RESUMO: Este trabalho pretende trazer algumas considerações sobre a comunidade surda em seu caminho para o despertar. Necessário se faz compreender o processo educacional que envolve a comunidade surda, bem como suas filosofias. O que se coloca em destaque nesse aspecto é a aquisição da Língua Brasileira de Sinais, ponto de partida para a construção de um sujeito surdo ativo em sua comunidade e fator fundamental na construção de sua identidade e de sua cultura. Embora haja muito pre(conceito) em torno da capacidade do surdo e do desenvolvimento de suas potencialidades, a discussão contextualizada e a consequente desmistificação dos falsos conceitos contribuem para uma melhor compreensão da sociedade sobre uma parte significativa de si mesma. Ao analisar conceitos como educação, capacitação profissional, empregabilidade, acessibilidade, alteridade, pertencimento, estranhamento, identidade e cultura, é possível entender as dificuldades e encontrar alternativas para que o despertar e a construção dos acessos sejam mais visíveis. Dessa forma, o surdo pode ser efetivamente um sujeito ativo na busca dos seus direitos, partilhando com sua comunidade as experiências enriquecedoras de uma vida plena e despertando sua consciência para ações reflexivas.
Palavras-chave: comunidade, identidade, pertencimento, alteridade, acessibilidade.
Introdução
O mundo é partilhado entre seres que se assemelham e ao mesmo tempo se diferenciam nas individualidades e particularidades de cada um. Essa convivência é enriquecida pelas diferenças e pelos contrastes individuais. Essa troca e esse consequente aprendizado através de uma convivência integrada torna o ser humano mais capacitado a apreender as nuances e outras formas de enxergar o mundo.
Tão presentes na sociedade, aqueles que se encontram marginalizados da sociedade, por serem diferentes, são muitas vezes alijados do processo participativo. Os espaços têm que ser conquistados pelos excluídos diariamente. As dificuldades se apresentam das mais variadas formas, sejam por meio de preconceitos palpáveis ou camufladas por uma aparente abertura e aceitação.
A comunidade surda se encontra nesse contexto de estar à parte do processo. É importante saber como é a construção da sua identidade, da sua cultura, do seu mundo; como são os processos de integração e ou inserção na sociedade; como o surdo se torna um agente de transformação dentro da própria comunidade e transcende as barreiras erguidas pelo preconceito, bem mais do que pelas limitações reais.
Somos notavelmente ignorantes a respeito da surdez. (SACKS, 1998)
Essa afirmação, na verdade uma constatação, resume bem a sensação que se tem ao entrar em contato com a realidade da comunidade surda. Tudo o que é suposto saber configura-se como conceitos falsos baseados em um senso comum preconceituoso. A falta de compreensão da sociedade para com uma parte significativa dela mesma, que é a comunidade surda, é muito grande. A pouca comunicação entre surdos e ouvintes passa por questões que envolvem o preconceito, a falta de boa vontade e interesse em conhecer e aprender, o que leva à ignorância sobre a realidade surda.
De acordo com a definição estabelecida pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005: “considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”.
A Língua Brasileira de Sinais – Libras é um despertar para várias questões sociais presentes na sociedade. Esse aprendizado provoca um interesse em saber quem são, como vivem e se comunicam os surdos. Conforme o parágrafo único, do artigo 1º, da Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, entende-se como Libras “a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil”.
Muitas dificuldades se colocam no dia a dia do surdo, principalmente para aquele que não vive nos grandes centros. Ele é marginalizado, inclusive pela família, visto como mentalmente incapaz, não tendo acesso a uma educação apropriada, o que impossibilita a comunicação. O pensamento está lá dentro da mente dele, em ebulição, mas encontra obstáculo para materializar seus anseios, o que dificulta seu desenvolvimento e consequente compreensão do mundo.
As capacidades e as habilidades do surdo são sempre questionadas, sendo muitas vezes desvalorizado socialmente devido à falta da comunicação oral. Isso o torna diferente, tratado com descaso ou desconfiança, visto erroneamente como portador de um retardo mental por não ter a expressão oral.
As diferenças enriquecem o convívio. Entretanto, a integração e a inclusão das minorias se dão de forma mais lenta e por vezes dolorosa. O modo de ver essas diferenças é que precisa ser trabalhado, reconstruído, para tornar possível transcendê-las. Isso passa pela aceitação dentro da família, do círculo de amigos, do ambiente escolar e profissional. São dificuldades diárias que ainda contam com os obstáculos advindos dos ouvintes e do poder público. Quando se passa a conviver com esse novo grupo, quão grande é a surpresa com a riqueza e a habilidade de comunicação do surdo. O surdo tem referenciais que tornam a comunicação mais intensa e repleta de nuances. É a expressão do corpo, da face, dos olhos, da configuração das mãos. Há ainda os classificadores, tão importantes na interação social.
Esse preconceito para com o surdo reside no fato de haver estranheza por parte do ouvinte quando se depara com o uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras. É conferido a ela um menor prestígio social causado pelo desconhecimento e consequente aceitação da língua de sinais. Essa língua, que une a comunidade surda, é o que proporciona o sentido de pertencimento a ela, de reconhecimento como membro, como sujeito social. Afinal é através da Libras que o surdo se posiciona na sociedade como usuário de uma língua própria. Dessa forma, ele pode interagir nos ambientes sociais, externando suas opiniões e construindo sua identidade, sua história.
Os surdos não somente usam uma língua diferente da nossa, mas têm uma cultura e identidades distintas. (PERLIN, 1998)
A lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que reconhece a Libras como língua, como forma de comunicação e expressão, foi uma conquista. Entretanto, o apoio do poder público para difundi-la é, ainda, incipiente. A lei em vigor não é garantia de que os direitos e os acessos aos direitos sejam cumpridos. O atendimento adequado não acontece, o surdo é frequentemente visto como retardado, como portador de alguma deficiência mental. A inclusão não se dá de forma tranquila, pois há preconceitos do ouvinte que desconhece a realidade da comunidade surda. Por não compreender, o afasta do convívio. O sistema educacional não está preparado para atender essas necessidades, seja por falta de qualificação dos profissionais, seja por não estar aberto ao convívio com as diferenças.
A luta pela inclusão, pela compreensão de sua cultura, é histórica. O surdo encontra dificuldades e ambientes que o excluem. É importante para o surdo o convívio socioeducativo e familiar.
Vários questionamentos surgem quando os direitos básicos dos surdos são negligenciados. A inclusão teórica vem acontecendo na prática? Como a acessibilidade vem sendo vivenciada pela comunidade? Como combater os fatores de exclusão? Como propiciar ensino de qualidade, o trabalho digno, o acesso aos meios de comunicação e informação? Como se dá a interação com a comunidade ouvinte?
O surdo tem uma língua própria, mas poucos são capazes de entendê-la plenamente. Capacitar grupos maiores de pessoas é fundamental para acolher essa comunidade. Isso passa por uma abordagem da legislação que diz respeito à comunidade surda. O surdo tem que transitar por todos os ambientes, não pode ser confinado a permanecer dentro da comunidade, onde há uma zona de conforto, sem dúvida, mas é preciso recebê-lo em todos os espaços, como parte da sociedade que é. Um exemplo é o acesso a eventos culturais, artísticos e sociais, que é precário.
A inserção no mercado de trabalho é o degrau mais difícil de ser escalado. São poucos aqueles que conseguem percorrer o caminho das universidades, dos cursos profissionalizantes, o que é fundamental para a conquista da independência. Não depende somente de o surdo estar bem preparado. Deve haver uma maior sensibilização da sociedade e do poder publico, afinal são muitas as dificuldades enfrentadas pela comunidade surda, que tem o direito de ver suas necessidades atendidas. Há falta de projetos políticos para a surdez.
A acessibilidade é um tema muito discutido, mas não basta colocá-la na legislação sem criar condições efetivas para implementá-las. Alternativas devem ser buscadas. É importante uma reflexão sobre o assunto, conhecer a comunidade surda, sua história, suas construções culturais. Nesse contexto, observa-se a importância da família, da escola, dos centros e associações que atendem a comunidade e onde ela interage com seus pares. O surdo, enriquecido pela história de sua vida, é capaz de fazer dessas vivências sociais uma fonte que pode conduzi-lo a vários caminhos.
A aquisição da língua materna é o caminho para o processo de autolibertação. Para entender o processo dinâmico e complexo dos caminhos trilhados pela comunidade surda, é necessário compreender a sua história, a evolução dos (pre)conceitos e refletir como esse instrumento de comunicação pode modificar as relações interpessoais.
O compartilhamento de experiências enriquece tanto a comunidade surda internamente quando sua convivência com a comunidade ouvinte. Como o surdo vai assimilar de uma maneira mais plena o mundo que o cerca? Será pelo nível de sua participação enquanto indivíduo e sujeito, abrindo espaços e produzindo sua identidade.
Para Aranha e Martins (2003, p. 26), “a cultura é, portanto, um processo de autolibertação progressiva do homem, o que o caracteriza como ser de mutação, um ser de projeto, que se faz à medida que transcende, que ultrapassa a própria experiência”.
Pretende-se neste trabalho refletir sobre a comunidade surda, a relação entre os surdos e os ouvintes, as noções de estranhamento e pertencimento de um grupo que é marginalizado e estigmatizado, não sendo reconhecido em suas diferenças.
Ressaltada a importância do contexto da Língua Brasileira de Sinais, observa-se que os obstáculos se processam ainda mais no âmbito do trabalho, da empregabilidade, das políticas públicas de inclusão, da acessibilidade à cultura e ao lazer.
Na preocupação com o reconhecimento de estar à parte de todo processo, é preciso avaliar como o surdo pode deixar de ser um expectador e construir-se como indivíduo, posicionando-se como sujeito ativo.
As considerações sobre esse assunto são fundamentais para que se possa, além de recuperar a historicidade, atentar para a necessidade de que esse despertar possa se dar de forma conjunta, com a consciência do papel do indivíduo na busca de melhores condições para que a transformação da realidade seja mais concreta, com abertura de espaços. Contudo, a luta não é só no campo das ideias, ela se dá na plataforma prática do dia a dia. As transformações somente acontecem quando há um enfrentamento direto, sem mascarar as intenções tanto do surdo como do ouvinte.
Quando se fala em comunidade surda e na sua construção histórica, é importante conhecer primeiramente o processo que conduziu a comunidade até os dias de hoje.
É uma história que começa com a discriminação e o estigma de ser surdo. Diversas eram as formas para explicar essa condição e muitos motivos para justificar sua marginalização, incluindo indicadores religiosos, supersticiosos, moralistas e fatalistas. Eram indivíduos sem direitos fundamentais, sem participação na sociedade e muitas vezes perseguidos.
Somente a partir de século XVI há uma movimentação e uma discussão aprofundada sobre a educação dos surdos. E o que se observa é uma vasta tentativa de enquadrar o surdo, gerando diversas filosofias e metodologias para sua educação.
Não há como falar em educação dos surdos sem citar o Abade Charles Michel de L´Epée, que por volta de 1750, na França, aprendeu a língua de sinais com os surdos das ruas de Paris, criando os Sinais Metódicos, uma combinação de língua de sinais com a gramática sinalizada. A partir de então surgem as escolas para surdos e o assunto vem à tona com mais força nesse século XVIII.
Esse período que agora parece uma espécie de época áurea na história dos surdos testemunhou a rápida criação de escolas para surdos, de um modo geral dirigidos por professores surdos, em todo o mundo civilizado, a saída dos surdos da negligência e da obscuridade, sua emancipação e cidadania, a rápida conquista de posições de eminência e responsabilidade – escritores surdos, engenheiros surdos, filósofos surdos, intelectuais surdos, antes inconcebíveis, tornaram-se subitamente possíveis. (SACKS, 1989, p. 37)
Muitos pensadores, educadores, filósofos e indivíduos envolvidos diretamente com a vivência surda começaram a debater a questão e a montar estruturas teóricas para embasar os variados pontos de vista. Assim proliferaram o Oralismo, a Comunicação Total e o Bilinguismo.
O Oralismo, enquanto filosofia educacional para surdos, ganhou mais notoriedade a partir de 1860. Esse pensamento rejeita a língua de sinais e insiste no ensino da língua oral como forma de integração do sujeito surdo. Nesse contexto, a língua de sinais foi desprezada, o que não foi benéfico para a educação global dos surdos. Somente por volta de 1960 é que o assunto sobre língua de sinais volta à discussão. Com pesquisas na área e experiências vivenciadas surge então a Comunicação Total, que utiliza todas as combinações na educação dos surdos, acreditando que a comunicação deve ser privilegiada e não a língua. Com a evolução dos estudos sobre a área, tem início na década de 1970, mais efetivamente na década de 1990, a disseminação do Bilinguismo, que prega a utilização da língua de sinais e da língua oral, separadamente, de acordo com a situação que se apresenta.
No Brasil, há que se destacar a fundação, em 1957, do Instituto Nacional de Surdos-Mudos, hoje Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES, que no início utilizava a língua de sinais, depois seguindo a tendência das metodologias optou pelo Oralismo, passando a Comunicação Total e posteriormente ao Bilinguismo.
Ainda hoje essas diversas correntes se distanciam no que se refere a educação da comunidade surda, encontrando defensores em cada uma das abordagens.
Atualmente, não há como dissociar o surdo da sua língua materna. Para entender a importância da conquista da Língua Brasileira de Sinais para a comunidade surda, é necessário refletir sobre as vantagens e consequências que seu uso acarreta e observar como a sua disseminação tem sido promovida.
As línguas de sinais são línguas naturais, que utilizam o canal visuo-manual, criadas por comunidades surdas através de gerações. Estas línguas, sendo diferentes em cada comunidade, têm estruturas gramaticais próprias, independentes das línguas orais dos países em que são utilizadas. As Línguas de Sinais possuem todas as características das línguas orais como a polissemia, possibilidade de utilização de metáforas, piadas, jogos de linguagem e etc. (GOLDFELD, 1997, p. 11)
Como essa questão do ensino de Libras é restrita aos centros que se comunicam diretamente com a comunidade surda, é interessante que esse assunto seja tratado em um nível mais amplo. Para grande parte das pessoas, a língua de sinais são gestos de mímicas, sem nenhuma complexidade. Pelo desconhecimento, há um desprezo que não é justo com os usuários da língua, nem com os educadores e intérpretes. Libras é uma língua no sentido estrito da palavra, com estruturas gramaticais próprias e com os níveis linguísticos inerentes a ela, através da modalidade visual espacial.
É através da linguagem que se constitui o pensamento do indivíduo. Assim, a linguagem está sempre presente no sujeito, mesmo nos momentos em que este não está se comunicando com outras pessoas. A linguagem constitui o sujeito, a forma como este recorta e percebe o mundo e a si próprio. (GOLDFELD, 1997, p. 17)
Ao estabelecer as conexões entre esses conteúdos, compreende-se melhor a relação instituída e o que ela pode representar num processo de autoconhecimento e aprendizagem.
Em síntese, este estudo vai trazer à reflexão a comunidade surda, desmistificando vários aspectos da sua vivência, convivência e construção da sua identidade, focando o surdo enquanto sujeito atuante que desempenha um papel fundamental na construção de uma cultura reflexiva e independente.
1.1. O surdo
O surdo não pode ser mais visto como um ser incapaz, alienado dos seus direitos; nem como defeituosos, deficientes, portadores de deficiência ou portadores de necessidades especiais. É interessante observar como a nomenclatura e as terminologias podem encobrir os problemas, tirando o foco da questão fundamental:
Não existem os especiais ou os diferentes, porque todos têm características únicas e singulares. É preciso estancar esse processo secular de criar comparações, categorias, cotas de condições humanas, considerando natural decidir quando e de que forma um grupo pode ou não estar em algum espaço social em função da forma como enxerga, ouve, pensa ou se move e que inclusão não é uma proposta dirigida a quem é minoria, mas sim a quem está em minoria por qualquer razão, não é colocar para dentro quem está fora. (WERNECK, 1997)
De acordo com a Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, ficou estabelecido que o termo correto seria pessoas com deficiência, o que contribui para não mascarar a deficiência em si, estabelecendo as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência, mostrando a realidade de forma objetiva, sem falsos sentimentalismos ou menosprezo ou compaixão. O que se busca é o espaço, a dignidade do ser humano, que o surdo possa ter seus direitos e deveres garantidos. Não se pode ignorar as diferenças nem as necessidades especiais, mas se busca a oportunidade para que essas diferenças sejam minorizadas e que a igualdade possa se dar nos aspectos do acesso. O surdo não pode ter seus direitos restringidos. Na medida em que as diferenças são identificadas, que os acessos possam ser construídos e que a participação e a integração ocorram de modo mais pleno e digno.
Um surdo não é um deficiente nato, mas experimenta a deficiência pela intransigência lingüística de um mundo oralizado. É o ambiente lingüístico pouco tolerante à diversidade cultural que força o isolamento e a experiência de desigualdade dos surdos. Um surdo, em um ambiente bilíngüe ou entre surdos manualistas, expressa suas idéias e sentimentos com vigor. (DINIZ, 2005).
1.2. Cultura e identidade surdas
A importância da cultura surda se verifica na construção da identidade, na constituição do sujeito surdo, afinal isso cria uma integração, um reconhecimento de unidade, expressos pelas manifestações próprias culturais. Devido à marginalização sofrida por ser um grupo de minoria, e por isso mesmo sem visibilidade e com preconceitos arraigados fora e mesmo dentro da comunidade, a comunidade surda precisa dar mais impulso a sua cultura, que é legítima de um grupo que se constitui verdadeiramente. E ele não pode ser oprimido pela cultura dominante nem ser absorvido ou inferiorizado. É preciso olhar com outra perspectiva esse grupo social e é fundamental que eles se reconheçam como sujeitos e se identifiquem enquanto uma comunidade na busca de objetivos comuns.
Segundo a professora Nídia Limeira de Sá (2002), cultura é
definida como um campo de forças subjetivas que dá sentido(s) ao grupo. É através das interpretações baseadas na cultura majoritária que, na construção social da surdez, ocorre a valorização do modelo ouvinte, principalmente no processo educativo dos surdos. Trata-se de uma imposição subjetiva (às vezes até objetiva) sobre as identidades dos surdos, sobre sua subjetividade, sobre sua auto-imagem, ou seja, poderes são exercidos para influenciar os surdos a perderem sua identidade de surdo, para que sua diferença seja assimilada, disfarçada, torne-se invisível.
Considerando a cultura como processo de autolibertação progressiva do homem (Aranha e Martins, 2003), as manifestações artísticas suscitam a criatividade e podem propiciar aberturas no processo cultural, tendo em vista a celebração da diversidade.
Cabe aqui repensar a importância da cultura a partir das manifestações artísticas, enquanto produto coletivo da humanidade, conectadas com o tempo e com o espaço nos quais são produzidas.
Diante desse entendimento, depreende-se a relevância desses conceitos para a construção das manifestações culturais dentro da comunidade surda.
A cultura surda refere-se aos códigos próprios dos surdos, suas formas de organização, de solidariedade, de linguagem, de juízos de valor, de arte, etc. Os surdos envolvidos com a cultura surda, auto-referenciam-se como participantes da cultura surda, mesmo não tendo eles características que sejam marcadores de raça ou de nação. (SÁ, 2002)
O nível de participação do surdo na comunidade na qual está inserido define os caminhos a serem percorridos na busca de uma identidade cultural.
A comunidade surda é composta por surdos exclusivamente. Paralelamente a ela, existe uma comunidade solidária, segundo SKLIAR (1997), formada por aqueles que compartilham de alguns objetivos comuns e unem esforços para transformar efetivamente suas ações em referenciais de crescimento. Dessa forma, nessa comunidade encontram-se ouvintes envolvidos na busca pela melhoria de educação e profissionalização dos surdos.
Quando se reflete sobre a cultura surda, surge primeiramente como ponto central a discussão sobre a Libras, sua relevância enquanto fator de integração, reconhecimento e unidade.
Com a utilização da língua de sinais, o surdo passa a interagir com o outro e com o mundo. Ele se constitui como sujeito.
Segundo Márcia Goldfeld (2002), “a linguagem constitui o sujeito, a forma como este recorta e percebe o mundo e a si próprio.”
Como a língua de sinais não é uma interpretação ou gestualização de uma língua, é necessário apreender sua importância enquanto ferramenta de identidade e reconhecimento de uma comunidade. Uma vez que contém toda complexidade e expressividade inerentes a uma língua, a língua de sinais é também dinâmica, sendo enriquecida pelos usuários que a moldam de acordo com o contexto, com as mudanças que ocorrem dentro de uma sociedade.
A Libras ainda tem uma visibilidade insipiente e não é bem difundida. É fundamental seu reconhecimento legal e uma maior divulgação do conceito, do método e da relevância dessa língua. É um direito do surdo ter acesso a essa ferramenta, que é vital no seu crescimento pessoal, social e profissional.
A língua de sinais permitirá que os surdos constituam uma comunidade linguística diferente, e não que sejam vistos como um desvio da normalidade. Mas ela ainda é utilizada por um grupo muito restrito, os quais vivem em desvantagem social, de desigualdade e que participam limitadamente na vida da sociedade majoritária. Apesar de muitas pesquisas demonstrarem que a língua de sinais cumpre com as funções traçadas para as línguas naturais, ela é muito desvalorizada. (SKLIAR, 1997)
A língua é o ponto de partida para a inclusão e interação, mas é apenas um início de um longo processo de transformação e compreensão das diferenças. A importância da Libras se fundamenta no aspecto de ser o fio condutor e unificador de toda a comunidade surda.
Talvez pela importância que tem a língua de sinais como um dos principais aspectos identitários é que historicamente se verificou uma verdadeira violência institucional contra a comunidade surda - ao ser “sugerida” a proibição da língua de sinais nas escolas, desde o final do século XIX. Diríamos que historicamente ocorreu um verdadeiro “amordaçamento” da cultura surda. Ou, caso consideremos que a palavra “amordaçar” lembra “impedir a fala”, seria interessante dizer que houve uma “amarração” da cultura surda, pois literalmente as mãos é que eram amarradas, para que não pudessem utilizar a língua natural que dá suporte ao mundo cognitivo dos surdos. Ainda hoje, pela desautorização ou negação da diferença, tenta-se uma “amarração” da cultura surda, sob a perspectiva de que uma sociedade igualitária (sem diferenças) é a sociedade ideal. (SÁ, 2006)
Na comunidade surda, há o fortalecimento do grupo, a integração. Essa unidade que se cria é fundamental para a noção de cultura e identidade.
A participação na comunidade surda se define pelo uso comum da língua de sinais, o sentimento de identidade grupal, o auto-reconhecimento e identificação como surdo, o reconhecer-se como diferentes, os casamentos endogâmicos, fatores estes que levam a redefinir a surdez como uma diferença e não como uma deficiência. Pode-se dizer, portanto, que existe um projeto surdo da surdez. A língua de sinais anula a deficiência lingüística conseqüência da surdez e permite que os surdos constituam, então, uma comunidade lingüística minoritária diferente e não um desvio da normalidade. (SKLIAR, 1997, p. 141)
Há aqueles que conceituam a cultura surda em aspectos sociológicos como uma subcultura, não como forma de menosprezo, evidentemente, mas para diferenciar essa participação específica de uma cultura mais ampla. A comunidade surda seria esse grupo integrante de uma minoria que tem objetivos em comum, o que distingue da cultura dominante. Entretanto, não é uma conceituação amplamente aceita, já que muitos entendem como uma forma de desvalorização e preconceito.
Para que o surdo possa reconhecer sua identidade surda é importante que ele estabeleça o contato com a comunidade surda, para que realize sua identificação com a cultura, os costumes, a língua e, principalmente, a diferença de sua condição. Por intermédio das relações sociais, o sujeito tem possibilidade de acepção e representação de si próprio e do mundo, definindo suas características e seu comportamento diante dessas vivências sociais. (DIZEU; CAPORALI, 2005)
Levando-se em conta que o surdo transita entre a cultura surda e a ouvinte, muitas vezes sua identidade encontra-se fragmentada.
Quando o sujeito surdo é levado a conviver apenas com uma comunidade ouvinte, sem contato com outros surdos, sua surdez tende a ser ocultada e depreciada. O estigma de deficiente agrava-se a cada dificuldade que essa pessoa irá encontrar para se igualar com o ouvinte. É importante que o surdo se mantenha integrado em sua comunidade, se relacione com seus pares, sem se isolar da comunidade majoritária. O objetivo dessa interação é a constituição da identidade surda, de se aceitar como uma pessoa normal, com potencialidades e limitações, apenas surda. (DIZEU; CAPORALI, 2005)
Conceituar identidade é uma tarefa complexa, já que estão em jogo muitos aspectos a serem levados em consideração. Quando se fala em pessoa, em indivíduo, são vários componentes que a envolvem, sejam eles estáticos ou dinâmicos. A identidade vai se formando a partir de si mesmo, mas sobretudo em contato com o outro.
Segundo Ualy Castro Matos, “a identidade é um contínuo processo de construção da subjetividade”. Em seu artigo, ele cita com propriedade a fala de González Rey sobre o assunto:
A subjetividade é um sistema complexo de significações e sentidos subjetivos produzidos na vida cultural humana, e ela se define ontologicamente como diferente dos elementos sociais, biológicos, ecológicos e de qualquer outro tipo, relacionados entre si no complexo processo de seu desenvolvimento. Temos definido dois momentos essenciais na constituição da subjetividade – individual e social -, os quais se pressupõem de forma recíproca ao longo do desenvolvimento. A subjetividade individual é determinada socialmente, mas não por um determinismo linear externo, do social ao subjetivo, e sim em um processo de constituição que integra de forma simultânea as subjetividades social e individual. O individuo é um elemento constituinte da subjetividade social e, simultaneamente, se constitui nela (GONZÁLEZ REY, 2002, apud MATOS)
Matos afirma que “a formação de identidade está associada a consubstância do individual com o plural, o que sugere pensar no coletivo que habita cada pessoa (identidade social)”.
A identidade social vai posicionar o surdo diante de toda a sociedade. Nesse processo de afirmação de identidade, o contato com o outro é que vai contribuir para o seu reconhecimento como indivíduo e sujeito.
1.3. Alteridade
Refletindo sobre a interação entre comunidade surda e comunidade ouvinte, outro conceito a ser considerado é o de alteridade.
Segundo Frei Betto, alteridade “é ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem.”
Importante refletir sobre esse conceito ao abordar a temática do surdo, da comunidade surda e suas relações entre si e com o outro. Sempre o “outro” será diferente, terá sua história pessoal e social, com elementos que o vão distinguir. Tem que ser visto como individuo na sua totalidade e complexidade, não como apontamentos preconceituosos. A surdez é mais uma particularidade que o distingue, dentre tantas outras características.
Reflete também o professor e criador do Projeto Mundial Cultura da Paz e Não-Violência, Maurício da Silva, sobre o termo:
A palavra alteridade que possui o prefixo alter do latim possui o significado de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, com consideração, valorização, identificação e dialogar com o outro. A prática alteridade se conecta aos relacionamentos tanto entre indivíduos como entre grupos culturais religiosos, científicos, étnicos, etc. Na relação alteritária, está sempre presente os fenômenos holísticos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho ecológico, as experiências particulares são preservadas e consideradas, sem que haja a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição destas.
Para Silva, “a prática da alteridade conduz da diferença à soma nas relações interpessoais entre os seres humanos revestidos de cidadania”. A partir de informações, conhecimento, convivência e identificação do outro como perspectiva de enriquecimento, estabelecendo essa relação de alteridade, é que se pode compreender e vivenciar uma outra realidade. Com uma convivência mais harmônica, sem determinismos ou preconceitos que vão abalar a dignidade.
Assim a comunidade surda e a comunidade ouvinte devem se posicionar, sob o olhar da alteridade, pautando essa convivência com o diferente com respeito e reconhecimento de que todos são sujeitos sociais, com os mesmos direitos e deveres.
A pedagogia da diferença fala de um Outro constituído na trama de sua identidade e, por não haver apenas um traço identitário, não há argumentação que justifique dizer que determinado sujeito se constitui pela ou a partir da sua deficiência, estabelecendo, assim, um único espaço pedagógico capaz de oferecer-lhe o acesso ao conhecimento e aos bens culturais. O Outro, numa sociedade em que a identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada, expressa-se por meio da estranheza ao centro da normalidade, apagando seus matizes e impossibilitando sua fixação. (GIORDANI)
Ubiratane de Morais Rodrigues (2007), sobre o papel do Estado em promover políticas públicas específicas, resume: “se o Surdo é Outro, não pela deficiência ou diferença, mas pela condição de Alteridade, então cabe ao Estado efetivar suas leis, dado que além do compromisso social, cabe-lhe um posicionamento ético diante do humano que vê sua Alteridade aniquilada nas barreiras da comunicação”.
Respeitar, tolerar, suportar, entender a cultura alheia não deve ser menos comprometedor que traçar estratégias sócio-políticas para tornar visíveis as diferenças e agir em função delas. Ora, a afirmação das identidades e da diferença dos surdos traduz um desejo de garantir-lhes o acesso aos bens sociais enquanto direito, não enquanto concessão. (SÁ, 2002)
1.4. Integração x inclusão
Há dois conceitos importantes a serem percebidos na forma como a comunidade surda se insere na sociedade: integração/inclusão e acomodação.
A integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da (capacidade) de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade. Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a prescrições alheias que o minimizam, as suas decisões já não são suas, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem integrado é o Sujeito. A adaptação é assim um conceito passivo – a integração ou comunhão, ativo. Este aspecto passivo se revela no fato de que não seria o homem capaz de alterar a realidade, pelo contrário, altera-se a si para adaptar-se. A adaptação daria margem apenas a uma débil ação defensiva. Para defender-se, o máximo que faz é adaptar-se. Daí que a homens indóceis, com ânimo revolucionário, se chame de subversivos. De inadaptados. (FREIRE,1976, p.42)
Para o surdo é importante também a inclusão e a não acomodação - valores fundamentais contra a alienação e o conformismo, imprescindíveis na busca de outros caminhos, de uma transformação social.
Cabe uma reflexão sobre as terminologias: inclusão ou integração. Aparentemente sinônimos, esses dois mecanismos apresentam ideologia e filosofias distintas, ainda que com objetivos semelhantes. Segundo WERNECK (1997), há diferenças entre um termo e outro. A inclusão exige rupturas nos sistemas, as mudanças beneficiam a todos; não procura disfarçar as limitações, já que busca uma transformação mais profunda. Já a integração contenta-se com transformações mais superficiais, as pessoas com deficiência tem que se adaptar aos modelos existentes na sociedade, que faz alguns ajustes para encaixá-las, com isso há uma tendência em disfarçar, camuflar as limitações, a fim de aumentar a inserção, com pequenas concessões. Para esse trabalho, os dois termos são importantes e complementares.
1.5. O surdo enquanto sujeito social
Para que os diversos obstáculos sejam ultrapassados, o surdo precisa agir enquanto sujeito social, o que fortalece a sua própria cultura. Bem apropriadas são as palavras de Juarez Dayrell:
O sujeito é um ser humano aberto a um mundo que possui uma historicidade; é portador de desejos, e é movido por eles, além de estar em relação com outros seres humanos, eles também sujeitos. Ao mesmo tempo, o sujeito é um ser social, com uma determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais. Finalmente, o sujeito é um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e à sua singularidade. [1]
A relação social e cultural entre o ouvinte e o surdo transita pela noção de pertencimento e de estranhamento. Um diz respeito à necessidade de o surdo participar e vivenciar sua história em família, em comunidade e em sociedade. O outro aponta em dois sentidos: primeiro, o estranhamento do ouvinte diante do surdo; segundo, o estranhamento do surdo diante do mundo, que não quer ouvi-lo.
Ana Lúcia Amaral, no Dicionário de Direitos Humanos, assim define pertencimento:
Pertencimento, ou o sentimento de pertencimento é a crença subjetiva numa origem comum que une distintos indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como membros de uma coletividade na qual símbolos expressam valores, medos e aspirações. [...] Esse sentimento de pertencimento pode ser reconhecido na forma como um grupo desenvolve sua atividade de produção, manutenção e aprofundamento das diferenças, cujo significado é dado por eles próprios em suas relações sociais. Quando a característica dessa comunidade é sentida subjetivamente como comum, que pode ser a ascendência comum, surge o sentimento de "pertinência", de pertencimento, ou seja, há uma comunidade de sentido. [...] A sensação de “pertencimento” significa que precisamos nos sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse tal lugar nos pertence, e que assim acreditamos que podemos interferir e, mais do que tudo, que vale a pena interferir na rotina e nos rumos desse tal lugar. [2]
Assim, o pertencer é parte importante no objetivo de conservar os valores de um grupo através dos seus membros, como parte de uma engrenagem. Como bem delineia Ana Lúcia Amaral, o pertencimento a uma comunidade está relacionado com a noção de participação, o que propiciará o sentimento de corresponsabilidade. Cada membro do grupo é parte integrante, o todo se constitui de cada membro, que poderá participar ativamente, praticando e sofrendo as ações.
O estigma e o preconceito fazem parte do nosso mundo mental e atitudinal, tendo em vista que pertencemos a categorias - mulheres, negros, analfabetos, políticos, professores, judeus, velhos, repetentes na escola, pós-graduados, estrangeiros, desempregados - que são recebidas com pouca ou muita ressalva por um grupo determinado. Não importa a qual grupo pertençamos, mas sim a qual queremos pertencer, e é direito de cada indivíduo escolher o lugar na sociedade a que melhor se adapte. (BOTELHO, 2002)
A função do “estranhamento” é ser a propulsão para o desencadeamento de novas formas de pensar. Essa é a importância do estranhamento: levar o indivíduo ao questionamento, a fim de melhor compreender e refletir sobre o mundo do qual faz parte. Isso é fundamental para o surdo, que vê com novos olhos o que está a sua volta e é capaz de criar a sua cultura com outras perspectivas. A introdução ao estudo da Libras propicia ao ouvinte esse estranhar, esse despertar.
Segundo Aranha e Martins (2003), o “sair de si” combate aquilo que paralisa, ou seja, o preconceito, o dogmatismo e as convicções inabaláveis; essa “viagem” de volta é uma condição para se tornar melhor. O que é válido tanto para o surdo como para o ouvinte.
Paulo Freire ensina com muita propriedade a importância da consciência e da ação cultural como fatores de transformação social:
ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica para a conscientização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como a educação, é um processo especifica e exclusivamente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em “tomar distância” do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres com o mundo. Sem esta objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo. [...] Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação são capazes de libertar-se desde, porém, que sua reflexão não se perca numa vaguidade descomprometida, mas se dê no exercício da ação transformadora da realidade condicionante. Desta forma, consciência de e ação sobre a realidade são inseparáveis constituintes do ato transformador pelo qual homens e mulheres se fazem seres de relação. (FREIRE, 1982, p. 53)
O surdo deve tomar as rédeas da sua história e ser o agente transformador, que não é passivo e não aceita pacificamente aquilo que é imposto. Enquanto sujeito, o surdo precisa encontrar seu espaço e socializar, trocar ideias, construir e consolidar sua identidade.
Essas reflexões são importantes para que o surdo busque as variáveis de sua cultura, partindo do estranhamento para uma completa integração. Assim a produção da arte e cultura surdas, utilizando os recursos espaciais, gestuais e visuais da Libras, pode atingir uma profundidade maior. O surdo torna-se sujeito social em sua plenitude, participando ativamente, com uma postura crítica e criativa. O sujeito social surdo é consciente de sua identidade, é capaz de reconhecer as nuances sociais e culturais, as conquistas e vitórias da comunidade surda, nas suas lutas históricas pela própria língua e pela valorização de sua cultura.
Os usuários da Libras, os profissionais, educadores e familiares que convivem e vivenciam o universo do surdo, podem ser instrumentos de divulgação dessa realidade que está próxima, dissipando os preconceitos e as falsas verdades sobre a comunidade surda, abrindo novas perspectivas, sensibilizando e informando sobre suas necessidades e capacidades, trazendo ao debate um assunto tão atual, despertando o interesse e a participação da sociedade como um todo.
2.1. A educação do surdo
A educação do surdo perpassa por várias questões, sobretudo aquela que se processa de forma institucionalizada. A educação formal dos surdos que se dá no ambiente da escola requer atenção especial, considerando que esse ambiente é responsável pelo desenvolvimento mais amplo do indivíduo, lugar em que o lado cognitivo e o social se interagem, local em que a diversidade se relaciona.
Sobre a educação escolar do surdo, Anízia da Costa Zych (2003) afirma que
sendo ofertados aos surdos os instrumentos necessários à sua comunicação, seu potencial intelectual não será apenas preservado, mas seletamente estimulado. Com a colaboração de um ambiente favorável capaz de aguçar suas percepções para explorar o mundo e apropriar-se do conteúdo cultural do contexto sociocultural, seu desenvolvimento será aprimorado. Além disso, é preciso atentar para novas formas, envolvê-los na coletividade para que, assim, dinamizem seu potencial e aprimorem suas competências, pois não existe quase nada que possa evitar que crianças surdas, com inteligência preservada, aprendam.
A função social da escola vai ao encontro das necessidades da comunidade surda, desde que ela possa se sentir parte integrante desse ambiente, não sendo excluída por ser “não ouvinte”.
Segundo Zych (2003), “somente eliminando a dicotomia entre surdos e ouvintes serão encontradas as condições necessárias para as pessoas surdas se fortalecerem e para as ouvintes saírem do medo do confronto.”
Na percepção dos surdos, bom sistema de educação é aquele que está aberto ao diálogo e apto a atender às sugestões de seus educandos, que tende a oferecer maior número de alternativas, onde o conhecimento atua para que haja equilíbrio e harmonia entre a competência intelectual e a sensibilidade emocional, favorecendo um crescimento expressivo, através de uma proposta educacional bilíngüe. (ZICH, 2003)
2.2. Bilinguismo
Quando se fala em educação do surdo, há muitas teorias pedagógicas e estudos para a compreensão de um sistema de ensino mais global. Há sempre divergências quanto ao método mais eficaz, seja em escolas especiais ou não. Os argumentos se polarizam contra a segregação e o isolamento e a favor da interação e compartilhamento entre os pares, o que favoreceria o reconhecimento e o fortalecimento da identidade surda.
Em seu artigo “Identidade e valorização do professor e da professora no processo de inclusão: desafios e perspectivas”, Margareth Diniz reflete:
O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de práticas educativas que contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a idéia de homogeneidade e de uniformização que ainda impera no campo educacional. Representa entender a educação para além do seu aspecto institucional e compreendê-la dentro do processo de desenvolvimento humano. [...] Educar para a diversidade é fazer das diferenças um trunfo, explorá-las na sua riqueza, possibilitar a troca, proceder como grupo, entender que o acontecer humano é feito de avanços e limites e que a busca do novo, do diverso que impulsiona a nossa vida deve nos orientar para a adoção de práticas pedagógicas, sociais e políticas em que as diferenças sejam entendidas como parte de nossa vivência e não como algo exótico e nem como desvio ou desvantagem.
Uma proposta educacional que tem sido defendida é a do Bilinguismo, ou seja, a aquisição da língua materna de sinais, Libras, e da Língua Portuguesa, com o desenvolvimento da leitura e da escrita. Esse aspecto leva em consideração o espaço pedagógico que privilegia a aquisição das duas línguas, o que caracteriza uma educação mais abrangente do surdo.
O bilingüismo possibilita ao surdo adquirir/aprender a língua que faz parte da comunidade surda. O trabalho bilíngüe educacional respeita as particularidades da criança surda, estabelecendo suas capacidades como meio para essa criança realizar seu aprendizado. Esta proposta também oferece o acesso à língua oral e aos conhecimentos sistematizados, priorizando que a educação deve ser construída a partir de uma primeira língua, a de sinais, para em seguida ocorrer a aquisição da segunda língua, o português (oral e/ou escrito). (DIZEU; CAPORALI, 2005)
Sendo o Bilinguismo a capacidade de usar duas ou mais línguas, podemos considerar o usuário de Libras e da Língua Portuguesa encaixado nessa condição. O surdo tem a sua língua materna, no qual se reconhece como parte integrante de uma comunidade, e por conviver numa sociedade ouvinte, vem a aquisição da outra língua na modalidade escrita. Ser usuário dessas duas línguas capacita o surdo de maneira mais completa a transitar entre a cultura surda e a cultura ouvinte, podendo ser capaz de escolher a melhor forma de comunicação considerando o contexto apresentado.
De acordo com SKLIAR (1997):
o surdo necessita de ambas as línguas com um desenvolvimento competente: a língua de sinais para sua comunicação entre os surdos e a segunda língua para integrar-se à comunidade ouvinte. Estas ideias aderem e refletem, pois, uma proposta bilíngüe-bicultural, isto é, as duas línguas no contexto da escola.
Segundo Maria Cristina da Cunha Pereira e Maria Inês da Silva Vieira (2009), “a aquisição da língua de sinais permitirá à criança surda, além do desenvolvimento linguístico, o desenvolvimento dos aspectos cognitivo e socioafetivo emocional.”
O Decreto Federal nº 5.626/2005 garantiu ao surdo uma educação bilíngue. As línguas se complementam no que diz respeito ao conhecimento mais aprofundado do mundo que o cerca: usando a língua materna que carrega sua identidade e sendo capaz de se comunicar e de se informar, na modalidade escrita, com todo o restante da comunidade ouvinte.
A proposta bilíngüe também vai permitir ao aluno surdo, construir uma autoimagem positiva, pois além de utilizar a língua de sinais como língua natural, vai recorrer à língua portuguesa para integrar-se na cultura ouvinte. O bilingüismo chama a atenção para o aspecto da identificação da criança surda com seus pares. Considerando que, a educação bilíngüe tem contribuído cada vez mais para que isso aconteça, sugerindo um novo olhar sobre a surdez, que se afasta de uma visão clínica e reabilitadora. É necessário compreender que a língua de sinais apresenta uma modalidade diferente da língua oral e torna-se uma mediadora para o aprendizado de português. Vale ressaltar, que os meios favoráveis para a educação da língua portuguesa devem ser visuais, pois facilitarão a compreensão deste aluno, sendo de fundamental importância a mudança de metodologia em sala de aula para que a surdez não seja usada como impedimento na aprendizagem.O importante então, é que seja oferecida uma educação que permita o desenvolvimento integral do indivíduo, de forma que desenvolva toda a sua potencialidade. (KUBASKI; MORAES, 2009)
O sistema do Bilinguismo enquanto política educacional é bem recente. Essa proposta se preocupa com o desenvolvimento pleno das potencialidades do surdo, proporcionando as ferramentas necessárias para uma melhor compreensão do mundo e consequente adaptação. É um processo mais complexo, estimulante e desafiador tanto para quem ensina como para quem aprende, que deve ser constantemente avaliado para se ter uma perspectiva do seu funcionamento. A educação bilíngue é uma proposta muito abrangente, que requer um planejamento pormenorizado e que os métodos sejam adaptados às necessidades dos surdos. É um caminho muito viável na aprendizagem do surdo, que pode se relacionar de uma forma mais independente com o mundo que o cerca. Dessa forma, serão formados sujeitos mais participativos não só dentro da sua comunidade, como também mais atuantes na sociedade, contribuindo para um desenvolvimento mais vasto e completo.
O objetivo do modelo bilíngüe é criar uma identidade bicultural, pois permite a criança surda desenvolver suas potencialidades dentro da cultura surda e aproximar-se, através dela, à cultura ouvinte. Este modelo considera, pois, a necessidade de incluir duas línguas e duas culturas dentro da escola em dois contextos diferenciados, ou seja, com representantes de ambas as comunidades desempenhando na aula papéis pedagógicos diferentes. (SKLIAR, 1997)
Evidentemente, na prática a situação que se apresenta pode ser um pouco desanimadora, já que muitos surdos não têm acesso à língua de sinais, e muito menos à modalidade escrita de uma segunda língua. Dentro da comunidade surda há muita diversidade também, são várias as composições familiares que entrelaçam ouvinte e surdo, o que pode dificultar a apreensão da língua materna ou da língua portuguesa. Deixar a cargo da escola, exclusivamente, esse papel de formar alunos bilíngues é uma tarefa muito difícil. Ainda mais que a escola é somente um dos ambientes em que o aluno compartilha suas experiências. Há outros espaços que podem não oferecer condições para enriquecer e solidificar essa prática educacional.
Enfim, a base educacional ainda está defasada nesse sentido, pois muitos alunos ainda não adquiriam a língua de sinais, o que inviabiliza a aquisição de uma segunda língua. O ideal é que a criança surda entre em contato com a língua de sinais o mais cedo possível, mas em termos reais esse acesso ainda funciona apenas para uma parcela reduzida da comunidade surda. Diante disso, o Bilinguismo é um modelo a ser considerado, mas necessita de um aprofundamento nas suas bases. Fatores relevantes como os econômicos, sociais e culturais devem ser levados em consideração. É de conhecimento geral que a educação enfrenta muitos problemas estruturais e pedagógicos. Quando se trata de um segmento minoritário e marginalizado, como é a comunidade surda, as dificuldades são triplicadas, pois além de espaços inadequados, há falta de políticas públicas, profissionais preparados para trabalhar com o sistema de Libras e uma falta de unificação nas propostas pedagógicas. Cabe refletir sobre o discurso proposto e sua práxis.
Portanto, a escola concebida como um organismo sociocultural vivo, coletivo, integrador e transformador, como um contexto em articulações contínuas, possui um conteúdo gerado em seu interior, que permite que o surdo, por meio de variados contatos, perceba o outro com a própria singularidade e consiga perceber-se como pessoa pertencente ao universo coletivo. É o grupo que poderá favorecer atitudes fundamentais à construção da própria identidade, na aquisição de valores como cooperação, solidariedade, compreensão e tolerância. É à escola que cabe viabilizar a expansão das atitudes e das funções criativas sendo a educação a grande alavanca no processo de transformação social. (ZYCH, 2003)
A questão do acesso à educação do surdo é crucial quando se pensa em desenvolvimento social e profissional desse sujeito. A educação inclusiva tem que ser repensada e reformulada para garantir uma eficiência e uma completude que atenda as necessidades do surdo, o que abarca a compreensão de sua identidade e de sua história. A participação da comunidade surda nesse processo é importante, já que não pode ser apenas receptáculo das decisões; ela precisa ser mais persistente e combativa na luta pelo seu direito social.
2.3. Capacitação profissional
O mercado de trabalho é quem dita as exigências e as especificidades para a ocupação das suas vagas e está sempre em mutação num ambiente bem competitivo.
Em se tratando do acesso das minorias a esse mercado, a questão se torna mais problemática devido principalmente à falta de capacitação e ao preconceito dos empregadores.
A falta de preparo e baixa escolaridade são fatores primordiais que devem ser superados para que o surdo possa ter uma oportunidade de ingressar no mercado. E retomando a discussão referente ao papel da educação escolar, deve-se refletir o papel desenvolvido pela escola no desenvolvimento profissional do surdo. A falta de comunicação não pode ser obstáculo para o surdo, daí a importância do Bilinguismo, já que o surdo deve usar os canais disponíveis para sua conquista pessoal e profissional. São temas que encontram resistência para serem levados a termo, mas imprescindíveis quando se fala em empregabilidade do surdo.
O surdo, quando bem capacitado, pode ocupar diversos postos de trabalho, inclusive aqueles que exijam funções intelectuais complexas, pois ele é capaz de produzir abstrações. Essa capacidade não deve ser menosprezada pelo fato do surdo utilizar-se de um canal de comunicação diverso.
O surdo precisa estar bem preparado para ocupar os postos que se apresentam no campo profissional. Os programas de formação profissional devem ser bem planejados para que a adaptabilidade e a produtividade estejam a favor do surdo. Tem que levar em conta a aptidão do indivíduo, a escolaridade e o preparo para desempenhar bem a função.
Oficinas laborais dentro das escolas, como também formulações mais gerais envolvendo programas governamentais, têm, desde lá, caracterizado a diversidade de práticas voltadas à formação profissional que se articula nos espaços surdos – as escolas de surdos e as diferentes instâncias dos movimentos sociais organizados como associações, clubes, ou seja, espaços nos quais foram/são organizados programas voltados para a formação profissional dos surdos. (KLEIN, 2006)
Para a superação das barreiras que se colocam no acesso ao mercado de trabalho, as oportunidades têm que ser criadas para que o ingresso se dê de forma digna. Enquanto profissional, o surdo deve ser reconhecido pelo seu valor, pela sua capacidade de realizar e de participar na construção do processo produtivo da sociedade.
A capacitação do surdo, como de qualquer outro profissional, deve ser ampla. Ele precisa executar bem as tarefas, mas não de forma mecânica. Há que se ter uma racionalização dos métodos, deve-se adotar uma postura que privilegie a ética e o exercício da cidadania.
A capacitação profissional da pessoa surda é um desafio para as escolas repensarem suas finalidades, seu currículo, suas formas de atuação. É um direito da comunidade surda se fazer presente nas discussões das políticas sociais. Tanto a esfera municipal, quanto a estadual e federal, devem estar atentas aos programas de capacitação profissional e de geração de renda a fim de que contemplem as necessidades das pessoas surdas. É um desafio à sociedade que vive cada vez mais uma realidade de exclusão social. Esta não é uma luta de uma pessoa ou de um grupo. É a luta de muitos e que para ser efetiva necessita articulação e mobilização. (CORREIA, 1990)
O acesso ao emprego é uma forma de consolidar o surdo enquanto sujeito trabalhador. Contribui, ainda, para diminuir a marginalização dessa minoria que se vê excluída ao longo do processo de educação e de empregabilidade.
O indivíduo tem que estar apto às novas tecnologias. A flexibilidade frente aos desafios que se colocam é a chave para o sucesso no quesito empregabilidade.
Segundo Madalena Klein (2006), “escolaridade, ampliação de conhecimentos, habilidades cognitivas e de gestão passam a ser alguns dos requisitos na redefinição do perfil de um “novo” trabalhador competitivo e empregável”.
2.4. Empregabilidade
A empregabilidade é um termo que envolve as habilidades e competências necessárias para a aquisição e manutenção de um emprego, de uma atividade laboral. O mercado de trabalho é cada vez mais competitivo e selecionado. As diversas capacidades são valorizadas e estão inter-relacionadas, como os quesitos técnicos, pessoais, éticos e emocionais. O diferencial de adaptabilidade pesa na balança favoravelmente quando o candidato está aberto ao aprendizado e a contribuir da melhor forma, agregando valor ao ambiente de trabalho.
A inclusão do surdo no mercado de trabalho passa por esse conceito.
A empregabilidade constitui-se, assim, numa tecnologia que conduz os indivíduos a procurarem participar desse processo, passando a almejar não mais o emprego, imediatamente, mas a “condição de ser empregável”. Os cursos de capacitação já não têm o objetivo do emprego ao final da qualificação, mas da empregabilidade do sujeito, investindo em práticas que almejem competências flexíveis. (KLEIN, 2006)
A educação técnica é primordial na construção de um bom profissional. A qualificação de um profissional surdo é complexa, porque requer recursos mais especializados, assim como educadores mais bem preparados e proficientes em Libras, capazes de passar o conhecimento de forma mais plena e eficaz. A inserção do surdo nessa área tem que ser incrementada, pois há um preconceito na contratação desses profissionais, pelo próprio desconhecimento da capacidade do surdo, que ainda é visto como incapaz.
A Lei nº 8.213/91, a chamada lei de cotas, que dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiência, veio para incentivar a contratação das pessoas que são marginalizadas e discriminadas por sua condição física. Há muitas vantagens do ponto de vista social, uma vez que ajuda a empresa na construção de sua imagem e de sua filosofia diante dos seus consumidores e da sociedade como um todo. A crença na diversidade pode melhorar o ambiente institucional, uma vez que a convivência entre os colegas ajuda no crescimento pessoal de cada um. Evidentemente há que ter um preparo, tanto do profissional a ser contratado quanto da empresa que vai recebê-lo.
A aceitação por parte do empregador é muito reticente, pois requer a quebra de paradigmas, requer uma preparação de ambiente mais favorável para a inclusão do trabalhador surdo.
A falta de conhecimento sobre a comunidade surda dificulta essa abertura. E isso não deve ser feito de maneira imposta, apenas por ser uma obrigatoriedade da lei. Tanto o empregado como o empregador têm que estar dispostos a superar esse obstáculo.
2.5. Acessibilidade
Face ao exposto, é necessário refletir sobre a acessibilidade.
A lei nº 10.098/2000, que estabelece critérios para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência, foi de grande importância para uma maior conscientização das necessidades desses indivíduos, seja na sua mobilidade ou na sua inclusão nos espaços de lazer ou de trabalho. Entretanto, não basta a legislação dispor sobre o tema para que ele seja resolvido. É apenas um ponto de partida. Muitas restrições ainda são sentidas, uma vez que os surdos nem sempre estão bem preparados para desempenhar bem seu papel, por uma deficiência educacional. Além disso, devido a essa visibilidade recente, muitas organizações estão despreparadas para incluir, nesse caso específico, o surdo.
A sociedade é cada vez mais multicultural, a diversidade está presente em todos os âmbitos. O surdo sinalizado é um dentre tantos “diferentes”, sobretudo por usar um canal de comunicação diferenciado. O caminho é quase sempre tortuoso, pois passa por uma educação de qualidade, seja técnica ou de nível superior, e o acesso ao mercado de trabalho. A conquista dessas etapas favorece a interação social e consolida a construção e participação do sujeito surdo em sua comunidade. É fundamental que esses indivíduos possam dar continuidade a esse crescimento, passando sua experiência e seu conhecimento aos que ainda estão em fase escolar, servindo como um estímulo para transpor essa barreira que muitas vezes impede o avanço e a efetiva inclusão dos surdos.
2.6. O intérprete de Libras
Figura fundamental quando se trata da comunidade surda e suas necessidades, o intérprete de Libras é o profissional capaz de contribuir efetivamente na boa comunicação entre o surdo e o ouvinte. Em busca por mais espaços, os canais de comunicação são responsáveis pelo entendimento entre os diferentes.
Chamado de mediador, ponte, elo e facilitador da comunicação, o intérprete está sendo mais requisitado recentemente devido a ações governamentais e não governamentais direcionadas ao público surdo.
A visibilidade que a comunidade surda vem obtendo tem se tornado questão de discussão e pesquisas. A inclusão e ou integração é pauta de reflexão nas mais diversas esferas que compõem esse universo.
Enquanto ferramenta imprescindível nas conquistas sociais e profissionais do surdo, o intérprete torna possível efetivamente a participação dele em eventos culturais e educacionais, dentre outros.
Esse profissional vai ser um dos instrumentos que torna a noção de pertencimento, do ponto de vista do surdo, mais patente. Ele vai integrar a comunidade surda e a comunidade ouvinte, sendo ponte e referência para a compreensão de mundo de cada um.
As habilidades e capacidades necessárias para um bom exercício da profissão dizem respeito a uma boa formação, ao conhecimento profundo das línguas que são suas ferramentas de trabalho, à sensibilidade e ao bom senso na sua atuação.
Ao se pautar pela ética e pela imparcialidade, o intérprete deve estar em constante atualização, tornando-se uma figura dinâmica e atenta às variações decorrentes dessa função.
O Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, em seu capítulo V, trata da formação do tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa. A Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 20101, que regulamenta a profissão e dá parâmetros para o exercício dessa profissão, estabelece em seu art. 7º que “o intérprete deve exercer sua profissão com rigor técnico, zelando pelos valores éticos a ela inerentes, pelo respeito ao ser humano e à cultura do surdo”.
A legalização da profissão do intérprete traz consigo além dos direitos e deveres desses profissionais, o reconhecimento e a formação necessária (cursos de graduação e capacitação), proporcionando assim o acesso dos surdos à informação e uma participação efetiva na sociedade, bem como um atendimento digno em todos os estabelecimentos públicos, o que é direito de todos os cidadãos brasileiros. (OLAH; OLAH, 2010)
Como parte integrante dos mecanismos de acessibilidade, o intérprete precisa ter sua importância reconhecida e ser presença constante nos contextos sociais que promovam a integração do surdo.
O presente trabalho procurou trazer à reflexão os aspectos que envolvem a comunidade surda em sua caminhada para o despertar. Considerando o surdo como sujeito ativo na construção da sua identidade e cultura, o tema foi analisado seguindo alguns conceitos relevantes.
Enquanto sujeito social, o surdo precisa trilhar seu caminho levando em consideração os aspectos que o conduzem à inclusão.
O conceito de alteridade trouxe uma grande contribuição para o assunto, assim como as variáveis contidas no “pertencimento” e no “estranhamento”, que vão ser importantes para uma transformação na forma de pensar e de agir da comunidade surda, tendo como objetivo a conquista de seus direitos e sua efetiva participação na sociedade.
A percepção desse processo é fundamental para que o surdo possa sair de si mesmo, num certo distanciamento, para uma reflexão mais abrangente de seu papel como corresponsável pela transformação da realidade, a fim de não se deixar contaminar pela apatia e pela aceitação fácil do que está posto.
Além de se ver como sujeito atuante e transformador, o surdo necessita de que os acessos sejam construídos, em parte por ele mesmo e em parte pelo poder público.
Toda a jornada do surdo se inicia e deve se estender por um ponto crucial: a educação. Muito foi dito sobre a importância da Língua Brasileira de Sinais, sobre a necessidade de sua aquisição ser mais difundida, sobre a inaceitabilidade de nos dias atuais condenar um surdo a não ter sua língua materna por desconhecimento ou descaso do poder público. A Libras proporciona a noção de pertencimento, a compreensão em sentido amplificado do mundo que o cerca.
A acessibilidade é um fator que deve ser considerando como preponderante para a participação mais efetiva da comunidade surda, assim como a capacitação profissional e a empregabilidade. Os espaços devem ser conquistados, seja no ambiente familiar, educacional, profissional e social. O desenvolvimento social pleno, a independência de transitar pela sociedade e de se fazer entender, só é possível quando se traz à reflexão pontos como a identidade do surdo, a sua consciência do pertencimento a uma comunidade, o reconhecimento de suas capacidades e habilidades, que se conectam com o saber comunicar, ao ter sua própria língua e ser capaz de se comunicar com os usuários de outra língua, fazendo uso do Bilinguismo.
Com o objetivo de evitar a marginalização e a discriminação, é necessário um aprofundamento na reflexão do universo que circunda o surdo e sua comunidade, é preciso estar aberto para uma compreensão mais ampla do surdo, seus direitos e deveres. A partir do que está constituído, a comunidade surda deve se posicionar e enfrentar os obstáculos, fazendo com que sua voz seja ouvida e novas perspectivas sejam colocadas em destaque na solidificação de suas posições e na construção de um caminho de mais integração.
Fundamental é a importância de se ter a comunidade como fator agregador, como um espaço onde os sujeitos possam se relacionar, discutir os objetivos em comum. Entretanto, não é para ser um grupo fechado, mas sim um grupo motivado, unido, que luta pelos direitos, que busca espaços e se articula em torno de interesses comuns, trocando experiências e se fortalecendo continuamente.
Ao surdo cabe a tarefa de assumir uma posição de discernimento com interpretação crítica para ter a capacidade de produzir sua cultura, a partir da própria vivência e do compartilhamento das experiências dentro da comunidade surda.
REFERÊNCIAS
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[1] Juarez Dayrell é professor da Faculdade de Educação da UFMG. Trecho do artigo O jovem como sujeito social, publicado na Revista Brasileira de Educação 43, 40 Set /Out /Nov /Dez 2003 nº 24. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a04.pdf >
[2] Ana Lúcia Amaral é Procuradora Regional da República, mestre em Ciência Política pelo Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo. Disponível em <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Pertencimento>
Bacharel em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. Pós-graduação feita na Universidade Cândido Mendes. Servidora do Ministério Público do Estado de Minas Gerais<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRES, Denise Rosa. Considerações sobre a comunidade surda: aprendendo a despertar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52352/consideracoes-sobre-a-comunidade-surda-aprendendo-a-despertar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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