrecarga de impostos que acometia as classes burguesas e operárias. Em dissonância com a realidade de seus súditos, Luis XVI, além de ter gastos extravagantes no palácio de Versailles usou um grande montante de dinheiro na Guerra de Independência Americana. Todo o ônus de manter o Estado recai sobre as classes não dominantes e sem os mesmos privilégios, especialmente fiscais, do clero e da nobreza.
Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada vez maior proporção da renda do camponês, e a inflação reduzia o valor do resto. Pois só a minoria dos camponeses que tinha um constante excedente para vendas se beneficiava dos preços crescentes; o resto, de uma maneira ou de outra, sofria, especialmente em tempos de má colheita, quando dominavam os preços de fome. Há pouca dúvida de que nos 20 anos que precederam a Revolução a situação dos camponeses tenha piorado por essas razões. (HOBSBAWM, 2005, p.11)
A classe dominante mudou, no entanto, a excessiva tributação das classes dominadas perdura. Enquanto as classes dominadas pagam muitos impostos e pouco desfrutam dos ônus de viver em sociedade, as classes dominantes desfrutam de privilégios políticos e tributários, conforme demonstrado na matéria publicada pela Le Monde “O paraíso dos super-ricos”. Nas palavras de Chomsky “As maiores empresas americanas deslocaram o fardo de sustentar a sociedade para o resto da população”[1] e isso se aplica na prática não somente em solo estadunidense, é uma lógica capitalista predatória aplicada em âmbito global e também no Brasil.
5. A DESIGUALDADE NO BRASIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO GUIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL POR MEIO DOS TRIBUTOS
A República Federativa do Brasil apresenta em sua carta magna o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana como um de seus princípios basilares. No entanto, esses princípios tão caros à Constituição de 1988 tem pouca eficácia prática, visto que perduram diversas desigualdades, que têm início nos tempos mais remotos de nosso país.
O Brasil é um país que traz em seu âmago diversas desigualdades que se conversam: a desigualdade socioeconômica e também a desigualdade racial. Conforme pesquisa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) em 2015, apesar de os negros corresponderem à 54% da população brasileira, ainda hoje são 75% dos 10% da população mais pobre em nosso país.
A Constituição de 1988 tinha um grande potencial para diminuir a desigualdade por meio da justiça social, especialmente no âmbito tributário. O artigo 153, inciso VII da Constituição Federal, por exemplo, trata do imposto sobre grandes fortunas. Sendo uma alternativa para a efetivação da tributação no sistema brasileiro, uma vez que incidiria uma alíquota progressiva sobre o patrimônio considerado de grande fortuna, ou seja, quanto maior o patrimônio, maior a porcentagem incidente sobre o cálculo. Dessa maneira, regulamentada tal lei seria de extrema eficácia para a diminuição da desigualdade social e por consequente a promoção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.
Entretanto, a incompatibilidade entre o Código Tributário Nacional, promulgado outrora em tempos muito mais autoritários e a Constituição Federal, que deixa explícito o contraponto à Ditadura Militar e outros governos autoritários é uma das barreiras à justiça social por meio dos impostos. A lei promulgada em 1966, no entanto, é extremamente eficaz em arrecadação, propiciando que se perdurem as desigualdades.
Nesta senda, há que se pensar no Estado não como um ente verticalmente estabelecido entre o contribuinte, mas horizontalmente posto, em que, quando este cumpre seu dever de pagar tributos, aquele é obrigado a contra-prestacionar com a busca daquela sociedade mais justa, livre e solidária. Faz-se visível, então, a solidariedade não apenas como algo entre os cidadãos entre si, mas também dos cidadãos e o Estado – que, afinal de contas, é, apenas, na forma de governo que vige no Brasil, a projeção do poder da sociedade em que se vive.
6. CONCLUSÃO
A justiça social por meio dos impostos é possível. A maior tributação da renda e não do consumo, tendo alíquotas diferenciadas de acordo com a renda de cada cidadão indubitavelmente é muito mais trabalhoso e dispendioso para o Estado, entretanto, estaríamos cumprindo o que foi proposto nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, mais especificamente, no artigo 3º da Constituição Federal.
As classes dominantes do campo político e econômico têm grande influência não somente para que as desigualdades sociais, agravadas pela forma com que se estruturam as políticas tributárias do Brasil, mas também na desmobilização das massas, na promulgação de leis que as beneficiem e também no desmonte do Estado social.
Destarte, só poderemos promover a justiça por meio da tributação se houver uma quebra de paradigma. Conforme a teoria bourdieusiana, as classes com maior capital dentro de um campo tendem a manter seu poder, aliando-se com outras classes dominantes, logo, é uma tarefa extremamente árdua quebrar a lógica instaurada não somente localmente, mas mundialmente. Embora seja de suma importância contribuir para manutenção dos aparatos estatais, é imprescindível maior conscientização e mobilização das classes dominadas acerca do funcionamento das leis tributárias no Brasil, a fim de promover justiça social, honrando então os objetivos fundamentais da nossa república.
REFERÊNCIA
A ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Estatísticas sobre Receita na América Latina. 2010. Disponível em: https://www.oecd.org/ctp/tax-global/BRAZIL_PT_country%20note_final.pdf .Acesso em: 03 dez. 2017.
AUDITORIA CIDADÃ. FAQ – Auditoria Cidadã. 2013. Disponível em http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/10/FAQ-Auditoria-Cidad%C3%A3.pdf .Acesso em: 03 dez. 2017.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. v. 14. Brasil: Bertrand Brasil, 2006.
BUFFON, Marciano. Tributação e Dignidade Humana. v. 1. Brasil: Livraria do Advogado, 2009.
DA SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de direito administrativo, v. 212, p. 89-94, 1998.
HOBSBAWM, Eric J. A revolução francesa. Brasil: Paz e Terra, 2005.
HOEVELER, Rejane Carolina. Introdução ao Memorando Powell. Marx e o Marxismo - Revista do NIEP-Marx, [S.l.], v. 4, n. 7, p. 343-360, fev. 2017. ISSN 2318-9657. Disponível em: http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/199. Acesso em: 04 dez. 2017.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. 2015. Síntese dos indicadores sociais: uma análise das condições de vida. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95011.pdf . Acesso em: 03 dez. 2017.
MAIA, Lucas. A PEC 55 e o Neoliberalismo Discricionário no Brasil. Revista Despierta, v. 3, n. 3, p. 52-76, 2016.
REQUIEM for the American Dream. Direção: Kelly Nyks, Produção: Kelly Nyks. PF Pictures, 2015.
SAVING Capitalism. Direção: Jacob Kornbluth, Netflix, 2017.
[1] Tradução livre de um trecho do documentário Requiem for The American Dream
Graduanda do Curso de Direito; Universidade Federal do Rio Grande - FURG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Marcela Bertolino da. O Direito Tributário como meio de promoção da justiça social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52176/o-direito-tributario-como-meio-de-promocao-da-justica-social. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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