RESUMO: O presente estudo propõe uma reflexão sobre identidade de gênero, analisando os propósitos e desafios da utilização do nome social por aqueles em que o nome civil, Os transexuais e as travestis, até hoje, carregam o estigma do elevado grau de preconceito e rejeição perante uma sociedade ainda conversadora e patriarcal. conhecido como “nome de batismo”, não reflete sua identidade gênero. Para elaboração do presente trabalho foi escolhido o método hipotético dedutivo. Os transexuais e as travestis, até hoje, carregam o estigma do elevado grau de preconceito e rejeição perante uma sociedade ainda conversadora e patriarcal. O uso do nome social constitui passo importante rumo ao reconhecimento da identidade de gênero dos transexuais e travestis, uma vez que, assim como a retificação do registro civil, não está condicionado à realização de cirurgia de redesignação sexual. Desta forma, promove-se a inserção social, além de evitar o uso de expressões pejorativas e discriminatórias para referir-se a estes indivíduos. No Brasil, embora não haja lei que regulamente a questão da adequação do pronome da pessoa trans no registro civil, a promulgação do Decreto n. 8.727/2016 trouxe grandes avanços à luta LGBT, porquanto assegurou aos trans o direito ao uso do nome social, reconhecendo a identidade de gênero destes no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Assim, o objetivo deste trabalho é demonstrar a importância da utilização do nome social por travestis e transexuais, respeitando a identidade de gênero adotada por cada um, visto que tal problemática diz respeito a um direito que, pautado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constitui um dos direitos mais célebres e primários da história da humanidade: o uso do nome.
PALAVRAS-CHAVES: transgêneros; transexuais; travestis; nome social; identidade de gênero.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da identidade de gênero versus orientação sexual; 2.1. Fenômenos relacionados à sexualidade e ao gênero: termos e definições; 2.2. Transexuais e travestis. 3. Do nome civil. 4. Da adoção do nome social: desafios e perspectivas. 5. Conclusão. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo terá como objetivo geral analisar os propósitos e desafios do Decreto n. 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais. Observar-se-ão os seguintes objetivos específicos: Esclarecer a diferença entre “identidade de gênero” e “orientação sexual”, explanando termos e definições relacionadas aos fenômenos relacionados à sexualidade e ao gênero; Expor as dificuldades para alteração do nome e sexo no registro civil.
O método escolhido para a formulação do presente projeto foi o método hipotético-dedutivo, o qual consiste na construção de hipóteses que devem ser confrontadas, para se verificar quais hipóteses persistem como válidas. Desta forma, o presente trabalho se propõe a analisar se o uso do nome social cumpre sua finalidade em relação ao reconhecimento da identidade de gênero dos transexuais e travestis.
Para melhor explanação do tema em baila, fez-se necessário, primeiramente, distinguir identidade de gênero de orientação sexual, uma vez que, embora possam se relacionar, não se confundem, tampouco traduzem mesmo significado.
Ademais, julgou-se oportuno abordar e conceituar termos relacionados à orientação sexual e a identidade de gênero, tais como a figura do indivíduo cisgênero, transgênero, travesti, crossdresser e drag queen.
2 DA IDENTIDADE DE GÊNERO VERSUS ORIENTAÇÃO SEXUAL
Vivemos em uma sociedade em que grande parte das pessoas ainda define o gênero de um indivíduo de forma binária: homem ou mulher; baseando-se, sobretudo, no órgão genital que estas possuem. Ou seja, a partir do sexo biológico que os acompanha desde o nascimento. Contudo, a identidade de gênero que permite ao ser humano se definir como homem ou mulher não é um fato biológico, mas sim social, uma vez que o sexo “de nascença” de uma pessoa não é capaz de, sozinho, definir a identidade de gênero de um indivíduo.
Atualmente, não são raras as vezes em que as figuras da identidade de gênero e da orientação sexual são confundidas e associadas de forma equivocada. Cumpre esclarecer, desde logo, que embora possam se comunicar, esses termos não se misturam, tampouco refletem o mesmo significado.
A identidade de gênero diz respeito ao sentimento que cada um tem sobre si acerca da sua identificação como homem ou mulher. Trata-se da imagem que cada pessoa tem de si mesmo, de como a pessoa se enxerga e se identifica, seja como homem, seja como mulher.
Destarte, o Decreto n. 8.727/2016, em seu art. 1º, inciso II, conceituou o termo, ressalvando que tal identidade não guarda, necessariamente, relação com o sexo biológico, a citar:
II - identidade de gênero - dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.
A orientação sexual, por sua vez, antes de assim ser nomeada, era de chamada de opção sexual. No entanto, o termo foi perdendo força, pois o uso da palavra “opção” no referido termo dava a equivocada ideia de que o ser humano teria o poder de escolha perante a atração ou inclinação do desejo afetivo e sexual que naturalmente sente por algum ou alguns gêneros.
Desta forma, a orientação sexual tem relação direta com a atração ou a inclinação afetiva e sexual, preponderante ou exclusiva, que o indivíduo sente por um ou alguns gêneros. Ou seja, a orientação sexual se traduz no desejo sexual que uma pessoa sente por alguém de sexo diferente do seu – heterossexualidade -, por pessoas do mesmo sexo – homossexualidade -, de ambos os sexos – bissexualidade - ou, ainda, por não possuir desejo sexual algum – assexualidade.
Nesse sentido, ensina Jacqueline Gomes de Jesus (p. 13, 2012):
Gênero é diferente de Orientação Sexual. Podem se comunicar, mas um aspecto não necessariamente depende ou decorre do outro. Pessoas transgênero[1] são como as cisgênero[2], podem ter qualquer orientação sexual: nem todo homem e mulher é “naturalmente” cisgênero e/ou heterossexual.
Resta esclarecer, portanto, que a identidade de gênero, seja masculina ou feminina, não assegura, necessariamente, uma correlação com a identidade sexual da pessoa. Desta forma, até mesmo em relação às pessoas transexuais e travestis, pode acontecer de haver um indivíduo que possua identidade de gênero distinta de seu sexo biológico, sendo certo que sua orientação sexual pode relacionar-se ou não com esta identidade de gênero. Por esta razão, homens e mulheres transexuais podem considerar-se homossexuais ou heterossexuais.
2.1. Fenômenos relacionados à sexualidade e ao gênero: Termos e definições
Atualmente, tendo em vista a abertura do diálogo e dos debates acerca dos transgêneros, bem como a globalização da luta pela visibilidade aos transexuais e às transexuais, faz-se oportuno diferenciar os diversos termos e definições relacionados à orientação sexual e à identidade de gênero.
Corriqueiramente chamado apenas de “cis”, o termo cisgênero significa, em poucas palavras, definição para aquela pessoa que se identifica com o gênero que nasceu, ou seja, com seu sexo anatômico e com as características biológicas inerentes a ele.
Portanto, a mulher cisgênera será aquela pessoa que nasceu com o órgão reprodutor feminino, foi registrada como mulher, se identifica como mulher e assim se reivindica e se apresenta na sociedade. Por sua vez, o homem cisgênero será aquele indivíduo que nasceu com o órgão reprodutor masculino, foi registrado como homem e assim se identifica e se reconhece perante a sociedade.
A figura do crossdresser trata-se de uma espécie do gênero trans e diz respeito a pessoas do sexo anatômico masculino adeptas à prática do crossdressing, cuja tradução literal quer dizer “vestindo-se ao contrário”.
Costumeiramente associado à figura das travestis, o crossdresser, assim como essas, nasceu com o sexo biológico masculino, mas sente-se à vontade, e muitas vezes necessidade, de usar trajes femininos, se portando como mulher na sociedade, embora, nem as travestis, nem os crossdressers, nutram o desejo de realizar a cirurgia de redesignação sexual.
Então, embora exista uma corrente que defenda que essas figuras sejam sinônimas, a corrente contrária defende que a diferença entre elas estaria no fato de, por razões várias, o crossdresser não fazer uso de vestimentas e adereços femininos 24h por dia, podendo praticar o crossdressing até mesmo pontualmente, em determinados lugares e para determinadas pessoas. Enquanto a pessoa travesti, não raramente, é aquela que se identificará todos os dias e em todos os momentos da vida privada e social como pessoa do sexo feminino, não possuindo, repita-se, o desejo de alterar suas genitálias.
As drags quens, por sua vez, tratam-se, precipuamente de atores transformistas, que se distinguem das travestis por, durante a vida cotidiana, se vestirem e se apresentarem socialmente como homens, exercendo, durante o dia, profissões diversas e não relacionadas ao transformismo. Outra máxima que distingue as duas figuras é de que as travestis, não raramente, utilizam-se próteses de silicone e hormônios na constituição de seus corpos femininos, permanecendo travestidas em tempo integral, na sua vida cotidiana, porém, evitando que isso se dê de forma exagerada ou caricata (Silva, 1993; Silva & Florentino, 1996).
2.2. Transexuais e travestis
De acordo com o Transgender Terminology, glossário de terminologias e conceitos sobre gênero elaborado pela National Center for Transgender Equality, o termo transgênero diz respeito às pessoas cuja identidade social e de gênero diferem daquela tipicamente associada ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento.
Assim, o grupo dos transgêneros, mais conhecido como grupo trans, abarca aqueles que se identificam como travestis, transexuais, crossdressers, entre outros.
O transexualismo, conforme o sufixo “ismo” de antemão indica, ainda é considerado pela Classificação Internacional de Doenças (CID) como patologia, mais precisamente transtorno mental.
Neste sentido, o posicionamento de Marcia Aran, Daniela Murta e Tatiana Lionço, a citar:
[...] o transexualismo continua a ser visto como uma síndrome, identificada pelo Transtorno de Identidade de Gênero – TIG, considerado um estado psicológico no qual a identidade de gênero está em desacordo com o sexo biológico e em que existe uma pulsão psicológica de pertencer ao sexo oposto ao genético, sempre acompanhada de um desejo obsessivo de libertar-se de sua genitália para adquirir a do sexo oposto.
De forma a exemplificar a os moldes do transexualismo, caberia dizer que a mulher transexual é aquela pessoa que nasceu com o sexo anatômico masculino e foi registrada como homem, embora se reconheça mulher. Trata-se, pura e simplesmente, do ser humano que se identifica com o gênero distinto daquele que lhe foi atribuído e sob o qual teve que viver desde o nascimento.
Nas palavras da Professora Aracy Augusta Leme Klabin (p. 203):
O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao “verdadeiro” sexo, isto é, ao seu sexo psicológico.
Não raramente, costuma-se definir a mulher transexual como sendo aquela pessoa que “nasceu” homem, mas, “no fundo”, é uma mulher. No entanto, o que ocorre, de fato, é que a mulher transexual já nasceu se identificando como mulher e assim se reivindica desde a mais tenra infância. O cerne da questão é, em realidade, que lhe foi dito que ela pertencia a um gênero que não condiz com a forma que ela se identifica, pois em seu íntimo, sempre foi mulher e, portanto, nasceu mulher, não homem.
Assim, quando alguém, ao se referir a uma pessoa transexual, afirma que esta pessoa “é uma mulher que nasceu homem”, por exemplo, está perpetuando um preconceito já enraizado em nossa sociedade e fortalecendo o estigma de ver a situação que essas pessoas vivem ser tratada, até hoje, como patologia e transtorno de identidade sexual.
Acerca das travestis, Jacqueline Gomes de Jesus (2012, p. 16), em sua obra acerca de orientações sobre identidade de gênero, ressalta ser fundamental reforçar que o fato de alguém ser travesti não guarda relação direta com ser profissional do sexo. Ademais, consoante seus ensinamentos, destaca que a maioria das travestis, independentemente da forma como se reconhecem, preferem ser tratadas pelo gênero feminino, sendo considerado pejorativo o contrário. Portanto, tratam-se DAS travestis, e não DOS travestis.
Sobre o travestismo, ensina a Professora Juliana Gonzaga Jaime (2010, p. 169):
As travestis dizem que são “mulheres” dia e noite, pois interferem no corpo por meio de roupas, maquiagem, cabelo e trejeitos femininos e através de medicamentos (hormônios femininos) e silicone em partes do corpo. No entanto, afirmam que não desejam fazer a cirurgia de transgenitalização[3], querem manter o órgão sexual masculino.
Assim, a diferença primordial entre travestis e transexuais consiste no fato de que os transexuais desprezam o sexo anatômico que possuem desde o nascimento, de forma que os órgãos sexuais que carregam lhes trazem ojeriza e repúdio. É através dessa repugnância que se observa a vontade incessante que os transexuais possuem de realizar a cirurgia de redesignação sexual, na busca da famosa “troca de sexo”, fato que não costuma ser observado na maioria das travestis.
3 DO NOME CIVIL
O termo “nome” diz respeito à designação ou sinal exterior pelo qual a pessoa identifica-se no seio da família e da sociedade. O nome constitui elemento individualizador da pessoa natural e integra a personalidade, indica a procedência familiar e individualiza os seres humanos, durante a vida, como também depois da morte (GONÇALVES, p. 131).
Destarte, o direito ao nome trata-se de um direito de personalidade, pois se constitui em um direito inerente à pessoa humana, tal qual o direito à vida e à honra, uma vez que toda pessoa merece ser civil e socialmente identificada.
Tendo em vista a necessidade imperiosa de individualização das pessoas no grupo social a que pertencem, o nome civil se traduz como verdadeiro atributo de personalidade, consistente no direito à identificação (CHAVES, ROSENVALD, p. 170).
Nos moldes do art. 16, do Código Civil de 2002, toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. Dentre as características decorrentes do direito ao nome civil, a doutrina destaca que o direito ao nome civil é obrigatório, em razão do disposto no art. 50 da Lei 6.015/73, cujo conteúdo assevera ser obrigatório o registro de todo nascimento que ocorrer no território nacional. Também é um direito indisponível, haja vista não ser passível de cessão, alienação, renúncia, desapropriação, sendo vedado, então, a possibilidade de disposição da própria designação. Ademais, é um direito absoluto, imprescritível, inalienável e, em regra, imutável.
De acordo com o entendimento de Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 170), trata-se, no entanto, de imutabilidade relativa, posto ser a característica do nome intimamente ligada à identidade do indivíduo, permitindo sua identificação no meio social, de forma que o nome civil somente poderá ser alterado em situações excepcionais, com justa motivação e desde que não haja prejuízos à terceiros).
A Lei n. 6.015/1973, conhecida como a Lei dos Registros Públicos, disciplina as situações em que o nome civil poderá ser alterado. E é baseado nesta lei que os transgêneros fundamentam seus pedidos diante do Judiciário, sobretudo nos artigos 55, 56 e 58.
Em seu art. 58, a lei dispõe que o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Já o art. 55 deste diploma determina que os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores e quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.
Insta salientar que inexiste, no Direito Brasileiro, legislação que acolha e regulamente expressamente o pedido de adequação do sexo e do prenome dos transexuais no Registro Civil. No entanto, a ausência de lei específica não tem condão de servir suficientemente como fundamento para as decisões que indeferem os pedidos dessa natureza.
4 DA ADOÇÃO DO NOME SOCIAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
O Decreto n. 8.727, de 28 de abril de 2016, cujo conteúdo dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, permitiu que tais instituições reconheçam e permitam o uso de nome social para aqueles em que o nome civil não reflete sua identidade de gênero.
O Decreto, em seu art. 1º, inciso I, conceitua o que vem a ser nome social, definindo-o como designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida.
Embora de grande relevância, o referido decreto não foi o primeiro instrumento a dispor sobre a possibilidade do uso do nome social a travestis e transexuais, respeitando a identidade social e gênero adotado por cada um. Anteriormente, a Portaria n. 1.612, de 18 de novembro de 2011, do MEC, assegurou às pessoas transexuais e travestis o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério da Educação. Além disso, a portaria, em seu art. 1º, § 1º, conceituou o nome social como sendo aquele pelo qual as pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade.
Neste mesmo sentido, a Resolução n. 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), de 16 de janeiro de 2015, consagrou em seu art. 1º:
Art. 1º - Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do próprio interessado.
Diante desse cenário, não tardou para que diversas instituições, sobretudo ligadas ao ensino, inclusive, universidades brasileiras renomadas, adotassem e reconhecessem a figura do nome social. Essa conquista, embora pareça pequena, deu impulso à luta dos transexuais e travestis, viabilizando a possibilidade que estes fossem reconhecidos, no âmbito universitário, pelo gênero com o qual se identificam, passando a haver a possibilidade da utilização do nome social do aluno transexual ou travesti no registro de frequência, nas avaliações, e, não menos importante, no tratamento diário de professores, funcionários e alunos.
No ano de 2016, o número de candidatos transexuais que fizeram uso do nome social no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM alcançou o quádruplo do número registrado em 2014, que contou com apenas 102 candidatos. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 408 candidatos foram autorizados a terem o nome social impresso no cartão de resposta, bem como tratamento recebido pelos fiscais, em detrimento do nome de batismo constante no registro civil.
Embora esteja se sedimentando o posicionamento de não ser necessária cirurgia de redesignação sexual para alteração do nome no registro civil, para que isso ocorra, as pessoas trans precisam recorrer ao judiciário, em processos, muitas vezes, demorados e caros, cuja decisão fica a mercê do entendimento de cada magistrado de 1º grau, já que o ordenamento pátrio não conta, ainda, com legislação específica para mudança do nome no registro civil.
Diante disso, resta recorrer ao Judiciário, em ação fundamentada da dignidade da pessoa humana e no direito de personalidade à identidade, sendo forçoso concluir que existem, no mínimo, três possibilidades de decisões acerca do pedido de alteração do nome e do sexo no registro civil. Na primeira possibilidade, embasado justamente nos princípios ora citados, o juiz poderá conceder ambos: tanto a modificação do sexo registrado anteriormente, quanto a alteração do nome.
Na segunda hipótese, poderá a decisão deferir a mudança de nome, estabelecendo que tal alteração seja realizada observando-se a condição de transexual do indivíduo, indeferindo, assim, a alteração do sexo no registro. Esse entendimento ocorre em razão de ainda haver grande resistência do Judiciário em conceder o pedido de adequação do sexo no registro nos casos em que o(a) requerente não realizou a cirurgia de redesignação sexual.
Por fim, em uma terceira possibilidade, há chance de que o magistrado entenda por bem indeferir ambas as pretensões: deixa de conceder a troca de nome e, também, a do sexo no registro civil.
Diante deste leque de possibilidade, não há como negar a insegurança jurídica a que estão submetidos os indivíduos transgêneros que buscam na tutela jurisdicional a alteração do nome no registro civil. Cumpre destacar, no entanto, que a doutrina vem reconhecendo a legitimidade do pedido de alteração feito pelo transexual operado, bem como as inúmeras razões que sustentam seu acolhimento, de forma que já há inúmeros casos de demandas julgadas procedentes no que diz respeito à adequação no Registro Civil, requerida por transexual redesignado – aquele que se submeteu a cirúrgia de redesignação sexual.
.Assim, torna-se claro que o Decreto n. 8.727, de 28 de abril de 2016 visa suprir a ausência de legislação que reconheça a identidade de gênero das pessoas, uma vez que garantiu às travestis e aos transexuais a inclusão de seus nomes sociais em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, mas, longe do âmbito da administração pública, o Decreto 8.727 perdeu a oportunidade de legislar acerca de procedimento administrativo específico para alteração de documentos das pessoas transexuais e travestis no registro civil.
No entanto, tramita na Câmara dos Deputados desde 2013 o Projeto de Lei n. 5.002/2013, conhecido como Projeto de Lei João Nery e como Projeto de Lei de identidade de gênero, que busca garantir à população trans o reconhecimento a sua identidade de gênero. O referido Projeto de Lei difere do Decreto ora tratado, sobretudo, por ser mais abrangente, uma vez que pretende obrigar a administração pública, bem como particulares a reconhecer a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, além de lhes garantir amplo direito à assistência médica.
O Projeto de Lei João Nery propõe que a alteração do nome das pessoas que se identifiquem como transgêneros seja realizada extrajudicialmente, ou seja, em Cartórios e sem necessidade intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial, terapias hormonais, qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico e autorização judicial.
Inclusive, a possibilidade da alteração do nome civil ser realizada em seara extrajudicial é entendimento defendido e firmado por inúmeros estudiosos da causa, como Kellen Cristina Gomes Ballen e Lilian Fernanda Bizetti (p. 15), a citar:
Permitir que as alterações de nome sejam realizadas pelos cartórios de registro civil, em tese, ampliaria o acesso à justiça e traria efetividade ao direito do nome, pois muitos indivíduos necessitam desta providência para alcançar uma vida mais digna e plena. Conviver com um nome que não permite o completo desenvolvimento de sua potencialidade e ter reconhecida, legal ou jurisprudencialmente, a possibilidade de alterá-lo, mas ter que esperar meses ou anos para alcançar a providência, é atentar contra a dignidade da pessoa e torna-se uma forma de não efetivar o direito.
O Projeto de Lei João Nery busca alterar o artigo 58º da lei 6.015/73, que, caso aprovada a lei, passará a ser redigido da seguinte forma:
Art. 58º. O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero auto-percebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios. (Grifos nossos).
Já em seu primeiro artigo, o projeto de lei dispõe que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero, ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero, a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito dos prenomes, da imagem e do sexo com que é registrada neles.
Embora se clame pelo mínimo de direito de reconhecimento a identidade de gênero de cada um, o que se espera de um Estado democrático de Direito é que, pela primariedade que representam, não seja necessária a edição de leis que assegurarem direitos elementares como a dignidade da pessoa humana, direito ao nome, direito à identidade de gênero e ao reconhecimento desta, mas que, sendo necessária, seja discutida, debatida, analisada e, por fim, editada. O que se nota, entretanto, é que edição de legislação pertinente acerca dos direitos tratados neste artigo não só é necessária na atual conjuntura em que estamos inseridos, como é necessário também que se dê de forma célere, efetiva e, sobretudo, eficaz.
5 CONCLUSÃO
De acordo com a pesquisa Trans Murder Monitoring, realizada pela ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país em que, em números absolutos, mais houve registros referentes a homicídios de pessoas transexuais, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2015, contabilizando 802 casos. Em recente atualização, a pesquisa concluiu que foram registrados 295 assassinatos de pessoas trans em todo o mundo, entre 01 de outubro de 2015 a 30 de setembro de 2016, sendo, novamente, do Brasil, a 1ª colocação, com alarmantes 123 homicídios registrados, em apenas um ano.
Os dados transparecem que persiste na sociedade brasileira, um alto grau de rejeição à figura dos transgêneros, àquelas pessoas que não se identificam com o sexo anatômico que nasceram, como pessoas transexuais e travestis. Não raramente, através de um preconceito enraizado em nossa construção patriarcal, a sociedade rejeita, marginaliza, exclui, humilha e oprime as pessoas transexuais e travestis, reforçando a condição de vulnerabilidade social, física e psicológica que, corriqueiramente, já se encontram.
Então, tendo em vista ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos que instituem a República Federativa do Brasil, bem como se constitui objetivo fundamental desta promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação, é necessário que medidas sejam tomadas para que haja a efetiva inserção social destes indivíduos na sociedade. É necessário que haja o diálogo sobre as, muitas vezes desconhecidas, figuras que permeiam a identidade de gênero.
Assim, embora o Decreto n. 8.727/2016 tenha deixado de dispor sobre procedimento específico para alteração de documentos das pessoas trans no registro civil, ainda é a forma mais prática para utilização do nome social diante da administração pública direta, autárquica e fundacional, sobretudo por ser gratuito e depender de simples requerimento do interessado.
6 REFERÊNCIAS
JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012
BRASIL. Decreto n. 8727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8727.htm >. Acesso em: 02 de nov de 2016.
_________. Ministério da Educação e Cultura. Portaria n. 1612, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: < https://www.sertao.ufg.br/politicaslgbt/novidades.php?Id=28 >. Acesso em 02 de nov de 2016.
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JAIME, Juliana Gonzaga; In: CASTRO, AL., org. Cultura contemporânea, identidades e sociabilidades: olhares sobre corpo, mídia e novas tecnologias. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. Disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=5A5fVLwYNTQC&pg=PA167&lpg=PA167&dq=travestis,+transformistas,+drag+queens,+transexuais:+identidade,+corpo+e+genero&source=bl&ots=AkuZoOEcBK&sig=RgjrOg-WZJ__mHbXP6mQ7NR4eRs&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiHkvWPpbnQAhVL7yYKHT6zCQYQ6AEIUjAI#v=onepage&q&f=false >. Acesso em: 19 de nov de 2016.
Silva, H. R. S., & Florentino, C. de O. (1996). A sociedade dos travestis: espelhos, papéis e interpretações. In R. Parker & R. M. Barbosa. (Orgs.), Sexualidades brasileiras.
[1] Pessoa que tem identidade ou expressão de gênero diferente daquele com a qual nasceu.
[2] O indivíduo que se identifica com o gênero que nasceu.
[3] O art. 4º da Resolução 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina, determina que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios a seguir definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto: 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo; 2) Maior de 21 (vinte e um) anos; 3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil, na Escola de Advocacia do Amazonas - OAB/AM. Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: POSSIDONIO, Carine Teresa Lopes de Sousa. Identidade de gênero e utilização do nome social: propósitos e desafios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52247/identidade-de-genero-e-utilizacao-do-nome-social-propositos-e-desafios. Acesso em: 23 dez 2024.
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