RESUMO: A Teoria da Argumentação Jurídica visa à criação de uma metodologia que garanta a racionalidade e a universalidade das decisões judiciais. É com fundamento no princípio da universalidade que ganha relevo a utilização dos precedentes jurídicos como regra de justificação das decisões judiciais. Ocorre que, se de um lado tem-se a necessidade de observância do precedente como forma de assegurar a igualdade, de outro, impõe-se o estabelecimento de balizas para a sua utilização com o escopo de evitar que se torne um argumento de autoridade de escolha aleatória pelo juízo ou, ainda, que as fundamentações das decisões que utilizam precedentes fiquem limitadas à mera subsunção sem qualquer esforço argumentativo. Desse modo, para o controle de sua aplicação, a utilização dos precedentes deve estar vinculada à observância de regras próprias do discurso jurídico.
Palavras-chave: Teoria da Argumentação Jurídica. Decisão judicial. Precedentes. Controle.
1. Introdução
A Teoria da Argumentação Jurídica nasceu da constatação da fragilidade e da incoerência da fundamentação das decisões jurídicas. Segundo Robert Alexy (2014, pp. 23-24), existem no mínimo quatro motivos que levam aos principais problemas de fundamentação das decisões judiciais, quais sejam, a imprecisão da linguagem do Direito, o conflito entre normas, a inexistência de norma válida que regulamente o caso e, por fim, a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão contrariar a literalidade da norma. Assim, por meio da Teoria da Argumentação Jurídica, busca-se a criação de regras e de uma metodologia que vise a eleição, dentro das soluções possíveis, aquela que seja racionalmente mais correta.
A Teoria da Argumentação Jurídica, na definição da professora Cláudia Toledo (2005, p. 48), visa questionar a possibilidade e a validade de uma fundamentação racional do discurso jurídico, a partir da elaboração de regras e formas, com o objetivo de imprimir maior cientificidade ao Direito e de garantir a solidez do Estado Democrático de Direito.
Segundo ainda autora, a cientificidade do Direito decorre diretamente da observância das regras de racionalidade do discurso jurídico a partir das quais considerar-se-á correto aquilo que é discursivamente racional:
Tal objetivação se dá, exatamente, na apresentação sistemática de uma série de condições, critérios ou regras. Isto é, a objetivação de consensos se dá argumentativamente, segundo, regras do discurso, tornando-os corretos ou verdadeiros porque racionalmente fundados. Sendo discursivamente racionais, são tornados universais. (2005, p. 50.)
Sabe-se ainda que é possível se chegar a mais de um resultado a partir da fundamentação do discurso prático, mas o procedimento discursivo é válido para excluir argumentos irracionais e determinar argumentos discursivamente necessários visando aproximação ao ideal que funciona como parâmetro para a facticidade (TOLEDO, 2005).
No mesmo sentido, alerta Alexy (2014, pp. 36-37) que as regras do discurso jurídico não determinam o resultado da argumentação em todos os casos, mas excluem alguns enunciados da classe dos enunciados normativos possíveis, como os discursivamente impossíveis e, por outro lado, impõem os enunciados discursivamente necessários. Portanto, ainda que não sejam capazes de produzir uma certeza, tais regras são de suma importância enquanto instrumento de crítica das fundamentações não racionais, de justificação da pretensão de correção e como precisão de ideal a que se aspira de alcance do justo (2014, pp. 37-38)
É dentro do conceito de enunciados necessários, sendo tidos como regras de justificação que devam ser necessariamente analisadas na elaboração de uma decisão judicial, que se encontram os precedentes judiciais.
A racionalidade e a universalidade provenientes do discurso jurídico são instrumentos de legitimação da legislação e de controle das decisões judicias, o que favorece também a imparcialidade do discurso e, assim, a construção da democracia e a solidez do próprio Estado de Direito (TOLEDO, 2005).
É justamente com fundamento no princípio da universalidade que consagra que os iguais devem ser tratados de maneira igual que ganha relevo a utilização dos precedentes jurídicos como regra de justificação das decisões judiciais.
2. Os precedentes judiciais como regra de justificação das decisões judiciais
O uso de um precedente jurídico significa a aplicação de uma norma concreta elaborada a partir de um julgamento anterior em um caso análogo, ou seja, que possui as mesmas circunstâncias relevantes fáticas e jurídicas.
A utilização do precedente jurisprudencial como fonte do direito e a doutrina do stare decisis possuem origem e relevância destacada no sistema jurídico commow law.[1] Guilherme Marinoni (2009, p. 54), entretanto, ressalta que “ainda que os precedentes tenham sido fundamentais para o desenvolvimento do common law, o stare decisis tem sustentação especialmente na igualdade, na segurança e na previsibilidade”.
Assim, a necessidade de observância dos precedentes também nos países que adotam o civil law - como é o caso do Brasil - resta evidenciada a partir da constatação que a aplicação estrita da lei por si só não é suficiente para garantir a igualdade, a segurança e a previsibilidade nas relações jurídicas (MARINONI, 2009):
Quando se “descobriu” que a lei é interpretada de diversas formas, e, mais visivelmente, que os juízes do civil law rotineiramente decidem de diferentes modos os “casos iguais”, curiosamente não se abandonou a suposição de que a lei é suficiente para garantir a segurança jurídica. Ora, ao se tornar incontestável que a lei é interpretada de diversas formas, fazendo surgir distintas decisões para casos iguais, deveria ter surgido, ao menos em sede doutrinária, a lógica e inafastável conclusão de que a segurança jurídica apenas pode ser garantida frisando-se a igualdade perante as decisões judiciais, e, assim, estabelecendo-se o dever judicial de respeito aos precedentes. Afinal, a lei adquire maior significação quando sob ameaça de violação ou após ter sido violada de forma que a decisão judicial que a interpreta não pode ficar em segundo plano ou desmerecer qualquer respeito do Poder que a pronunciou. A segurança jurídica, postulada na tradição do civil law pela estrita aplicação da lei, está a exigir o sistema de precedentes, há muito estabelecido para assegurar a segurança jurídica no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, exatamente por isto, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).
Ocorre que, se de um lado tem-se a necessidade de utilização do precedente como forma de assegurar a igualdade, a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações jurídicas, de outro, impõe-se o estabelecimento de critérios de controle da aplicação do precedente. Isso porque constata-se que o precedente muitas vezes é utilizado como argumento de autoridade de escolha aleatória pelo juízo e que as fundamentações das decisões que utilizam precedentes são limitadas à mera subsunção sem que seja desenvolvido qualquer esforço argumentativo.
3. A utilização das regras do discurso jurídico como elemento de controle dos sistemas de precedentes
O precedente judicial é considerado um critério de racionalidade da decisão judicial, uma vez que sua observância caracteriza elemento de coerência e de estabilidade para todo o ordenamento jurídico. Segundo Alexy (2014, p. 263), decorre dessa necessidade de estabilidade mínima do sistema que impeça a modificação injustificada das razões que levam à determinada conclusão e de universalização de critérios de julgamento, o princípio da inércia. Assim, o princípio da inércia consagra que uma decisão só pode ser mudada se forem apresentadas razões suficientes para isso.
Alexy (2014, p. 264) conclui que a racionalidade da limitação imposta pelo uso dos precedentes decorre da constatação que existe uma considerável margem do discursivamente possível e que não se pode preencher essa margem com soluções mutáveis e incompatíveis entre si, o que iria de encontro com a exigência de consistência e o princípio da universalidade.
Não se mostra suficiente, contudo, a mera previsão de utilização de precedentes como limite do discursivamente possível, é preciso que o julgador tenha sempre como vetor norteador o seu objetivo de garantir a segurança jurídica e a confiança na aplicação do direito, abolindo-se a prática de automatização dos juízes por meio de reprodução das decisões judiciais. Isso porque, como alertam Francisco José Borges Motta e Maurício Ramires (2016, p. 102), visualizamos o comodismo como tradição na fundamentação das decisões judiciais proferidas por juízes e tribunais brasileiros, as quais repetem irrefletidamente os repositórios de jurisprudência ou afirmam a preferência por um precedente sem qualquer esforço argumentativo.
Nesse ensejo, pode-se revelar a importância da previsão legal das noções de coerência e integridade previstas no art. 926 do Código de Processo Civil brasileiro na aplicação dos precedentes:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
A coerência traduz a noção já apresentada pelo princípio da universalidade, ao passo que a integridade impede que o juiz utilize precedentes isolados em sua fundamentação devendo observar a totalidade da prática jurídica (MOTTA e RAMIRES, 2016). Lenio Streck (2016, p. 158) observa que o dever de observância da integridade impõe limites ao ativismo judicial e à discricionariedade:
A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas.
Logo, o princípio da universalidade e da inércia não impedem que se admita que dois casos que sejam iguais nos aspectos mais relevantes sejam decididos de forma diferente justamente porque a valoração das circunstâncias relevantes mudou. Isso porque se deve ter em mente não só o princípio da universalidade de forma isolada, mas o objetivo de se chegar a uma decisão mais correta possível e, ainda, a integridade do ordenamento. Tem-se a necessidade de observância do precedente, mas admite-se que ele seja afastado no intuito de se obter a decisão mais correta possível e para afastar o precedente recairá sobre o interessado a carga da argumentação para fundamentar tal ação. A carga de argumentação recairá também sobre aqueles que desejam afastar situações que à primeira vista parecem ser iguais, em seus aspectos relevantes, àquelas que foram decididas nos precedentes (ALEXY, p. 263). Resumindo seu raciocínio, Alexy (2014, p. 265) apresenta duas regras quanto ao uso dos precedentes:
(J.13) Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão, deve-se fazê-lo;
(J.14) Quem quiser se afastar de um precedente, assume a carga de argumentação.
Decorre da extensão da obrigação apresentada pela mencionada carga da argumentação, a importância da utilização de técnicas de divergência no uso de precedentes denominadas de distinguishing e overruling (ALEXY, 2014) com o escopo de manter a coerência sistémica.
Como o precedente deve ser contextualizado, é possível que o julgador negue sua aplicação, caso entenda que o caso presente não se identifica suficientemente com o precedente (distinguishing) ou quando o contexto jurídico que autorizou a sua produção encontra-se alterado (e overruling), desde que haja um esforço de fundamentação que vai muito além da mera citação do texto do julgado ou de sua ementa (MOTTA e RAMIRES, 2016).
O distinguish consiste, assim, na recusa à aplicação de um precedente a um caso atual em decorrência de peculiaridades deste. A fundamentação da decisão deve demonstrar que o caso analisado não configura a mesma hipótese de incidência do precedente.
Por outro lado, tendo em vista a ainda necessidade de manutenção de coerência sistêmica, um sistema de precedentes precisa prever técnicas para sua superação a fim de adequá-lo às mudanças sociais e da própria ordem jurídica (MARINONI, Arenhart e Mitidiero, 2017). Desse modo, tem-se a técnica do overruling caracterizada pela revogação de um precedente, na qual o juiz deve apresentar fundamentação no sentido de superação – parcial ou total – do anterior entendimento e de necessidade de elaboração de uma nova regra judicial para o caso posto sob exame.
No ordenamento jurídico brasileiro, o novo Código de Processo Civil previu de forma expressa a necessidade de adoção das duas mencionadas técnicas de divergência no uso de precedentes (distinguish e overruling) em seu art. 489, § 1º, inciso VI, ao dispor que não se considera fundamentada a decisão judicial que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
Outro importante avanço legislativo trazido pelo novel código processual civil brasileiro foi a previsão o dever de fundamentação de utilização de um precedente, não sendo mais considerada suficiente a sua mera reprodução:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
(...)
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
Desse modo, o novo código de processo civil buscou adequar o modelo brasileiro de aplicação dos precedentes às exigências das garantias constitucionais da segurança jurídica e do dever de motivação, positivando ainda importantes ferramentas de controle da racionalidade dessas decisões judiciais.
CONCLUSÃO
O uso de um precedente jurídico significa a aplicação de uma norma concreta elaborada a partir de um julgamento anterior em um caso análogo, ou seja, que possui as mesmas circunstâncias relevantes fáticas e jurídicas.
O precedente judicial, assim, é considerado um critério de racionalidade da decisão judicial, uma vez que sua observância caracteriza elemento de coerência e de estabilidade para todo o ordenamento jurídico já que garante o tratamento isonômico dos casos submetidos ao crivo do Poder Judiciário.
Inobstante, o precedente judicial muitas vezes acaba por servir como instrumento do comodismo judicial, uma vez que há inúmeras decisões judiciais que se limitam a reproduzir o precedente judicial sem desenvolver uma fundamentação mínima necessária que demonstre a adequação da aplicação da decisão paradigma ao caso concreto.
Nesse ensejo, deve-se ter em mente que os precedentes judiciais não visam apenas garantir o princípio da universalidade de forma isolada, mas possuem o objetivo de se chegar à decisão mais correta possível.
Desse modo, apenas por meio da utilização de regras da argumentação jurídica e do desenvolvimento de uma fundamentação que demonstre a sua adequação é possível garantir que a aplicação dos precedentes será utilizada da forma devida visando garantir, em última instância, à promoção da justiça.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Tradução de Manuel Atienza. Segunda edición en español. Madri: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2014.
ALVIM, Arruda, Schmitz. Leonardo. EMENTA. FUNÇÃO INDEXADORA. (AB)USO MECANIZADO. PROBLEMA HERMENÊUTICO. In: A Nova Aplicação da Jurisprudência e Precedentes No CPC/2015. Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim. São Paulo: Ed. RT, 2017. Paginação irregular.
FREIRE, Alexandre. Precedentes judiciais: conceito, categorias e funcionalidade. In: A Nova Aplicação da Jurisprudência e Precedentes No CPC/2015. Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim. São Paulo: Ed. RT, 2017. Paginação irregular.
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. Justificativa do novo CPC. São Paulo: Ed. RT, 2016.
Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito – UFPR. n. 49, p.11-58, 2009.
MOTTA, Francisco José Borges, RAMIRES, Maurício. O novo código de processo civil e a decisão jurídica democrática: como e por que aplicar precedentes com coerência e integridade? In: STRECK, Luiz Lenio, ALVIM, Eduardo Arruda, SALOMÃO, George (coords.). Hermenêutica e jurisprudência no novo código de processo civil. Coerência e integridade. São Paulo: Ed. Saraiva, 2016.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – a exigência de coerência e integridade no novo código de processo civil? In: STRECK, Luiz Lenio, ALVIM, Eduardo Arruda, SALOMÃO, George (coords.). Hermenêutica e jurisprudência no novo código de processo civil. Coerência e integridade. São Paulo: Ed. Saraiva, 2016.
TOLEDO. Cláudia. Teoria da Argumentação Jurídica. Veredas do Direito. v. 2, n. 3, p. 47-65, jan/jun 2005.
[1] Mario Losano (2007, p. 333) destaca que a partir do século XIV o costume geral foi substituído pelo precedente judicial dentro do sistema commow law.
Advogada da União, lotada na Procuradoria Regional da União da 1ª Região, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processual Trabalhista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REBECA PEIXOTO LEãO ALMEIDA GONZáLEZ, . A utilização da teoria da argumentação jurídica como critério de controle de aplicação dos precedentes judiciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52349/a-utilizacao-da-teoria-da-argumentacao-juridica-como-criterio-de-controle-de-aplicacao-dos-precedentes-judiciais. Acesso em: 23 dez 2024.
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