ANTÔNIO CESAR MELLO
(Orientador)[1]
RESUMO: O presente trabalho aborda a violência familiar sistêmica, violência doméstica e familiar, e legítima defesa antecipada. Por se tratar de situações onde muitas vezes mulheres não conseguem ter reação no momento da agressão sofrida, só vindo a ter depois em momentos de descanso do agressor, a presente tese é bastante discutida, pois para a doutrina tradicional, crime é toda ação típica, antijurídica e culpável. Porém, em algumas situações previstas no ordenamento jurídico, apesar do fato ser ilícito, não será punível por estar amparado por causas excludentes de ilicitude. A visão sistêmica possibilita analisarmos cada caso como único e sermos justos, respeitando as lutas diárias de cada uma dessas mulheres, levando em consideração todo contexto e complexidade do fato, para assim obtermos a absolvição da ré (vítima).
Palavras-Chave: Violência Familiar Sistêmica, Violência Doméstica, Legitima Defesa Antecipada.
ABSTRACT: The present work deals with the systemic family violence, domestic violence, family, and self defense. For the case of situations where often women can't have a reaction at the time of the aggression suffered, only been after in times of rest of the attacker, this thesis is quite disputed because for the traditional doctrine, crime is all typical action antijurídica and guilty. However, in some situations provided for by the legal system, despite the fact be illicit, shall not be punishable for being supported by exclusive causes of objections. The systemic view allows you to analyze each case as unique and be fair, in accordance with the everyday struggles of each of these women, taking into account all context and complexity of the fact in order to obtain the acquittal of the defendant (victim).
Key Words: Systemic Family Violence, Domestic Violence, Self-defence Anticipated
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Violência familiar de gênero. 3. Violência familiar sistêmica. 4. Violência doméstica e familiar. 5. Legítima defesa e legítima defesa antecipada. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
É comum lermos ou vermos noticias sobre violência familiar de gênero, pois infelizmente esta ocorre de maneira habitual e reiterada. Diante da complexidade que envolve o contexto familiar, a doutrina vem se utilizando do termo “violência sistêmica”, quando se refere a violências habituais e reiteradas.
A Lei Maria da Penha trouxe mecanismos que possibilitam que mulheres possam denunciar esses casos de agressões, cuja finalidade é cessar essa violência. E quando elas não têm como recorrer ao poder estatal? Quando as vítimas estão desassistidas! Vários são os fatores que devem ser levados em consideração para verificarmos se está havendo eficácia no amparo estatal, para proporcionar uma segurança, devolver a paz social, a integridade moral e física a mulher vítima de violência.
Geralmente quando falado em violência doméstica, paramos nas denúncias, prisão do denunciado ou com pesar ao noticiar um feminicídio! O Feminicídio é uma realidade cruel, para as vítimas de violência doméstica. Muitas mulheres não suportam mais as reiteradas agressões, ameaças de morte, e a falta de uma punição justa aos agressores, e em um momento de desespero para salvar a própria vida, acabam assassinando seus agressores, enquanto estes estão descuidados, dormindo... antes que eles possam as matar.
Como condenar essa mulher por homicídio doloso, se tudo o que ela queria era viver? Parar de apanhar, cessar as dores de seu corpo e sua alma.
As praticas diárias mais noticiadas entre as vítimas são: ameaças, intimidações, violência patrimonial, exibição de armas, insultos e ofensas à honra objetiva e subjetiva, além dos atos de agressão física (vias de fato, lesão corporal, tentativa de feminicídio).
Por que não ter um julgamento justo, onde se leva em consideração o sofrimento físico e psicológico de anos dessa mulher e a omissão do Estado com a preservação da vida dela? Na maioria das cidades brasileiras não têm delegacias especializadas para acompanhar e proteger essas mulheres! Por muitas vezes é matar ou morrer.
2. VIOLÊNCIA FAMILIAR DE GÊNERO
Aproveitando da definição feita por Alves (2005, apud Machado e Gonçalves, 2003), violência doméstica é “qualquer ato, conduta ou omissão que sirva para infligir, reiteradamente e com intensidade, sofrimentos físicos, sexuais, mentais ou econômicos, de modo direto ou indireto”.
Bom, é comum que homens recorram à agressão verbal e/ou física, quando contrariados. Isso por serem valorizados pela força e agressividade. Muitos ainda acham que os homens são superiores às mulheres, ou que eles têm total domínio sobre suas vidas, e que a maneira mais eficaz de cessar um conflito com elas, é apelar para a violência. Em muitos casos onde as agressões acontecem, para justificar ou minimizar a responsabilidade de quem cometeu tal ato, atribuem as ações praticadas por uma pessoa à biologia ou, a quem foi vítima da agressão. Outro discurso comum é culpar o uso de álcool, drogas ou o ciúme como causa da violência.
A violência familiar de gênero foi tratada pela primeira vez no Brasil de forma específica, por meio da publicação da Lei n° 11.340 de 2006, apelidada como “Lei Maria da Penha[2]”, em homenagem a uma das tantas vítimas da agressão. Antes disso já previam regras de direitos humanos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher que foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução n° 34/180, de 18 de dezembro de 1979, sendo adotada no âmbito do sistema global, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, e os direitos das mulheres na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.
A Lei “Maria da Penha” é uma conquista muito grande no âmbito da legislação brasileira, pois é específica para determinar políticas públicas e punições distintas em razão deste quadro de violência.
Torna-se necessário diferenciar a “violência de gênero” da “violência doméstica”. A relacionada ao gênero envolve a questão da histórica cultura machista e do poder de um gênero em relação ao outro, geralmente, do masculino sobre o feminino. Já a doméstica, é mais ampla e aborda um quesito espacial, ou seja, é qualquer forma de violência praticada no âmbito do lar, da coexistência ou de um grupo familiar privado, assim não implica em destacar só a mulher como vítima, mas qualquer um dos vulneráveis que estejam sendo subjugados dentro de seus lares.
O artigo 7º da Lei n° 11.340/06, traz as formas de violência a serem coibidas contra a questão de gênero no ambiente familiar, são elas: “à violência física; a violência psicológica; a violência sexual; a violência patrimonial e a violência moral”.
Por séculos acreditou-se que não se podia interferir nas relações e em conflitos ocorridos na intimidade de cada família, que a vida familiar era particular e cada homem teria o poder e dever de manter a ordem sobre a sua, mesmo que para isso tivessem de usar da força.
Quando falamos em visão sistêmica devemos levar em consideração o fato em si, o contexto da violência familiar, como ocorreu e onde ocorreu. Um ato de violência tem “autor” e “vítima”. O contexto que possibilita o fato tem influência social decorrente de retroalimentação da cultura de violência que carregamos conosco. Portanto como explica a psicoterapeuta especializada no assunto, Telma Lenzi: “(...) ao incluirmos a noção da complexidade das causas, estamos dizendo “NÃO” à simplificação e ao reducionismo”.
Não existe um perfil de vítima e agressor, tampouco padrões absolutos de comportamentos. Temos que ir ao cerne das relações familiares para compreendê-las. E na prática sabemos que pode haver muitas configurações. O contexto de cada família onde ocorre a violência é essencial para identificar as discriminações de gênero que estão envolvendo as agressões reiteradas.
No âmbito doméstico a violência é cruel, pois o agressor conhece intimamente a vítima. Ele sabe exatamente o que fazer para manipulá-la e fazer com que a mesma acredite ser merecedora do acontecido, “por ser vagabunda, entre outros xingamentos” ou que foi apenas um caso isolado e não acontecerá mais e/ou que irá mudar. Com tudo as agressões não param e tendem a ser praticadas de forma gradativas, continuas (nos termos do artigo 71 do Código Penal brasileiro) e habitual. E com isso o medo se instala e dificilmente haverá denuncia um dia.
Na visão de Maria Berenice:
É difícil denunciar quem reside sob o mesmo teto, pessoa com que tem um vínculo afetivo e filhos em comum e que, não raro, é responsável pela subsistência da família. A conclusão só pode ser uma: As mulheres nunca param de apanhar, sendo a sua casa o lugar mais perigoso para ela e os filhos. (DIAS, 2007, p.17).
Estas violências não são praticadas apenas em relacionamentos familiares, mas também nos intrafamiliares. Muitos ex-companheiros não aceitam o fim de um relacionamento... e na tentativa de “boicotar” a vida social, amorosa ou no tentamento de uma reconciliação, mediante recusa, acabam se excedendo partindo para lesão corporal, e/ou até chegando ao feminicídio.
As penas para lesão corporal são bem ínfimas se comparadas com o que a vítima sofreu, e o denunciado já sai em regime aberto. As penas são de 06 (seis) meses a um ano de detenção para lesão corporal simples (agressão que causa vermelhidão, desmaio, dores, etc) e entre 01 (um) e 05 (cinco) anos de reclusão para lesão corporal grave (ações que acabam fazendo com que a vítima não seja mais capaz de realizar tarefas simples sejam em casa, de laser e até mesmo de trabalho, por mais de 30 dias, ou que coloque sua vida em risco, além das que possam causar debilidade permanente). Vale ressaltar que a grande parte dos denunciados alega terem praticado a violência em legitima defesa.
Um caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia foi o recurso de apelação 00135451820148220501, no qual o Acórdão por unanimidade deu provimento parcial à apelação nos termos do voto da relatora, não aceitando a tese de legítima defesa, por parte do denunciado.
Ementa: Apelação criminal. Violência doméstica. Lesão corporal. Materialidade e autoria comprovadas. Legitima defesa própria. Requisitos. Não comprovação. Inexigibilidade de conduta diversa. Inocorrência. Condenação mantida. Ameaça. Prova. Palavra da vítima isolada. Dúvida. In dúbio pro reo. Absolvição. Recurso parcialmente provido. 1. Afasta-se as teses de legítima defesa própria e inexigibilidade de conduta diversa quando o recorrente não se desincumbe de provar todos os seus requisitos legais, notadamente quanto à primeira, a injusta agressão, atual ou iminente e o uso moderado dos meios necessários. 2. Mantém-se a condenação pelo crime de lesão corporal quando as provas carreadas aos autos se mostrarem harmônicas nesse sentido, notadamente pelo seguro e coerente depoimento de vítima, laudo de lesão corporal e demais elementos de provas. 3. Absolve-se o recorrente quanto ao crime de ameaça quando as provas carreadas para os autos não forem suficientes para sanar a dúvida quanto à existência do fato. 4. A palavra da vítima a que se atribui relevante valor probatório para a condenação é aquela que, necessariamente, vem acompanhada de outros elementos de provas, não bastando sua versão solteira em simples confronto com a versão do réu. 5. Recurso parcialmente provido. (Apelação, Processo nº 0013545-18.2014.822.0501, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, 2ª Câmara Criminal, Relator (a) do Acórdão: Desª Marialva Henriques Daldegan Bueno, Data de julgamento: 10/08/2016)
(TJ-RO - APL: 00135451820148220501 RO 0013545-18.2014.822.0501, Relator: Desembargadora Marialva Henriques Daldegan Bueno Impedimento: Desembargador Daniel Ribeiro Lagos, Data de Julgamento: 10/08/2016, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 22/08/2016).
É sabido que o feminicídio é um crime anunciado e que na maioria dos casos a vítima já vinha recendo ameaças de morte e sofrendo violência doméstica. Por isso, é importante que tenhamos consciência de que, quem ameaça pode matar. Não podemos acreditar que a ameaça seja apenas para intimidar, pois na verdade ela é um desejo que já vem sendo externado pelo agressor, que poderá ser cumprido a qualquer momento.
4. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
No exato momento em que a agredida procura proteção estatal, o sistema passa a ter responsabilidade sobre ela, pois o estado deve proteger e acolher com urgência as vítimas de agressão.
Porém a oferta dessa proteção ainda é insuficiente, por falta de estrutura para acolhê-las, principalmente nas cidades pequenas, nos interiores brasileiro, e com isso, essas mulheres voltam para suas casas sujeitas a novos ataques.
Um dos principais aspectos da Lei Maria da Penha, são as medidas protetivas de urgência. Elas foram criadas como mecanismo rápido, de fácil acesso e proteção imediata às mulheres. No entanto, a burocracia, o tradicionalismo jurídico na aplicação, e até a falta de delegacias especializadas, têm sido obstáculos para o cumprimento do previsto na legislação. Para as autoras, a postura do Poder Judiciário é protelatória, pois “ignora o caráter urgente da medida e sobrecarrega as vítimas com um ônus argumentativo e probatório” (DINIZ; GUMIERI, 2016, p. 215).
A preocupação com a prova, elemento para o oferecimento da denúncia, é uma postura inadequada nos casos dos pedidos de medidas protetivas, pois estas se revestem de caráter urgente e protetivo e não de instrumentalização para o processo penal (CAMPOS, 2016).
Em 2013 todas as capitais brasileiras se propuseram a criar politicas publicas, para proteger as agredidas e punir os agressores, contudo, são poucos os pequenos municípios que conseguiram ter essa estrutura. A maioria das cidades pequenas não tem nem delegacias especializadas, tampouco políticas publicas. Há um grande descaso por parte dos gestores em atender a mulher e isso faz com que continuem desassistidas sem saber onde buscar ajuda.
Principalmente nas pequenas e pacatas cidades, as mulheres são criadas para servir e os homens para serem servidos. Nestas sociedades machistas quando uma mulher ousa a querer sair de uma relação conflituosa, e o homem não aceita, e ela paga com a vida. Por medo dessas constantes ameaças, muitas vivem por muitos anos dentro de relacionamentos abusivos onde o ciclo da violência aumenta a cada dia.
O dano causado pela não concessão de uma medida protetiva ou pela concessão não eficaz, pode fazer com que mulheres vítimas de violência doméstica, desamparadas pelo Poder Público, tenham que cessar as agressões por si só, como no caso de Ana Raquel dos Santos Trindade, amplamente noticiado, mostra as consequências da visão negligente e burocrática do sistema de justiça em casos de violência contra a mulher. Mesmo tendo procurado a Delegacia da Mulher de Florianópolis (SC) por mais de dezoito vezes e registrado boletins de ocorrência contra seu ex-namorado, nada foi feito por qualquer instituição do sistema (Delegacia da Mulher, Ministério Público, Defensoria e Poder Judiciário). Como consequência, Ana Raquel, em um ato de desespero, matou o ex-namorado com mais de dez tiros. Ou seja, a omissão de todas as instituições de justiça, coletiva e individualmente, foi responsável pela atitude que levou Ana Raquel a matar o ex-companheiro. (UOL. 2016).
A legítima defesa, causa de exclusão da ilicitude tratada no Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei n° 2.848 de 1940, no seu artigo 25, caput, diz: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente[3], a direito seu ou de outrem”.
Desta forma, a justificante fixa-se na relação de necessidade de garantir-se a conservação humana, possibilitando apenas condições de “equiparar” forças entre o agressor e o agredido, já que este deve se valer de meios necessários para repelir a injusta agressão, mas moderadamente.
Por se tratar de uma situação em que, muitas vezes, a mulher não consegue ter reação no momento da agressão, só vindo a ter depois, num momento de “descanso” ou “distração” do agressor, a legítima defesa antecipada é muito questionada, pois se caracteriza quando a vítima antecipa-se a um ataque futuro e certo de seu agressor, o atacando antes, por saber que não terá meios de suportar novos ataques. E de vítima a mulher passa a ser ré. A referida tese se deve ao fato de que a ré, além de ser obrigada a defender-se, antecipando-se, para salvaguardar sua vida, ainda teria que se submeter a um processo criminal.
Os réus perdem assim tese absolutória preciosa, máxime diante da ainda, por incrível que pareça, rejeição de alguns juízes em quesitar a inexigibilidade. E tais réus são, aqui, quase-vítimas duas vezes: porque quase foram mortos e porque, ao se defenderem como podiam, adquiriram tão indesejável status processual. (DOUGLAS, 2003, p. 1).
Um suporte a tese, é importe conhecer a teoria da responsabilidade, proposta por Cluas Roxin, penalista alemão, onde ele substitui culpabilidade por responsabilidade, para complementar o injusto na teoria do delito. Nas palavras de Moreira et al. (2008, p. 16)
(...) consiste em acrescentar um novo conceito à culpabilidade, aproveitando a tradicional culpabilidade e inserindo a necessidade de prevenção especial e geral positiva, ou seja, apesar do sujeito ter praticado uma conduta típica e ilícita, não haveria a necessidade de ser responsabilizado, ficando este livre da sanção penal (por prevenção especial e prevenção geral), pois seu ato não o colocou a margem da sociedade. Desta forma, a própria sociedade repele a aplicação da punição. Por conseguinte, a necessidade de prevenção geral positiva é abortada, partindo da análise do caso específico, da verificação da falta de responsabilidade da inexistência de maus exemplos sob o prisma do funcionalismo.
De forma que não seria necessário aplicar uma sanção penal, quando apesar de ter cometido um ato delituoso o agente não precisar ser ressocializado. Já que esta é a principal função da pena. Para mais, a falta de punição não trará maus exemplos para a sociedade tendo em vista que só cometeu o ato delituoso devido a uma situação especifica.
Para a maioria doutrinária, qualquer atuação depois de cessada à situação de perigo proveniente da agressão injusta é caracterizada como vingança, a qual não pode ser tolerada pelo Direito Penal sob o manto de justificante. Porém, parte da doutrina, acredita que, poderá sim ser justificada a legítima defesa antecipada em casos remotos, quando ficar constatado que o agredido não teria qualquer outro meio para defender-se e seja indispensável à conservação da espécie, por ser a única forma de se defender. E uma vez que a na agressão a condição para a legítima defesa antecipada, o evento é futuro e certo. Certeza essa que decorre das particularidades de cada caso, a serem analisadas de acordo com os ensinamentos da Teoria da prova, que se inicia com as ameaças (mais aviso que ameaça) e finaliza no exercício da defesa antecipada em um meio absolutório.
É preciso bom senso, na hora de analisar a legítima defesa antecipada, pois:
Assim, como o estado puerperal não é compreendido cronologicamente, mas psicologicamente, a atualidade ou iminência da agressão não deve ser pesada friamente, ou contada apenas com um cronômetro. É preciso, sempre, bom senso. Diga-se de passagem, a razoabilidade aqui demandada é o aspecto material de direito constitucionalmente assegurado, qual seja o due process of law (art. 5º, LIV, CF). Devemos, pois, interpretar a iminência da agressão não só com o auxílio de cronos mas também de logos. (DOUGLAS, 2003, p. 1).
Francisco Dirceu Barros levou a Júri, o caso de Severina, que contratou um matador para ceifar a vida do próprio pai, por quem sofreu inúmeros abusos durante anos. Ela chegou a ir a uma delegacia denunciá-lo, mais o delegado não acreditou e ela teve que voltar para a casa com o pai.
Diz ela:
Antes disso, eu ainda procurei os meus direitos, mas perdi. Há uns 15 anos fui à delegacia, mas ouvi o delegado falar para eu ir embora com o velhinho (o pai), que era uma boa pessoa. O homicídio foi no dia 15 de novembro de 2005. No cemitério já tinha um carro de polícia me esperando. Na cadeia passei um ano e seis dias. Depois do julgamento, fiquei feliz. “Agora, quero viver e ficar com meus filhos (2011)”.
Em casos de violência doméstica a palavra da vítima merece ser acreditada, pois tais violências ocorrem em sua maior parte, sem testemunhas e reiteradamente. Vale ressaltar que essa credibilidade não é uma garantia absoluta, de modo que para que ela se mantenha hígida é necessário que a versão da vítima encontre o mínimo amparo em outras provas dos autos. Quando a vítima se fia na proteção do Estado e este permanece inerte ou ineficaz. Não se pode cobrar que a agredida após ver a inércia estatal, aposte sua vida, esperando a Policia dessa vez salvar sua vida. Há de convir que o meio necessário às vezes possa ser a antecipação suficiente da resposta defensiva.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contradição que existe entre a realidade social e o ordenamento jurídico conduz a situações excepcionais, ocasionando uma busca incessante do operador do direito, do consenso entre os fatos sociais e a norma legal. Desta forma várias teses foram criadas para solucionar essa divergência. De modo, que a “legítima defesa antecipada” foi à solução encontrada mais razoável e justa, para a mulher que é injustamente agredida, e, ao mesmo tempo, está órfã da proteção estatal, até pelo fato de o Estado não ser onipresente, por vezes deixa pessoas desprotegidas, o que atribui à mulher o direito de lutar pela sua própria vida, ou seja, o direito dela estar viva, mesmo que seja necessário tirar a vida de outrem que injustamente a agride.
Não podemos aceitar que uma mulher que não têm meios a recorrer, que estar desamparada pelos órgãos de combate a violência doméstica e familiar, sem ter onde pedir ajudar, com pouca informação sobre seus direitos seja julgada por homicídio doloso. A visão sistêmica possibilitar analisarmos cada caso como único e sermos justos, respeitando as lutas diárias de cada uma dessas mulheres. Esses casos já são merecedores de legítima defesa seja antecipada ou qualquer outra expressão semelhante, pois para estar assegurado pela legítima defesa deve haver agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, agressão esta cessada com o uso moderado dos meios necessários, moderação esta que se é questionada tanto na escolha quanto nos meios utilizados de defesa.
Por tanto, para que a tese seja aceita nos casos de violência familiar sistêmica e consequentemente obter a absolvição, torna-se necessária a demonstração do conjunto de circunstâncias que justifique a conduta da ré, a título de exemplo: a certeza da agressão futura e certa, ausência de proteção estatal, que tinha motivos bastantes para proceder em legítima defesa antecipada, impossibilidade de suportar certos riscos, procedendo preventivamente em casos extremos. O evento deve ser analisado diverso das demais situações de legítima defesa, pois se trata de uma nuance sistêmica, ou seja, há vários aspectos a serem analisados, como o medo de procurar as autoridades e não ser suficientemente protegida e com isso intensificar as crises com o agressor.
Os juízes togados, mais cautelosos na interpretação da lei, para não feri-la, podem repensar a interpretação dos requisitos da defesa legítima de uma pessoa exercendo, como pode, o sagrado direito de se proteger.
Ainda que não se considere a violência sistêmica uma justificativa a legítima defesa antecipada, diante das particularidades, cabe aceitar que, se a violência é contínua e/ou habitual e, a mulher, no momento da injusta agressão, não tem condições de repeli-la, mas consegue logo depois, quando o agressor se distrai, justificaria causa exculpante da conduta.
7. REFERÊNCIAS
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DINIZ, D.; GUMIERI, S. Implementação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha no Distrito Federal entre 2006 e 2012. In: PARESCHI, A. C. C.; ENGEL, C. L.; BAPTISTA, G. C. (Org.). direitos humanos, grupos vulneráveis e segurança pública. Brasília/DF: Ministério da Justiça, 2016. (Coleção Pensando a Segurança Pública, v. 6). p. 205-231.
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MERLINO, Tatiana. No dia da mulher, nada a comemorar. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2018.
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1. Professor do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins; Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Orientador deste artigo de conclusão de curso;
[2] Maria da Penha Maia Fernandes é o marco mais importante da história das lutas feministas brasileiras. Em 1983, enquanto dormia, recebeu um tiro do então marido, Marco Antônio Heredia Viveiros, que a deixou paraplégica. Depois de se recuperar, foi mantida em cárcere privado, sofreu outras agressões e nova tentativa de assassinato, também pelo marido, por eletrocussão. Procurou a Justiça e conseguiu deixar a casa, com as três filhas. Depois de um longo processo de luta, em 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 11.340, conhecida por Lei Maria da Penha, que coíbe a violência doméstica contra mulheres.
[3] Atual é a que está ocorrendo, ou seja, o efeito ataque já em curso no momento da reação defensiva. [...] A agressão pode ser iminente, isto é, que está prestes a ocorrer. Nesse caso a lesão ainda não começou a ser produzida, mas deve iniciar a qualquer momento. (CAPEZ, 2010, p. 65).
Bacharelanda do curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins. Palmas - TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Júlia Milhomem. Legítima defesa antecipada em casos de violência familiar sistêmica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52391/legitima-defesa-antecipada-em-casos-de-violencia-familiar-sistemica. Acesso em: 23 dez 2024.
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