ADIVAL JOSÉ REINERT JUNIOR
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma análise crítica e ponderar sobre as inovações no instituto da curatela trazidas pelo novel Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146/15 no ordenamento jurídico brasileiro, observando a questão específica da curatela e de sua modificação, bem como analisar as outras alterações derivadas do Estatuto e que também afetam o instituto da curatela. Para tanto, foi necessário resgatar a importância da luta dessas pessoas em um rápido aspecto histórico, onde daí em diante passou a analisar os reflexos do Estatuto da Pessoa com Deficiência na curatela, observar a mudança da capacidade civil e as novas perspectivas da curatela, bem como a antinomia de normas causada em decorrência da vacatio legis. A pesquisa abordou entendimentos doutrinários para saber quais foram essas inovações e se foram realmente positivas ou negativas no tratamento jurídico e humanístico dado às pessoas com deficiência, e como está sendo aplicada a nova regra no caso concreto. Diante de estudo e reflexão foi possível concluir que as modificações foram muito positivas, uma vez que possibilitaram a autodeterminação das pessoas com deficiência na busca por mais inclusão social e cidadania.
PALAVRAS-CHAVE: Curatela. Liberdade. Capacidade Civil. Antinomia.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa pretende fazer a análise das inovações no instituto da curatela advindas com a publicação e vigência da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), Lei nº 13.146 de 06 de julho de 2015, onde ocorreram expressivas alterações na legislação pátria brasileira, mais precisamente no Código Civil (CC), com diversas modificações e revogações de alguns de seus artigos.
Nessa esteira, foram empregadas mudanças estruturais e funcionais no instituto da curatela, bem como no que diz respeito à teoria da incapacidade civil, afetando diretamente alguns dos institutos do Direito Civil, como a interdição, a curatela, o casamento, ser testemunha, da mesma maneira que implementou a figura do instituto da tomada de decisão apoiada, até então novidade para o direito brasileiro.
Além disso, com a entrada em vigor da nova norma que trata das pessoas com deficiência e, consequentemente, com as alterações nas legislações para acompanhar a suas inovações, houve uma antinomia ou contradição de normas entre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo Código de Processo Civil (CPC) no que diz respeito às regras referentes à curatela constantes no Código civil. Essa antinomia foi gerada através do CPC que revogou as novas regras antes estabelecidas pelo Estatuto.
Dessa forma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi assertivo nas inovações do instituto da curatela? Este é o problema que pretende responder a presente pesquisa.
Como hipótese para a possível conclusão a ser obtida por esta pesquisa elaborada a seguir, adotou-se a ideia de que o Estatuto da pessoa com deficiência ao alterar os requisitos da curatela, ele foi assertivo, uma vez que proporcionou mais liberdade ao curatelado. Sendo assim, perfilhou-se a ideia de que com a nova redação trazida pelo Estatuto, as pessoas com deficiência hoje tem uma vida com mais dignidade e respeito.
O objetivo geral deste trabalho é analisar quais foram as inovações da curatela, ponderando as alterações nos requisitos da legitimidade para promovê-la e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, é necessário verificar se, no caso concreto, qual requisito deverá ser adotado, uma vez que há um choque de normas gerado pela vigência do novo CPC e se houve ou não algum tipo de agravamento no tratamento jurídico dado às pessoas com deficiência que tiveram seu direito mitigado.
Os objetivos específicos deste artigo é analisar as mudanças estruturais, no que diz respeito ao instituto da curatela, que agora é considerada de caráter temporário e tão somente patrimonial. Verificar o rol taxativo para o levantamento da curatela, que restringiu bastante o rol anteriormente trazido pelo Estatuto. E, por último, como objetivo específico, observar a antinomia gerada pelo Estatuto em descompasso com o Novo Código de Processo Civil no que diz respeito à legitimidade para a curatela.
A justificativa para uma pesquisa científica como esta é que ela é imprescindível para o conhecimento e evolução do direito, uma vez que busca-se a melhor aplicação do direito ao caso concreto, possibilitando a elaboração de novos estudos, ideias e conceitos no intuito de absorver cada vez mais conhecimento jurídico e reflexões sobre assuntos importantes para o estudo do direito, analisando sempre as melhores soluções na busca por uma justiça mais justa a ser aplicada em uma sociedade que está sempre se inovando, e por isso, o direito também precisa se inovar.
A relevância de estudos científicos como este, que são notadamente de cunho científico, mas também com questões de temáticas sociais, que no caso em tela visa analisar o conflito de normas e o possível prejuízo ao direito dado ao grupo de pessoas abrangido pela norma a qual seria, até então, mais benéfica e em consonância ao apregoado no próprio Estatuto das Pessoas com Deficiência. Podendo, inclusive, figurar um possível retrocesso social para os avanços deste grupo.
A metodologia utilizada para a elaboração deste trabalho de artigo científico é a pesquisa bibliográfica que se caracteriza em aprofundar o contexto e a interpretação das reflexões obtidas através de leitura em livros e artigos científicos publicados sobre o tema, além de possíveis decisões jurisprudências. A tradição metodológica será do tipo misto (dedutivo e indutivo) pois serão analisados os dados presentes na sociedade, como também será feita uma observação individual acerca do tema. O viés metodológico será o exploratório, sendo a pesquisa de caráter qualitativa.
2 ASPECTO HISTÓRICO
No decorrer da história da civilização, as pessoas que possuíam algum tipo de deficiência eram tratadas de forma desrespeitosa e até desumana por parte da sociedade e não tinha sequer nenhum tipo de direito, pois em alguns momentos da história não eram nem mesmo consideradas como pessoas pela sociedade.
Sendo assim, após muitos anos de lutas, foi criada em 1948 a Declaração Universal do Direitos Humanos, que serviu de base para assegurar os direitos conquistados por estas pessoas, como também previstos em constituições, que é a base fundamental do ordenamento jurídico.
Como consequência disto, surgiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/15, no intuito de cumprir as normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos ratificados pelo Brasil no ano de 2009, que reuniu todos esses direitos em só corpo de lei destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Sendo assim, o Brasil passou, definitivamente, a ter uma legislação específica que trata do assunto em voga.
3 OS REFLEXOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA CURATELA
Com o advento da Lei 13.146/15 foi possível verificar significativas alterações na definição e no conceito de pessoa portadora de deficiência, bem como em suas classificações ou distinções. Além disso, as mudanças também se operaram em relação à capacidade civil, ao direito de ser testemunha, à adoção, ao casamento, à interdição, à curatela e à novidade da tomada de decisão apoiada.
Uma das maiores alterações no Código Civil foi, sem dúvida, em relação à capacidade civil e em decorrência disso, mudou também o instituto da curatela. Essa alteração no instituto vem causando várias interpretações pois em sua nova redação, suprimiu as hipóteses anteriormente previstas de aplicação da curatela em relação às pessoas que não tenham o necessário de discernimento para atos da vida civil, bem como as pessoas com deficiência mental e para as pessoas sem o completo desenvolvimento mental.
Além disso, o Estatuto transformou a curatela para algo meramente financeiro, ou seja, a partir de agora, a curatela só terá efeitos econômicos e negociais, não mais intervindo nas questões pessoais do indivíduo em situação de curatela. Essa mudança trouxe muito mais liberdade para o curatelado, uma vez que este poderá casar, ter filhos, adotar e até mesmo votar, tudo em consonância e em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
3.1 MUDANÇA DA CAPACIDADE CIVIL
Em relação à capacidade civil, há hipóteses em que uma pessoa não poderá exercer de fato os seus direitos por ter limitações na sua capacidade de exercício, que desta feita, necessitará de representação ou assistência conforme o nível de sua incapacidade. A primeira mudança no Código Civil Brasileiro foi o art. 3º, conforme a redação:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.
(Brasil, Código Civil, 2002, artigos 3º e 4º).
É possível observar que a alteração do art. 3º do CC foi muito expressiva, tendo todos os seus incisos revogados. Este artigo trata das hipóteses de incapacidade absoluta, trazendo em seu caput que são absolutamente incapazes apenas os menores de 16 anos. Já o artigo 4º manteve a maioria dos seus incisos, apenas suprimindo a parte que tratava dos que “por deficiência mental tenham o discernimento reduzido” e “os excepcionais sem desenvolvimento mental completo”, que foram substituídos para a classificação de “por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir a sua vontade” que antes estava previsto nas hipóteses de incapacidade absoluta.
3.2 AS NOVAS PERSPECTIVAS DA CURATELA
A curatela significa dizer, sumariamente, que em alguns casos é necessário a figura de um tutor ou um curador para cuidar e proteger de uma pessoa que não pode se auto determinar, por ser, naquele momento, incapaz, seja relativamente ou absolutamente. Como o Estatuto trouxe uma nova perspectiva para a curatela, transformando-a em instrumento que visa assegurar e preservar as questões financeiras e patrimoniais do curatelado, além de também trazer um caráter temporário para a curatela.
O curador será responsável por aquela pessoa relativamente incapaz apenas no que diz respeito a reger e administrar os seus bens, ou seja, apenas em questões meramente patrimoniais e negociais, deixando de lado os atos da vida particular do curatelado. Nesse sentido argumenta o doutrinador Silvio Venosa:
A finalidade da curatela é principalmente conceder proteção aos incapazes no tocante a seus interesses e garantir a preservação dos negócios realizados por eles com relação a terceiros. Enquanto a tutela é sucedâneo do poder familiar, a curatela constitui um poder assistencial ao incapaz maior, completando-lhe ou substituindo-lhe a vontade. O principal aspecto é o patrimonial, pois o curador protege essencialmente os bens do deficiente, auxiliando em sua manutenção e impedindo que sejam dissipados. Nesse sentido, fica realçado o interesse público em não permitir que o incapaz seja levado à miséria, tornando-se mais um ônus para a Administração. (VENOSA, 2017. p.532)
Este encargo muda conforme a condição da pessoa protegida, pois no caso de ser criança ou adolescente que não esteja mais sob o poder familiar dos pais, será necessário neste caso o instituto da tutela, onde o tutor representará ou assistirá o menor, conforme o caso, nos atos da vida civil, necessitando também de regularização de sua guarda.
A curatela se assemelha bastante à tutela, sendo cabível a curatela nos casos em que a pessoa protegida se tratar de um maior de 18 anos que, em regra, teria capacidade civil, mas que por alguma limitação não consegue exercer os atos da vida civil. Flávio Tartuce pondera a respeito do tema:
Curatela é instituto de direito assistencial, para a defesa dos interesses de maiores incapazes. Assim como ocorre com a tutela, há um múnus público, atribuído pela lei. São partes da curatela o curador e o curatelado. Estão sujeitos à curatela os maiores incapazes. Como visto, não existem mais absolutamente incapazes maiores, por força das alterações que foram feitas no art. 3.º do Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). Sendo assim, a curatela somente incide para os maiores relativamente incapazes que, na nova redação do art. 4.º da codificação material, são os ébrios habituais (no sentido de alcoólatras), os viciados em tóxicos, as pessoas que por causa transitória ou definitiva não puderem exprimir vontade e os pródigos. (TARTUCE, 2017. p. 1.508).
Portanto, como bem tratou Flávio Tartuce, a curatela é um encargo atribuído à pessoa natural para reger a vida e administrar os bens de um alguém maior de 18 anos relativamente incapaz, sendo assim, a curatela é considerada um mecanismo de proteção patrimonial.
3.3 SUJEITOS PASSIVOS NA CURATELA
As pessoas que poderão figurar como sujeitos passivos na curatela estão previstos no rol taxativo de relativamente incapazes contidos no art. 4º do Código Civil de 2002. Nesta classificação encontrasse no arti. 4º, inciso II, CC, os ébrios habituais e viciados em tóxicos, nesse caso, por se tratar de vícios em drogas, e por ser encarado como uma doença pela comunidade médica.
Também está nessa classificação de relativamente incapaz do art. 4º, inciso III, CC, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Esta classificação recebeu e ainda recebe várias críticas de autores civilistas pois é extremamente genérica e deixa brecha para várias interpretações.
Uma dessas críticas é em relação às pessoas que se encontram em estado de coma e se enquadram nessa categoria de relativamente incapaz, devendo ser assistido nos atos da vida civil, o que não faz muito sentido pois o seu estado de coma os deixam completamente impedidos de exprimir qualquer vontade. Nesse caso a curatela será utilizada e o magistrado deverá analisar, no caso concreto, as particularidades do curatelado conforme determinação médica.
Por fim, no art. 4º, inciso IV, CC, também serão sujeitos passivos de curatela, os pródigos que são pessoas caracterizadas por dilapidar ou dissipar seu patrimônio, gastando mais do que o necessário sem justificativa, de modo a prejudicar seu próprio sustento. É considerado relativamente incapaz por se tratar de um desvio no comportamento, necessitando dessa forma de um laudo psicológico que ateste esta condição para que o juiz entenda pela aplicação ou não da medida protetiva da curatela, pois o simples fato de gastar o dinheiro não implica em uma doença, neste caso é imprescindível um laudo médico.
Assim sendo, segundo a Lei 13.146/15, o curador só irá atuar apenas nas questões meramente patrimoniais e negociais e somente privará o curatelado de, sem curador, poder emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração.
3.4 LEGITIMIDADE PARA A CURATELA E A ANTINOMIA DAS NORMAS
A nova redação trazida pelo Estatuto pondera que a curatela é uma medida protetiva extraordinária quando se tornar necessária, sendo proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso e será, em regra, temporária, devendo durar o menor tempo possível. Para isto, haverá um processo de interdição onde o juiz, observando no caso concreto a incapacidade, se absoluta ou relativa, decidirá na sentença pela curatela e nomeará um curador conforme o art. 1.775 e 1.775-A do CC de 2002, com a seguinte redação:
Art. 1.775. O co?njuge ou companheiro, na?o separado judicialmente ou de fato, e?, de direito, curador do outro, quando interdito.
§ 1.o Na falta do co?njuge ou companheiro, e? curador legi?timo o pai ou a ma?e; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.
§ 2.o Entre os descendentes, os mais pro?ximos precedem aos mais remotos.
§ 3.o Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador”.
Art. 1.775-A. Na nomeac?a?o de curador para a pessoa com deficie?ncia, o juiz podera? estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.
(BRASIL. Código Civil, 2002, art. 1.775 e 1.775-A).
Ainda conforme o rol de ordem preferencial de curador, o Estatuto acrescentou o art. 1.775-A ao Código Civil, onde passa a ser possível a designação de mais de um curador no processo de curatela, conforme a regra do artigo supracitado.
Outra novidade trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência é a legitimidade do próprio curatelado para promover a sua interdição. Porém esta nova regra encontra uma antinomia de normas, pois quando da alteração do Código Civil através da Lei 13.146/15 dando legitimidade para o próprio interdito conforme o art. 1.768, posteriormente com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil revogou esta legitimidade, já que em sua redação não é possível a própria pessoa promover a sua interdição, conforme a redação do art. 747 do CPC:
Art. 747. A interdição pode ser promovida:
I - pelo cônjuge ou companheiro;
II - pelos parentes ou tutores;
III - pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando;
Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial.
(BRASIL, Código de Processo Civil, 2015, art. 747).
Nesse ponto, com a entrada em vigor no novo Código de Processo Civil, o legislador não observou a regra trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o que gerou uma contraposição de normas, uma vez que foi contrária a regra anterior e segundo a qual dava direito de o próprio curatelado poder promover a curatela, pois teria legitimidade para tal. Nesse sentindo o jurista Pablo Stolze pondera:
Ha? necessidade de se interpretar adequadamente ambos os diplomas, para se tentar amenizar os efeitos de um verdadeiro choque normativo. E a tarefa tambe?m na?o sera? fa?cil, na medida em que o CPC/2015 surge com muitos dispositivos atingidos pelo Estatuto. Damos como exemplo o dispositivo do Co?digo Civil que trata da legitimidade para promover a ac?a?o de interdic?a?o (art. 1.768), revogado pelo art. 747 do CPC/2015. O Estatuto da Pessoa com Deficie?ncia, por seu turno, ignorando a revo gac?a?o do dispositivo pelo CPC/2015 — observou FREDIE DIDIER JR. — acrescentou-lhe um novo inciso (art. 1.768, IV, CC), para permitir que a pro?pria pessoa instaure o procedimento de curatela. Certamente, a conclusa?o a se chegar e? no sentido de que o art. 747 do CPC vigorara? com este novo inciso. Sera? um intenso exerci?cio de hermene?utica que devera? ser guiado sempre pelo bom senso. (GAGLIANO, PAMPLONA, 2017, p 743).
Vale ressaltar que essa modificação que gerou essa antinomia de normas se deu em decorrência também do lapso temporal da vacatio legis de cada legislação, uma vez que o Código de Processo Civil foi publicado primeiro, porém com uma vacatio legis maior de um ano. Posteriormente, é que foi publicado o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que por sua vez com uma vacatio legis menor de apenas 180 dias. Sendo assim, o Estatuto entrou em vigor primeiro do que o CPC, e em decorrência disso houve esse choque de normas e essa revogação de incisos, conforme explica Cristiano Farias, Rogério Cunhado e Ronaldo Pinto:
Nota-se, ademais, que o Código Adjetivo de 2015 teve de cumprir uma vacatio legis de um ano, enquanto à Lei Brasileira de Inclusão, por seu turno, foi estabelecido um período de vacância de 180 dias. Ou seja, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, embora seja lei posterior (já que a norma legal existe a partir de sua promulgação, conforme entendimento prevalecente em doutrina), entrou em vigor em janeiro de 2016, enquanto o Código de Processo Civil de 2016 (que é lei anterior) somente ganhou vigência em março de 2016. Malgrado seja possível uma interpretação no sentido de que urna norma teria revogado a outra (utilizando o critério da anterioridade ou da especialidade), a melhor compreensão é no sentido da harmonização entre os dois Diplomas Legais, procurando estabelecer uma interpretação sistêmica. Assim sendo, deve se retirar de cada lei aquilo que melhor se mostrar para a pessoa com deficiência. (FARIAS; CUNHA; PINTO; 2016, p.329).
Conforme observado pelos doutrinadores Cristiano Faria, Rogério Cunha e Ronaldo Pinto, é notória a contradição entre a regra estabelecida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo Código de Processo Civil, uma vez que, em princípio, havia a possibilidade de legitimidade de um rol taxativo muito mais amplo para promover a curatela, bem como de menos requisitos para tanto. Mas com a entrada em vigor do novo CPC, essa legitimidade foi revogada.
3.5 O LEVANTAMENTO DA CURATELA
Ainda em relação a curatela, por esta ter, em regra, um caráter temporário, poderá ser levantada a qualquer momento, isto quer dizer que o curatelado poderá deixar de ser interditado e, consequentemente, não necessite mais do instituto de proteção da curatela. Nesse caso, o próprio curatelado poderá promover o pedido de levantamento de sua curatela, segundo a redação do art. 756 do CPC/15:
Art. 756. Levantar-se-á a curatela quando cessar a causa que a determinou.
§ 1o O pedido de levantamento da curatela poderá ser feito pelo interdito, pelo curador ou pelo Ministério Público e será apensado aos autos da interdição.
§ 2o O juiz nomeará perito ou equipe multidisciplinar para proceder ao exame do interdito e designará audiência de instrução e julgamento após a apresentação do laudo.
§ 3o Acolhido o pedido, o juiz decretará o levantamento da interdição e determinará a publicação da sentença, após o trânsito em julgado, na forma do art. 755, § 3o, ou, não sendo possível, na imprensa local e no órgão oficial, por 3 (três) vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, seguindo-se a averbação no registro de pessoas naturais.
§ 4o A interdição poderá ser levantada parcialmente quando demonstrada a capacidade do interdito para praticar alguns atos da vida civil. (BRASIL, Código de Processo Civil, 2015, art. 756).
Essa redação está de acordo com o previsto na Lei 13.146/15, porém há uma polêmica em relação às pessoas que já estavam interditadas através de um processo de curatela antes da entrada em vigor do Estatuto e, que, com a nova regra trazida pela Estatuto passaram a ter capacidade absoluta segundo o novo diploma legal. A problemática se dá no fato de ser ou não atribuído automaticamente a plena capacidade civil a quem esteja interditado. Nesse sendo explica Pablo Stolze:
Com efeito, a partir da entrada em vigor do Estatuto, surgiu a questa?o atinente ao levantamento das interdic?o?es ja? decretadas. Vale dizer, na medida em que o novo diploma considera a pessoa deficiente legalmente capaz, a curatela, que haja sido institui?da em seu favor, cairia automaticamente? Por o?bvio, mesmo que um procedimento de interdic?a?o — hoje melhor denominado como “procedimento de curatela” — haja sido conclui?do, o curatelado passou a ser reputado legalmente capaz, a partir da vige?ncia do novo Estatuto. O que na?o tem sentido, inclusive pela inseguranc?a juri?dica que geraria, e? a conclusa?o de que as curatelas designadas cairiam automaticamente. Algumas razo?es, ale?m da ja? mencionada necessidade de seguranc?a nas relac?o?es sociais, militam em favor desta linha de intelecc?a?o. A curatela, ainda que considerada extraordina?ria, na?o deixou de existir. Assim, sem prejui?zo de o interessado requerer o levantamento, nos termos das normas processuais, os termos de curatela ja? existentes devem ser interpretados na perspectiva do Estatuto, considerando-se o a?mbito limitado de atuac?a?o do curador, quanto a? pra?tica de atos de natureza patrimonial. Em suma, na?o se deve considerar que as curatelas ja? designadas quedar-se-iam, a partir do Estatuto, como em um “passe de ma?gica”. (GAGLIANO, Pablo Stolze/ PAMPLONA, Rodolfo filho. Novo curso de direito civil, volume 6: direto de família, 7ª.ed. Sa?o Paulo: Saraiva, 2017, p 745).
Portanto, ainda há muitos pontos que carecem de uma melhor reflexão por parte dos aplicadores do direito, mais precisamente aos magistrados que necessitaram utilizar-se das regras da legislação especial para resolver da problemática da antinomia, da hermenêutica, dos princípios gerais do direito, bem como da equidade para resolver esses problemas no caso concreto, uma vez que há pontos ainda confusos que precisam ser melhor considerados na legislação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o advento Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência em 06 de julho de 2015, e sua entrada em vigor em 04 de janeiro de 2016, no intuito de cumprir as normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos ratificados pelo Brasil no ano de 2009, processou-se alterações de cunho relevantes no ordenamento jurídico brasileiro, com alterações e revogações de alguns artigos do Código Civil Brasileiro.
Essas modificações na legislação civilista, mais precisamente, as mudanças estruturais e funcionais em relação à teoria da incapacidade civil prevista na norma, afetou diretamente alguns dos institutos do Direito Civil, como exemplos: a interdição, a curatela, o casamento, os direitos à reprodução e o novo instituto da tomada de decisão apoiada.
Além das modificações, verificou-se também problemas que causaram uma antinomia gerada pelo Estatuto em descompasso com o Novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor logo após a vigência do Estatuto, e que revogou alguns incisos do Código Civil em relação à curatela, que, pela regra do Estatuto a própria pessoa teria legitimidade para propor a sua curatela. No entanto, as regras foram revogados pelo CPC.
Ao analisar todas essas alterações e inovações trazidas pelos Estatuto, o presente artigo científico se preocupou em responder se, de fato, o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi assertivo nas inovações do instituto da curatela? Como hipótese para a pesquisa realizada, adotou-se a ideia de que o Estatuto da pessoa com deficiência ao alterar os requisitos da curatela, ele foi assertivo, uma vez que proporcionou mais liberdade ao curatelado.
A pesquisa abordou inicialmente o aspecto histórico sobre os direitos das pessoas com deficiência que decorreram, em linhas gerais, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que foi ratificada pelo Brasil em 2009 e posteriormente no ano de 2015 é que foi publicado o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Após isso, abordou os reflexos do Estatuto da Pessoa com Deficiência na Curatela, que alterou diversos artigos do Código Civil civil como os que tratam da capacidade civil, curatela, tutela e testemunha. Após isso, a presente pesquisa passou a abordar as mudanças na capacidade civil, onde hoje no direito brasileiro só é considerado incapaz absolutamente os menores de 16 anos.
Em seguida discorreu sobre as novas perspectivas da curatela que agora é tão somente de caráter negocial e patrimonial, não afetando mais a seara particular do curatelado. Logo após tratou dos sujeitos passivos da curatela, que agora este rol está bem diferente visto que foi alterado, sendo agora o rol taxativo de relativamente incapaz contido no art. 4º do Código Civil.
Posteriormente analisou a legitimidade para a curatela e a antinomia das normas, onde foi constatado que a contradição das normas se deu por um infortúnio de temporalidade de vacatio legis das normas, onde o CPC foi publicado primeiro, porém com uma vacatio legis de 1 ano, o que acabou conflitando com o Estatuto que foi publicado depois, mas com vacatio legis de apenas 180 dias, entrando em vigor antes do CPC. Ou seja, o Estatuto entrou em vigor em 02 de janeiro de 2016 e o CPC ulteriormente em 18 de março de 2016, revogando a norma.
Por último, a pesquisa explorou o levantamento da curatela, já que tem caráter temporário e pode a qualquer tempo ser levantada por motivo de a pessoa ter recuperado a capacidade civil e poder, por si só, exercer os atos da vida civil. Nesse ponto, analisou a posição da doutrina, em que esse levantamento não se daria de maneira automática, em decorrência da nova regra capacidade civil do Estatuto, por uma questão de segurança jurídica.
A metodologia utilizada neste trabalho foi a pesquisa bibliográfica de livros e artigos científicos publicados na internet sobre o tema. O viés metodológico foi o exploratório e a pesquisa foi de caráter qualitativa. Esta metodologia empregada foi eficaz na produção deste trabalho, apesar de ainda possuir poucas obras sobre o tema, foi possível concluir as indagações deste artigo científico.
A pesquisa foi conclusiva no sentido de que o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi, sem dúvida, muito assertivo nas inovações do instituto da curatela por ter sido um grande avanço na inclusão social das pessoas com deficiência, em virtude da promoção da autodeterminação em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, o que é o objetivo essencial do Estatuto, na medida em que modificou o caráter da curatela para meramente patrimonial, deixando o curatelado com mais liberada em sua seara particular.
Desse modo, em relação à aplicação da norma revogada pelo Código de Processo Civil em decorrência da antinomia com o Estatuto, é imprescindível realizar uma interpretação sistêmica de ambas as normas no sentido da harmonização da legislação, buscando retirar de cada lei o que for mais benéfico à pessoa com deficiência.
Portanto, de acordo com o que se retira deste trabalho, essa alteração foi muito positiva pois se operou uma mudança de paradigma, em que não se trata apenas de uma questão tão somente patrimonialista, mas sim de uma questão mais humanista e de reconhecimento de direitos pessoais, proporcionando mais liberdade, com a finalidade de possibilitar uma autodeterminação à pessoa com deficiência na busca por mais inclusão social e cidadania, para que se possa a cada dia assegurar igualdade de direito entre pessoas.
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Advogada formada em Direito pelo Centro Universitário UNIEURO, Especialista em Direito Civil e Direito Administrativo pela Faculdade Cidade Verde. Geógrafa formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Luciana Vieira. As inovações do instituto da curatela trazidas pelo Estatuto da pessoa com deficiência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52177/as-inovacoes-do-instituto-da-curatela-trazidas-pelo-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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