RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar os principais aspectos de intersecção entre a teoria política de Maquiavel e a obra Júlio César, escrita por Shakespeare em 1599. A partir da análise de diversos aspectos políticos e sociais abordados nas duas obras, pretende-se demonstrar que as ideias de Maquiavel sobre conquista e manutenção do poder, bem como sobre a relação entre os governantes e seus súditos, influenciaram a narrativa de Shakespeare, especialmente no que concerne às possíveis motivações e consequências do assassinato de um líder político carismático e popular.
Palavras-chave: teoria política, Maquiavel, O Príncipe, Júlio César.
SUMÁRIO: Introdução; 1 O príncipe; 2 Breve sinopse de Júlio César; 3 Como obter o poder político; 4 Como manter o poder conquistado pela violência; 5 A relação entre o governante e a guerra; 6 A mulher e a política; 7 Exercendo o poder com apoio popular; Conclusão; Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Júlio César é uma das obras mais difundidas de Shakespeare; apesar de ter sido escrita provavelmente em 1599, ainda hoje desperta discussões sobre os limites da disputa de poder político e as consequências que essa disputa pode trazer para a sociedade.
Nessa peça histórica, Shakespeare retrata os bastidores do assassinato do general Júlio César pelos membros da aristocracia romana (liderados por Brutus e Cássio), então preocupados com o aumento da popularidade de César e com o risco de que ele restaurasse a monarquia em Roma, bem como as decorrências do vácuo político gerado pela ausência do líder romano.
Este breve ensaio analisará o contexto histórico em que a obra foi escrita, com especial destaque para a relação do enredo com as ideias desenvolvidas por Maquiavel em O Príncipe, publicado em 1532.
1. O PRÍNCIPE
Como se sabe, O Príncipe é um grande clássico da literatura mundial. Escrito no século XVI, a obra ainda representa, nos dias de hoje, um dos maiores compêndios de ciência política já produzidos no Ocidente.
Em seus 26 capítulos, construídos a partir de exemplos de disputas políticas que ocorreram desde a Antiguidade até a Europa do século XVI, Maquiavel descreve as principais maneiras pelas quais se conquista e se mantém o poder político em determinado território. Descreve ainda as virtudes que um bom governante deve reunir para se manter no poder e as tentações que ele deve evitar.
As ideias políticas de Maquiavel, embora desenvolvidas em um contexto histórico completamente diverso do atual, continuam repercutindo entre os estudiosos de todas as ciências humanas. Para além da tradicional máxima “os fins justificam os meios”, seu pensamento político inaugurou a noção de que a ação do governante deve estar fundamentada na realidade das circunstâncias concretas, e não em eventuais preceitos éticos ou morais.
Embora não se tenha notícia de que Shakespeare tenha lido O Príncipe, há diversos indícios de que isso tenha ocorrido, pois a obra shakespeariana é rica em referências a elementos do pensamento político maquiavélico. Com efeito, muitos dos comportamentos dos personagens de Júlio César, assim como os efeitos gerados por esses comportamentos, podem ser compreendidos sob o prisma da teoria política de Maquiavel.
Segundo Miguel Chaia, da comparação de Shakespeare com Maquiavel, surge um espaço de encontro entre política e vida, cujo pano de fundo é a presença constante da tragédia. Uma visão de Shakespeare, clarificada pela leitura de Maquiavel, une arte e política, homem e poder, assim como caos e controle, vida e morte[1].
2. BREVE SINOPSE DE JÚLIO CÉSAR
Logo no início da peça, retrata-se a aclamação de César pelos plebeus e a preocupação da aristocracia romana com o aumento de sua popularidade. Enquanto uma coroa é oferecida a César, Cássio conversa com Brutus sobre os destinos da República romana, destacando o aumento da concentração de poder nas mãos de César:
“Agora, alimenta-se esse nosso César para ter crescido a tais proporções? Tempo de hoje, como estais degradado! (…) Quando foi que se passou um outro tempo, desde o grande dilúvio, que tivesse ficado famoso por um único homem? E agora temos, nesta idade, uma Roma que é cidade, e nela há somente um homem.”[2]
Embora Brutus tenha profundo respeito por César, acaba se convencendo que de que ele representa uma ameaça ao sistema político romano. Essa preocupação de Brutus pode ser explicada pelo fato de que os romanos do período republicano refutavam veementemente a ideia de concentração de poder, conforme explica Nunes Pereira:
No constitucionalismo romano, por sua vez, o ideal constitucionalista da limitação de poder ganha sentido coletivo ou comunitário, na perspectiva do enfrentamento dos conflitos sociais. A rejeição dos romanos ao poder absoluto resulta da impossibilidade de se confundir autoridade e poder numa mesma pessoa concreta. A autoridade política romana se assenta na comunidade dos cidadãos. Assim, exsurge entre os romanos o germe da noção de povo (populum).[3]
Após Cássio e Brutus convencerem alguns outros membros da aristocracia romana, o assassinato se consuma durante uma visita de Júlio César ao Senado.
É interessante observar que César, assustado com um pesadelo de sua esposa Calpúrnia, relutou em comparecer ao Senado no dia de sua morte, mas foi convencido por Décio, um caricato bajulador, que deturpou o pesadelo de Calpúrnia, interpretando-o como um sonho que ressaltava as virtudes do general.
Maquiavel dedica um capítulo inteiro de sua teoria política para explicar que o príncipe prudente deve manter distância de bajuladores. Para ele, os aduladores estão sempre preocupados em agradar, de modo que os conselhos por eles dados não são sinceros. O governante deveria de cercar de homens sábios, aos quais deve ser dada a liberdade de opinar livremente sobre os assuntos a respeito dos quais são consultados.[4]
Se Júlio César tivesse seguido essa recomendação, afastando-se do convívio de bajuladores, sua vida seria poupada. Mas o personagem de Shakespeare era extremamente vaidoso, referindo-se a ele mesmo em terceira pessoa e alegrando-se com cada elogio que recebia de seus súditos.
Após a morte do líder romano, a preocupação dos conspiradores passa a ser a estabilidade política em Roma. A estratégia de Brutus, diante da grande popularidade de Júlio César, é persuadir os plebeus de que ele era um tirano, e de que sua morte representaria a garantia da manutenção da república romana.
A estratégia funciona no primeiro momento. Ocorre que, conforme alerta Maquiavel, “a natureza dos povos não é constante e é fácil persuadi-lo de alguma coisa, mas é difícil firmá-los nessa persuasão.”[5]
Marco Antônio, um dos aliados mais próximos de César, faz um discurso inflamado do púlpito do Capitólio, convencendo os romanos de que a intenção do líder assassinado nunca foi a de restaurar a monarquia em Roma.
É interessante ressaltar a habilidade de Antônio com as palavras. Shakespeare destaca a importância da comunicação persuasiva, principalmente no âmbito da política. Foi a força persuasiva de Cássio que fez com que Brutus aderisse à trama liderada por ele. Agora, o poder de convencimento de Marco Antônio fazia o povo se voltar contra os assassinos, culminando no fracasso da conspiração.
3. COMO OBTER O PODER POLÍTICO
Maquiavel defende que há duas formas principais pelas quais se conquista o poder: pela virtude e pela fortuna.
O particular que se torna príncipe por meio de sua própria virtude teria mais dificuldade para chegar ao poder, mas teria facilidade para mantê-lo, uma vez que as principais dificuldades já teriam sido enfrentadas ao longo da jornada rumo à conquista do principado. Como exemplos, Maquiavel cita os casos de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu.
Já os que dependem da fortuna são aqueles que se valem do dinheiro ou da graça de algum outro príncipe para chegar ao poder. Esses se tornam príncipes com muita facilidade, mas apenas com muito esforço conseguiriam manter o controle do principado.[6]
Isso porque, sem experiência na condução dos negócios do Estado, os governantes podem sucumbir diante do surgimento das primeiras dificuldades. Maquiavel cita, para exemplificar a chegada ao poder por meio da sorte, os casos das cidades gregas de Jônia e Helesponto, cujos governantes foram feitos príncipes por Dario.
Na obra shakespeariana, Cássio pretende governar Roma a partir do vácuo que ficaria após o assassinato de Júlio César, que estava sendo planejado por ele e por outros membros da aristocracia.
Não se trata, portanto, de uma tentativa de conquista de poder por meio de fortuna, uma vez que Roma não seria simplesmente entregue a Cássio. Não se pode considerar, tampouco, que Cássio pretendia se tornar príncipe por meio de sua virtude, pois não se pode considerar virtuoso aquele que planeja o assassinato do governante legitimamente investido no exercício do poder político.
Maquiavel não deixou de tratar dessa forma de obtenção do principado, dedicando um capítulo inteiro de sua obra-prima àqueles que usurpam o poder a partir de práticas criminosas. A descrição maquiavélica da maneira como Agátocles chegou ao poder é muito semelhante ao caso de Cássio:
O siciliano Agátocles, homem comum da mais abjeta condição, tornou-se rei de Siracusa. (…) (…) ingressou na milícia e, galgando os vários graus pela força de sua maldade, alcançou a posição de pretor (comandante do exército) de Siracusa. (…) Certa manhã, ele convocou o povo e o Senado de Siracusa como se quisesse deliberar sobre assuntos importantes da república e, a um seu sinal, seus solados assassinaram todos os senadores e as pessoas mais ricas do povo. [7]
Existe, no entanto, uma diferença fundamental entre o modo de agir de Agátocles e de Cássio. O primeiro determinou a morte dos principais detentores do poder político e econômico da cidade, certificando-se de que não haveria qualquer resistência significativa à nova ordem que pretendia instaurar. Já o aristocrata romano preferiu eliminar apenas Júlio César. Embora os conspiradores tenham discutido a possibilidade de assassinar também os aliados mais próximos do general, acabaram se convencendo de que um número maior de mortes poderia afastar os plebeus da causa revolucionária. Essa opção talvez tenha implicado o fracasso da empreitada de Cássio.
4. COMO MANTER O PODER CONQUISTADO PELA VIOLÊNCIA
É uma lição clássica de Maquiavel que as ofensas dos governantes devem ser feitas todas de uma vez, ao passo que os benefícios devem ser concedidos aos poucos, para que sejam melhor apreciados.[8]
O mestre italiano defende que é possível manter o poder conquistado por meio de crueldades e traições, desde que sejam elas executadas de uma só vez. Assim procedendo, aquele que conquista o poder consegue a estabilidade necessária para governar e começar a conceder benefícios aos súditos. Já aquele que executa apenas os atos estritamente necessários para conquistar o poder enfrentará instabilidade e terá que continuar a praticar atos de violência para se manter no poder, o que gera descontentamento popular e aumenta a instabilidade política.
Ora, em Júlio César temos um exemplo claro de tentativa de golpe fracassada em virtude do temor que os conspiradores tinham de executar atos de violência. Embora Cássio tenha manifestado preocupação com o que poderia fazer Marco Antônio se sobrevivesse a César[9], foi convencido por Brutus e por Trebônio de que ele não representaria riscos à nova ordem que se pretendia implementar, e que sua eventual morte faria com que as ações dos aristocratas parecessem por demais violentas aos olhos dos plebeus.
Após a morte de César, Marco Antônio ainda foi autorizado a fazer um discurso em sua homenagem, e foi justamente nesse discurso que ele, ainda que de forma velada, incitou os plebeus romanos contra os aristocratas, iniciando uma guerra civil que impediu os conspiradores de assumir o poder.
5. A RELAÇÃO ENTRE O GOVERNANTE E A GUERRA
Outro aspecto destacado nas duas obras em exame é a relação entre os governantes e as armas. Maquiavel defende que o príncipe, se quiser manter o poder, deve ter intimidade com a arte da guerra, especialmente em épocas de paz.
No contexto em que a obra foi escrita, as guerras que decorriam da disputa de poder político eram muito mais comuns do que atualmente, de modo que aqueles que se dedicavam ao treinamento e estudo de estratégias de combate levavam uma indiscutível vantagem em comparação com aqueles que se acomodavam nas épocas de paz.
Nos dias de hoje, em que as superpotências dispõem de armamento nuclear com potencial para destruir o planeta várias vezes, os conflitos armados são mais raros e de menores proporções, sendo priorizadas as soluções diplomáticas para as controvérsias que surgem entre os países. No entanto, não se pode perder de vista que, mesmo nesse contexto, o poderio militar ainda constitui fundamento para a hegemonia política, o que demonstra a universalidade do pensamento político do mestre italiano.
Em O Príncipe, argumenta-se que a preparação para a guerra pode ocorrer a partir do exercício do corpo e da mente. O exercício do corpo ocorreria a partir de treinamentos militares, no âmbito dos quais os exércitos realizariam atividades de campo e conheceriam os terrenos e montanhas do reino. Quanto ao exercício da mente, o príncipe deveria ler os historiadores, considerar as ações dos grandes personagens, analisar suas condutas na guerra, examinar as causas de suas derrotas e de suas vitórias a fim de evitar umas e imitar outras.[10]
Em Júlio César, a importância da experiência na guerra é confirmada. Após a morte de César, instaura-se um conflito civil entre os aliados de Brutus e Cássio, de um lado, e os aliados de Marco Antônio do outro.
Embora Shakespeare não descreva com detalhes o desenrolar do conflito, é possível perceber que há um impasse decorrente do equilíbrio de forças entre as tropas e do excesso de cautela dos dois comandantes.
m determinado momento, após ser provocado pelo fantasma de César, Brutus decide, contra a vontade de Cássio, que suas tropas devem ir ao encontro de Antônio.
A estratégia adotada por Antônio (aguardar o inimigo no território conhecido de Filipos) é claramente superior àquela adotada por Brutus, que vê seus exércitos facilmente neutralizados pelos oponentes, embora não se tenha notícia de que fossem superiores em quantidade ou em força militar.
Percebe-se, assim, mais um elemento no diálogo entre as duas obras em exame: a importância da experiência militar para a conquista e manutenção do poder político.
6. A MULHER E A POLÍTICA
Outro aspecto digno de nota é o tratamento que os dois autores dão ao papel desempenhado pela mulher na vida política.
O Príncipe, recheado de exemplos históricos, não apresenta qualquer mulher que tenha se destacado na luta pela conquista e manutenção do poder político.
No entanto, ao tratar dos cuidados que o governante deveria tomar para evitar o ódio de seus súditos, Maquiavel defende que o príncipe deve se abster de apossar-se dos bens e das mulheres de seus cidadãos.[11]
Percebe-se, no ponto, a clara objetificação da mulher, que é tratada como propriedade do homem, e que deve ser respeitada pelo príncipe pelo mesmo motivo que devem ser respeitados os bens materiais dos seus súditos.
Em diversas outras passagens, associa-se o adjetivo “efeminado” a características desprezíveis, que devem ser evitadas pelo bom governante.
Hannah Pitkin, analisando a questão do gênero na obra de Maquiavel, destaca que, em sua narrativa, as mulheres constituem um perigo para os conquistadores, príncipes e tiranos, quando ele não consegue mais controlar seus próprios impulsos ou os de seus filhos. E vai além, afirmando que, para ele,
“as mulheres são um perigo não apenas para tiranos, príncipes, e conquistadores, mas também para a vida política saudável de uma república. Elas fragilizam o autocontrole varonil dos cidadãos, assim como o dos príncipes, e tendem a privatizar o cidadão republicano, atraindo-o para fora da praça pública e para dentro do quarto.”[12]
Em Júlio César, o protagonismo também está sempre associado a personagens masculinos. Shakespeare não se preocupa em detalhar a participação de qualquer mulher no desenrolar dos acontecimentos. Elas são mencionadas apenas como apêndices dos homens, apenas na medida em são necessárias para descrever a personalidade dos protagonistas masculinos.
Veja-se o exemplo de Pórtia, esposa de Brutus. Na primeira cena do segundo ato[13], enquanto Brutus ainda discute com seus aliados o atentado contra a vida de César, Pórtia pergunta ao marido as razões da preocupação estampada em seu semblante. Embora esteja claramente perturbado (pois ainda lhe falta convicção de que César é uma ameaça à república romana), Brutus não compartilha com a esposa as suas angústias, limitando-se a afirmar que não está bem de saúde. O que se apreende da leitura do diálogo é que Brutus não considera que Pórtia, sendo mulher, possa dar qualquer contribuição para a definição dos rumos da política romana.
A dependência da esposa em relação ao marido é evidenciada, de maneira ainda mais flagrante, após o exílio de Brutus. “Impaciente” com a ausência do marido, Pórtia resolve engolir carvão em brasa e dar fim à própria vida[14].
A figura feminina é, assim, descrita como um ser inferior, subordinada ao marido e incapaz até de sobreviver diante da ausência de uma autoridade que dê sentido à sua vida.
O comportamento da esposa de César, Calpúrnia, também ajuda a compreender a forma como a questão de gênero é tratada na obra shakespeariana. No dia marcado para o assassinato de César, Calpúrnia tem um pesadelo em que a estátua do marido esguicha sangue nas dependências do Senado. Diante desse fato, pede ao marido que não vá ao Senado naquele dia; após certa hesitação, César decide que deve manter a visita ao Capitólio.[15]
Poder-se-ia argumentar que César deixou de seguir o conselho da esposa por não acreditar em presságios, e não pelo fato de ela ser mulher. No entanto, essa tese não se sustenta, uma vez que César é um homem claramente supersticioso. Tanto é assim que pediu para que os padres fizessem um sacrifício e ouvissem as opiniões dos deuses, e só saiu de casa naquele dia após ter o sonho de Calpúrnia reinterpretado por um homem (Décio, um dos conspiradores), que associou a presença de sangue no sonho à necessidade que Roma tinha de se banhar com o sangue revigorante de seu líder.
Conclui-se, assim, que uma outra característica comum das obras em análise é, de fato, o papel subalterno conferido às mulheres no exercício da atividade política. Isso não significa que Shakespeare e Maquiavel eram especialmente misóginos, mas que suas obras refletem o contexto social em que viveram. No século XVI, as mulheres eram consideradas extensões de seus pais e maridos, sendo-lhes vedado o desenvolvimento de sua própria personalidade.
Nessa ordem de ideias, Cristiane Soares Carneiro Neri é precisa ao afirmar que “a trajetória histórica das mulheres, principalmente das que povoaram a época medieval, é normalmente contada através de biografias de mulheres sempre desempenhando o papel de mães ou esposas de grandes homens da história e, raramente, por seus méritos próprios.”[16]
7. EXERCENDO O PODER COM APOIO POPULAR
Maquiavel defende que tem maior facilidade para manter o poder aquele que tem o apoio popular. Tendo que optar entre o apoio das massas e o apoio das elites, o príncipe deve sempre optar pelo primeiro. Para o autor italiano, enquanto os membros da elite enxergam o príncipe como mais um entre eles (que pode ser substituído a qualquer momento), o povo apoiará o príncipe desde que ele o proteja das elites[17].
O Príncipe apresenta um capítulo inteiro dedicado à maneira pela qual se deve evitar o desprezo e o ódio. Para evitar a rebelião de seus súditos, o príncipe deve evitar ser odiado pela maioria, pois o conspirador sempre acredita satisfazer o povo com a morte do príncipe[18].
Cássio e Brutus, os conspiradores romanos, sabiam disso, tanto que a primeira medida adotada após o assassinato de César foi dar explicação aos plebeus. Brutus tinha consciência de que precisava do apoio popular para manter a ordem em Roma, e procurou obtê-lo ao associar a morte do general à libertação de Roma.
Como já dito, a estratégia não funcionou; os plebeus não aceitaram a morte de César e a cidade foi tomada por um distúrbio civil. Percebe-se, na narrativa shakespeariana, uma clara associação entre esses dois eventos, o que pode ser explicado pelo fato de que, vivendo sob a égide da monarquia inglesa, Shakespeare pretendeu relacionar a morte do governante a uma escalada de instabilidade social, evitando que sua obra fosse interpretada como um estímulo ao questionamento da autoridade monárquica.
CONCLUSÃO
Em sede conclusiva, é possível afirmar que existe, sim, um diálogo entre a teoria política desenvolvida por Maquiavel em O Príncipe e a narrativa histórica construída em Júlio César.
Embora Júlio César seja uma peça inspirada em uma história real, e ainda que Shakespeare tenha sido fiel aos acontecimentos que efetivamente ocorreram na época da república romana, os aspectos políticos que permeiam a narrativa, relacionados à conquista e manutenção do poder, foram provavelmente inspirados na obra maquiavélica.
Temas como a forma adequada de chegar ao poder e os cuidados que o governante deve ter para mantê-lo são abordados pelos dois autores a partir das mesmas premissas, observando-se apenas uma diferença na abordagem utilizada.
Enquanto Maquiavel escreveu um manual de ciência política, descrevendo, de forma didática (inclusive com a utilização de vários exemplos históricos), o comportamento que deveria adotar o príncipe para ser bem-sucedido em sua empreitada política, Shakespeare explora os limites da busca do poder político e a relação entre os governantes e seus súditos a partir de um único exemplo histórico, o assassinato de Júlio César, que catalisou a transição da República para o Império Romano.
REFERÊNCIAS
CHAIA, Miguel. A natureza da política em Shakespeare e Maquiavel. Palestra feita pelo autor em 21 de outubro de 1994 no IEA-USP. Disponível em . Acesso em 20.jun.2017.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017.
MCCORMICK, John P. Democracia maquiaveliana: controlando as elites com um populismo feroz. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, setembro-dezembro 2013, p. 253-298. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2017.
NERI, Cristiane Soares Carneiro. Feminismo na Idade Média: conhecendo a cidade das damas. Revista Gênero e Direito, v. 2, n. 1, 2013, p. 68-85. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2017.
PEREIRA, Ruitemberg Nunes. Os paradoxos do Judiciário no Estado Constitucional e as súmulas vinculantes. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 66-75, out./dez. 2009. Disponível em: . Acesso em 19.jun.2017.
PITKIN, Hannah. Gênero e Política no pensamento de Maquiavel. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, setembro-dezembro 2013, p. 219-252. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2017. SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016.
[1]CHAIA, Miguel. A natureza da política em Shakespeare e Maquiavel. Palestra feita pelo autor em 21 de outubro de 1994 no IEA-USP. Disponível em . Acesso em 20.jun.2017.
[2]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 27.
[3]PEREIRA, Ruitemberg Nunes. Os paradoxos do Judiciário no Estado Constitucional e as súmulas vinculantes. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 66-75, out./dez. 2009. Disponível em: . Acesso em 19.jun.2017.
[4]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 200.
[5]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 62.
[6]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 57-79.
[7]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 57-82.
[8]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 89.
[9]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 50.
[10]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 127-130.
[11]MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Jardim dos Livros, 2017, p. 146.
[12]PITKIN, Hannah. Gênero e Política no pensamento de Maquiavel. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, setembro-dezembro 2013, p. 219-252. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2017.
[13]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 54.
[14]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 111.
[15]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 58-62.
[16]NERI, Cristiane Soares Carneiro. Feminismo na Idade Média: conhecendo a cidade das damas. Revista Gênero e Direito, v. 2, n. 1, 2013, p. 68-85. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2017.
[17]MCCORMICK, John P. Democracia maquiaveliana: controlando as elites com um populismo feroz. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, setembro-dezembro 2013, p. 253-298. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2017.
[18]SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 159.
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Procurador do Ministério Público de Contas - TCE/CE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, José Aécio Vasconcelos. A influência da teoria política de Maquiavel na obra de Shakespeare: diálogos entre Júlio César e o Príncipe Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52321/a-influencia-da-teoria-politica-de-maquiavel-na-obra-de-shakespeare-dialogos-entre-julio-cesar-e-o-principe. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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