WÂNIA JAGUARACY DE SENA MEDRADO[1]
(Orientadora)
RESUMO: O presente trabalho tem como tema a questão da constitucionalidade do reconhecimento das uniões poliafetivas sob a ótica do ordenamento brasileiro, no qual se busca compreender a real necessidade de conferir a tais relações regulamentação própria, reconhecendo-as como situações de fato dentro da sociedade. Quando se fala em relação poliafetiva, é importante diferencia-la das relações de concubinato às quais são constituídas por pessoas impedidas de casar, sem haver entre tais pessoas as ideias de honestidade de transparência que permeiam as relações poliafetivas. Na hipótese de se reconhecer o registro de tais uniões nos Tabelionatos de Notas deverão ser observados os impactos sociais decorrentes de tal permissão e as condições em que se encontram a sociedade que vai reconhecer tal regulamentação. A metodologia aplicada foi a bibliografia, tendo como técnica aplicada a coleta de dados em documentos escritos, como doutrinas, jurisprudências, leis, sendo realizada em caráter explicativo e exploratório.
Palavras-chave: Casamento, União Estável, Poliamorismo, Concubinato.
ABSTRACT: The office has as its theme the constitutionality of the recognition of the polaustrativos informants from the point of view of the Brazilian organization, there is no way to find an opportunity to give a suffi[2]cient power of retribution, recognizing them as actual occurrences within the society. When it comes to the polyphoretic, it is important to differentiate between concubinage relations and people who are not married, without those with ideas of honesty of transparency that permeate police relations. The case of the recognition of recordings in the table should be observed the providing certificates in the cancellation has not been the status in the risk is the such stan is such as sneakers are such the tao is not such sort. Applied methodology was a bibliography, based on a collection of data in written documents, such as doctrines, jurisprudence, laws, being carried out in an explanatory and exploratory character.
Keywords: marriage, stable union, polyamorism, concubinage
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Aspectos Históricos da Origem e Evolução do Conceito de Família. 3. Casamento e União Estável. 4. O Poliamor. 4.1 Diferença Entre União Poliafetiva e Concubinato. 5. Família, Moral e Ética. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a constitucionalidade do registro de uniões poliafetivas no Brasil, abordando os delineamentos históricos da origem da família e do casamento até chegar ao modelo atual de família, o qual vem sendo aceito e regulamentado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Para que seja possível abordar tal questão é necessário um estudo acerca da evolução de conceitos empregados no direito de família, observando os aspectos que influenciaram as alterações dentro dos modelos familiares e no casamento, partindo-se uma sociedade brasileira patriarcal, influenciada pelos modelos de família, romana, germânica e canônica, até se chegar ao momento histórico em que foi reconhecida a igualdade entre homens e mulheres e o seu direito de dissolver o matrimônio por sua livre vontade.
Além disso, é importante tecer considerações acerca da das alterações conferidas por leis esparsas posteriores ao Código Civil de 1916, que serviram de base para a aprovação do Código Civil de 2002 e das inúmeras inovações trazidas pela Constituição Federal, quando de sua promulgação em 1988, trazendo numerosas alterações ao Direito de Família Brasileiro.
Faz-se mister diferenciar alguns institutos tais como o concubinato e o poliamorismo, os quais tem em sua essência características completamente distintas e de grande importância para conferir ao poliamorismo um tratamento diferenciado, posto que pressupõe honestidade e transparência entre as pessoas que compõem tal união.
Este tema carrega consigo imensa responsabilidade, uma vez que tal temática chega a confrontar-se com preceitos de ordem moral e religiosa que informaram a sociedade e o Direito de Família, desde a formação das primeiras entidades familiares, às quais, inicialmente, se constituíam por meio da união de pessoas que não repousava na necessidade de procriação ou de afeto, mas com enfoque na religião e nos cultos praticados.
Demais disso, será analisada a decisão do Conselho Nacional de Justiça (PP 0001459-08.2016.2.00.0000) cuja maioria dos votos de seus Conselheiros conferiram a impossibilidade de os Tabelionatos de Notas brasileiros realizarem a escritura pública de relações poliafetivas, abordando as controvérsias levantadas nos votos que ensejaram tal decisão.
Diante disso, busca-se compreender a necessidade de proteção jurídica a tal forma de convivência, uma vez que amplamente relacionado a questões patrimoniais e afetivas que, já são conferidas a outras formas de se estabelecer uniões, às quais lentamente foram surgindo dentro da sociedade e ganhando espaço até surgir a real necessidade de regulamentação.
2. ASPECTOS HISTÓRICOS DA ORIGEM E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA
A evolução do conceito de família ao longo do tempo teve grande importância para a garantia dos valores constitucionais atualmente reconhecidos, tais como a igualdade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade, sobretudo quando se verifica o reconhecimento de modelos familiares que não condizem com aquele inicialmente reconhecido com exclusividade pelo Direito Civil Brasileiro.
Segundo Pereira (2018), existem duas linhas de pensamento seguidas pelos autores que procuraram investigar a origem e formação da família: a primeira baseada em um tipo familiar “matriarcal” e “poliândrico” e a segunda relativa a um modelo “patriarcal” e “monogâmico”, o qual em sua visão seria mais racional e aceitável, uma vez que este considera ser bastante improvável reconhecer a existência de um tipo familiar em que a mulher estaria reservada à direção lar, conforme relatos de Engels (1984), que traz a ideia de organização matriarcal da família em um primeiro momento histórico.
A segunda linha de pensamento explanada por Pereira (2018), abordava uma promiscuidade anterior à existência de um tipo familiar “poliândrico”, que teria como base a presença de vários homens para uma só mulher ou, ainda, de matrimônios em grupos de alguns homens com algumas mulheres. Essa corrente foi reconhecida por outros doutrinadores que tomaram por base, dentre outros, os escritos de Morgan (1877) e Engels (1984).
Assim, nas palavras de Paulo Nader:
Cogita-se, embora sem rigor científico, do matriarcado como sistema social primitivo, que existira após uma fase de promiscuidade social e antes do patriarcado. Em tal regime, o governo familiar teria sido exercido pela mulher. Por ela se registrava a descendência e a sucessão. A ideia prevalente entre os antropólogos e sociólogos, ao final do segundo milênio, era que o matriarcado como fenômeno social generalizado não chegou a se institucionalizar. Dentro do matriarcado teria havido tanto a poliandria (vários homens para uma mulher) como a monogamia, fase em que a mulher se unia apenas a um homem. (NADER, Paulo, Curso de Direito Civil, v. 5: direito de família / Paulo Nader. – Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 3).
Em sua obra “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Friedrich Engels dedica um capítulo específico aos aspectos da origem e evolução dos conceitos de família e parentesco, através dos resultados obtidos nas investigações de Lewis. H. Morgan, juntamente com dados adquiridos por ele mesmo.
Ao descrever as formas de se estabelecer uma família baseada no sistema de consanguinidade observado por Lewis. H. Morgan, entre os iroqueses, na tribo dos senekas, Engels (1984) destacava a existência de contradições entre aquilo que pregava o sistema de consanguinidade vigente e os reais vínculos de família estabelecidos pelos integrantes da tribo, senão vejamos:
Encontramo-nos frente a uma série de formas de família que estão em contradição direta com as até agora admitidas como únicas válidas. A concepção tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da poligamia de uma mulher, silenciando – como convém ao filisteu moralizante – sobre o fato de que, na prática, aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. (ENGELS, Friedrich, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, 9ª. Ed., Editora Civilização Brasileira – 1984, p. 31)
Apesar de a existência de um modelo familiar matriarcal ser questão controvertida entre os doutrinadores que se dispuseram a abordar tal assunto, o fato é que Engels (1984), observou, desde os primórdios, a existência de formações familiares cujo comportamento não condizia com aquilo que pregava o sistema de parentesco consanguíneo admitido pela tribo.
Comparando tal aspecto primitivo com aquilo que se tem na sociedade atual, verifica-se também a existência de práticas quotidianas em total descompasso com aquilo se espera do ser humano, do ponto de vista da moral e, até mesmo religioso, às quais muito embora não sejam unanimemente aceitas pela sociedade, fazem parte de uma realidade à qual não pode ser ignorada pelo ordenamento jurídico.
No Brasil, dois fatores que influenciaram fortemente a formação da família foram a religião e o patrimonialismo, os quais foram gradativamente substituídos, ao passo em que sociedade evoluiu, sendo estabelecidos novos princípios informadores ao Direito de Família, consoante aduz Andrade (2014):
Do ponto de vista político, houve uma necessidade de reafirmar valores caros que nos foram ceifados durante o regime militar. No campo das relações privadas se fazia imprescindível atender aos anseios de uma sociedade mais justa e fraterna, menos patrimonialista e liberal. Movimentos europeus pós-guerra influenciaram o legislador constituinte na busca de um direito funcional, pró-sociedade. De um sistema normativo garantidor do patrimônio do indivíduo passamos para um novo modelo que prima pelo resguardo da dignidade da pessoa humana. O binômio individual-patrimonial é substituído pelo coletivo-social (Andrade, 2014, p. 08).
Segundo Gonçalves (2017), a família brasileira sofreu influência das famílias romana, germânica e canônica, esta última principalmente devido ao processo de colonização sofrido pelo Brasil. Assim, conforme pregavam os canonistas, durante a Idade Média, reconhecia-se, no Brasil, exclusivamente o casamento religioso como forma de estabelecer uma relação familiar. Da mesma forma, observa-se bastante influência da família romana, com as ideias de pátrio poder e das relações patrimoniais entre cônjuges.
Registre-se que, conforme prescreve Nader (2016, p. 4), na antiga organização greco-romana “Os fundamentos da família não estavam na geração de filhos, nem no afeto; repousavam na religião do lar e no culto que se praticava”, além disso, prevalecia a família patriarcal à qual “se caracteriza pela concentração exclusiva de poderes nas mãos do marido, tanto em relação à esposa quanto aos filhos”.
Com efeito, o Código Civil de 1916 trazia em seu bojo um tipo familiar constituído exclusivamente pelo casamento, de forma que:
A impossibilidade de outro casamento, decorrente da indissolubilidade do vínculo matrimonial, induzia os descasados à recomposição familiar mediante uniões livres. Tanto as famílias assim formadas quanto a nova prole eram consideradas ilegítimas e se mantinham à margem da proteção estatal. (Nader, 2016, p. 44).
Todavia, em razão das mudanças sociais que se dissipavam na época, diversas leis esparsas foram surgindo e, assim, trazendo lentas alterações ao direito de família, a exemplo da Lei n.º 4.121 de 27 de agosto de 1962, que passou a estabelecer que o pátrio poder seria exercido pelo marido em colaboração com a mulher; da EC n.º 09 de 28 de julho de 1977, que passou a admitir a dissolução do casamento nos casos previstos em lei; e da Lei do Divórcio (Lei n.º 6.015/77), que aboliu definitivamente a indissolubilidade do matrimônio. Até que, finalmente, com a promulgação da Constituição da República de 1988, foi possível aprovar o Código Civil de 2002.
Posto isso, passou-se a reconhecer a igualdade entre cônjuges (art. 1.511, CC/2002), a ampliar o conceito de família, por meio da regulamentação da união estável com entidade familiar, e a reafirmar a igualdade entre os filhos em direitos e qualificações, modificações estas que, posteriormente, foram essenciais ao reconhecimento de outros tipos de formações familiares.
Atualmente, vários são os tipos familiares reconhecidos e tutelados pelo Direito Brasileiro. Flavio Tartuce ( 2017, p. 35), ao tratar de tal matéria, elenca a existência de diversos tipos de famílias tais como a família matrimonial, constituída através do casamento; a família informal, decorrente da união estável; a família homoafetiva, formada por pessoas do mesmo sexo, às quais os Tribunais Superiores, inclusive, já reconheceram o direito ao casamento; a família monoparental, formada pelo vínculo entre um dos genitores e seus filhos, a família anaparental, decorrente da convivência entre parentes ou entre pessoas sem nenhum parentesco, desde que dentro de uma estruturação com identidade e proposito e a família eudemonista, constituída apenas pelo vínculo de afetividade.
Assim, verifica-se que o ordenamento jurídico brasileiro não somente deixou de reconhecer o casamento como forma exclusiva de se constituir uma família guarnecida pela proteção estatal, como também passou a reconhecer a formação de famílias por meio de laços afetivos, de forma que o conceito de tal instituição, hoje, vai muito além dos preceitos constitucionais.
3. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL
O casamento, assim como os demais institutos do Direito de Família brasileiro, passou por diversas alterações ao longo da história, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que possibilitou a edição do Código Civil de 2002. Ressalte-se que, antes disso, uniões não consagradas pelo casamento eram consideradas ilegítimas (Nader, 2016, p. 44), o que não mais se verifica na sociedade brasileira.
Observe-se que, atualmente, em que pese ainda possuir bastante importância no meio jurídico, o casamento não constitui mais a única forma de conceder às pessoas direitos decorrentes da formalização de uma união, tendo em vista que se passou a conceder proteção estatal também àqueles que convivem em união estável.
Com o advento do Código Civil de 2002, introduziu-se em tal diploma um título exclusivo para tratar da União Estável. Assim, o art. 1.723 do Código Civil Brasileiro passou a reconhecer como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, atribuindo à união estável os mesmos impedimentos do casamento previstos no art. 1.521 do Código Civil Brasileiro.
Conforme aduz Gonçalves (2016, p. 18, 19),
Embora a família continue a ser a base da sociedade e a desfrutar da especial proteção do Estado, não mais se origina apenas do casamento, uma vez que, a seu lado, duas novas entidades familiares passaram a ser reconhecidas: a constituída pela união estável e a formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Além do mais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e a ADI n. 4.277/DF conferiu ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002, interpretação em conformidade com a Constituição Federal, excluindo-se do dispositivo legal todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Assim, nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
O casamento, em síntese apertada, não é a finalidade e o objetivo central da vida das pessoas humanas. Casar, ou não, é circunstância relacionada à opção pessoal. Nada mais. Assim, casando, ou não, a pessoa humana merecerá, sempre, a mesma proteção. Optando pela via formal e solene do casamento, por igual estará protegida e as normas do casamento adaptadas para realçar a sua dignidade, igualdade substancial e liberdade, além de estabelecer um elo solidário entre cada um dos cônjuges - que, nesse novo panorama, de fato, pode ser chamado de com sorte. (Rosenvald e Chaves, 2017, p. 172).
Portanto, na conjuntura atual brasileira, o casamento não mais constitui maneira exclusiva de se atribuir a proteção estatal às pessoas que se unem como o intuito de constituir uma família.
4. O POLIAMOR
O poliamor pode ser conceituado como uma forma de relacionamento não monogâmico que apresenta como características peculiares a honestidade e consenso entre os envolvidos, já que, nas palavras de Dias (2016, p. 454 e 455), se trata de uma interação recíproca em que “todos os evolvidos sabem da existência das outras relações, compartilhando muitas vezes entre si o afeto”.
A temática acerca do reconhecimento do poliamor ganhou conhecimento notório no Brasil, em 2012, quando um trio, formado por um homem e duas mulheres, decidiu oficializar sua união, por meio da escritura pública declaratória de união poliafetiva, na cidade de São Paulo-SP.
A esse respeito de tal fato aduz Madaleno (2018), que
Em tempos de exaltação do afeto como condição de formação do núcleo familiar, a relação amorosa triangular é denominada de união poliafetiva, e tantas outras pode se supor que existam neste imenso território brasileiro, mas que ainda não decidiram sair do armário, para tomar emprestada uma expressão que teve enorme influência no movimento social que resultou na aclamação jurídica da união homoafetiva. Deste armário saiu pioneiramente este trio de São Paulo, que decidiu oficializar sua relação afetiva e enfrentar o dogma da monogamia, consignando a existência de uma união afetiva entre um homem e duas mulheres que afirmam viverem em harmônica coabitação em uma única moradia, não se confundindo nesse aspecto com uma família paralela, na qual um homem, em regra, vive ao mesmo tempo com duas mulheres, mas em residências distintas”. (MADALENO, 2018, p. 25, 26).
Registre-se que o Cartório de Notas de São Vicente, o Tabelionato de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Tupã e o 15º Tabelionato de Notas do Rio de Janeiro vinham lavrando escrituras públicas de uniões poliafetivas. Logo, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ suspendeu o registro de tais uniões, até 29 de junho de 2018, data em que foi proferida decisão, nos autos do Pedido de Providências n.º 0001459-08.2016.2.00.0000, que proibiu, definitivamente, os cartórios de registrarem uniões poliafetivas
Em síntese, sustentou-se a inconstitucionalidade da lavratura de escritura pública de “união poliafetiva”, devido à suposta ausência de eficácia jurídica e violação dos princípios familiares básicos, das regras constitucionais sobre família, da dignidade da pessoa humana, das leis civis e da moral e dos costumes brasileiros.
Entretanto, é possível observar a existência de entendimentos contrários ao que se proferiu pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, sobretudo pela análise questão da exclusão que decorre de tal decisão, à qual coloca pessoas em um cenário de exclusão.
Ao tratar do pluralismo das entidades familiares, prescreve Dias (2016, p. 54), que
Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é afrontar a ética, é ser conivente com a injustiça.
Da mesma maneira, quanto à alegada afronta aos princípios e regras constituicionais, é imperioso conceder desque aos princípios da monogamia e da lealdade, sobre os quais não se deve cometer o equívoco de considerá-los como óbces à constitucionalidade do registro de uniões poliafetivas no Brasil, tanto porque o princípio da monogamia não é um princípio constitucional, uma vez que não contemplado pela Constituição Federal, como pelo fato de que inexiste a falta de lealdade em tais relações, posto que são baseadas no consentimento de seus integrantes.
Neste ponto, é importante destacar que, aqui, não se discute a caracterização da “união poliafetiva” como entidade familiar, mas, sim, a legalidade de seu registro em atenção aos princípios da liberdade, igualdade, não intervenção estatal na vida privada, não hierarquização das formas constituídas de família e, principalmente, ao princípio da dignidade da pessoa humana.
4.1 DIFERENÇA ENTRE UNIÃO POLIAFETIVA E CONCUBINATO
Conforme relatado, até o advento da Constituição Federal e do Código Civil de 2002 não se cogitava o reconhecimento de qualquer forma de entidade familiar, senão aquela estabelecida pela união indissolúvel, constituída pelo casamento.
Todavia, já se pensava na ideia de reconhecimento de direitos às relações às quais, muito embora não estivessem em harmonia com os preceitos legais, mereciam atenção em relação à possibilidade de atribuição de determinados direitos, os quais anteriormente somente poderiam ser garantidos àqueles que integrassem uma família legítima.
Assim, as relações paralelas, conhecidas como concubinato, foram ganhando seu espaço próprio dentro do ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo pelas decisões dos Tribunais brasileiros, a exemplo do que restou decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.369.914:
Esta eg. Corte já se posicionou sobre a possibilidade de partilha de pensão entre a viúva e a concubina, mesmo que não haja separação de fato da esposa. Deve, no entanto, restar comprovado que a concubina mantinha uma união estável (convivência duradoura, pública e contínua) com o falecido. (STJ, 2018).
Corroborando com tal pensamento, Gagliano (2017) afirma que o reconhecimento do concubinato como fato capaz de produzir efeitos jurídicos, foi consequência de uma construção jurisprudencial, o que se verifica pela edição da Súmula n.º 380 do Supremo Tribunal Federal (em Sessão Plenária de 3-4-1964), com a seguinte redação: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Observe-se que o Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.727, prescreve que “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. Assim, conclui-se que o concubinato decorre da existência de uniões paralelas formadas por indivíduos impedidos de constituir matrimônio ou união estável.
Por outro lado, ao tratar do poliamorismo, Rolf Madaleno (2013, p. 26) aduz que
Esta é a família poliafetiva, integrada por mais de duas pessoas que convivem em interação afetiva dispensada da exigência cultural de uma relação de exclusividade apenas entre um homem e uma mulher vivendo um para o outro, mas sim de mais pessoas vivendo todos sem as correntes de uma vida conjugal convencional. É o poliamor na busca do justo equilíbrio, que não identifica infiéis quando homens e mulheres convivem abertamente relações afetivas envolvendo mais de duas pessoas.
Destarte, verifica-se que o conceito do poliamor é diferente do concubinato na medida em que, na poliafetividade, verificam-se “relações concomitantes, com a ciência e consentimento dos envolvidos, que procura ser estável. Pressupõe a honestidade e a transparência, enquanto essas premissas não estão necessariamente presentes no concubinato” (A Possibilidade do Poliamorismo Enquanto Direito Personalíssimo e a Ausência de Regulamentação no Direito Brasileiro, 2015, n.p.).
Seguindo o raciocício de (Dias, 2016, p. 454, 455), “quando o vínculo de convivência de mais de duas pessoas acontece sob o mesmo teto, não é possível se chamar de união paralela, no sentido mesmo da palavra”, sendo esta a principal diferença entre união poliafetiva e o concubinato.
Portanto, é importatante pontuar que o concubinato esta intimamente ligado à existência de uniões paralelas e desleais, diferentemente da união poliafetiva que se constitui através da honestidade, transparência e consentimento entre seus envolvidos.
5. FAMÍLIA, MORAL E ÉTICA
Em razão do modelo convencional de família, adotado pelo Brasil, o qual seguiu os padrões estabelecidos pela moral conservadora, o Direito de Família continua sendo o ramo mais influenciado pelos ideais morais e religiosos, mesmo após a separação entre Estado e Igreja.
Nas palavras de Dias (2016, p. 70):
O parlamentar, refugiando-se em preconceitos religiosos, transforma-se no grande ditador. Prescreve como as pessoas devem agir, impondo pautas de conduta afinadas com a moralidade conservadora. Limita-se a regulamentar institutos socialmente aceitáveis. Com isso, não desagrada o eleitorado e garante sua reeleição. Por este motivo é que restam à margem da lei situações que são alvo do repúdio social ou dizem com as minorias objeto de discriminação. E, perversamente, qualquer agir que se diferencie do parâmetro estabelecido como "normal" é tido por inexistente.
Nesse sentido, importa destacar que muitas injustiças foram cometidas em nome da moral, o que ensejou a criação de movimentos sociais contrários à discriminação conferida a grupos que, por não terem o privilégio da aceitabilidade social, foram tidos como inexistentes, durante boa parte da história. Registre-se que somente ultrapassando algumas das barreiras estabelecidas por valores morais, é que o Direito atual conseguiu, em em algumas situações, o alcance aos ideiais de justiça e igualdade.
Assim, necessário se faz trazer a distinção entre a ética e a moral, às quais nas palavras de Dias (2016, p. 68)
Costuma-se definir moral como normas estabelecidas e aceitas segundo o consenso individual e coletivo. Tem função essencial à sociedade e manifesta-se desde que o homem existe como ser social. Dispõe de caráter mais pessoal, pois exige fidelidade aos próprios pensamentos e convicções íntimas. Ética representa o estudo dos padrões morais já estabelecidos. É reconhecida como a ciência da moral, ou seja, o estudo dos deveres e obrigações do indivíduo e da sociedade.
Observe-se que, através dos conceitos estabelecidos por Dias (2016, p. 68, 69), verifica-se que a moral se mostra muito mais ligada ao campo do subjetivismo, enquanto a ética procura realizar um estudo fundamentado dos valores morais que orientam o comportamento humano em sociedade, de forma que “o direito não pode afastar-se da ética, sob pena de perder efetividade”.
Verifica-se, pois, que o Direito, em que pese basear-se nos valores morais enraizados na sociedade brasileira, deve ter como fim principal o alcance da justiça, não atendendo somente àqueles cujas condutas sejam socialmente aceitas, mas alcançando a todos, em observância às particularidades de cada grupo, não submetendo ninguém a cenários de exclusão ou invisibilidade jurídica.
Corroborando com tal entendimento, Reale (1999), afirma que:
Realizar o Direito é, pois, realizar os valores de convivência, não deste ou daquele indivíduo, não deste ou daquele grupo, mas da comunidade concebida de maneira concreta, ou seja, como uma unidade de ordem que possui valor próprio, sem ofensa ou esquecimento dos valores peculiares às formas de vida dos indivíduos e dos grupos. (REALE, 1999, p. 701)
[...]
Vê-se, pois, que o conceito do Direito implica, outrossim, o elemento do Poder (donde dizermos que é uma realidade ordenada, ou, por outras palavras, uma ordenação) assim como o de sociedade: é o Direito vinculação bilateral-atributiva da conduta humana para a realização ordenada dos valores de convivência. Temos, assim, de maneira geral, a sociedade como condição do Direito, a Justiça como fim último, a bilateralidade atributiva como forma ordenatória específica, e o Poder como garantia de sua atualização. (REALE, 1999, p. 703).
Assim, com relação, às formas de convivência e união estabelecidas pelo homem, principalmente, no que se refere às relações baseadas na honestidade, transparência e consentimento entre seus envolvidos, não é coerente que o ordenamento jurídico ignore tais situações, visto que estas continuarão a existir no plano fático, sendo constantemente objeto de indagações no meio jurídico, posto que, por força do art. 140 do Código de Proceso Civil, in verbis: “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme ora mencionado, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ proibiu os cartórios de realizarem a lavratura de escrituras públicas de “uniões poliafetivas” no Brasil, levantando como um de seus argumentos a suposta ausência de eficácia jurídica e violação dos princípios familiares básicos, das regras constitucionais sobre família, da dignidade da pessoa humana, das leis civis e da moral e dos costumes brasileiros.
Anteriormente à proibição definitiva de tal registro, as Corregedorias dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, foram intimadas a se manifestar acerca do Pedido de Providências n.º 0001459-08.2016.2.00.0000. Assim, informaram que o ato praticado tem natureza meramente declaratória e não constitutiva de direitos, de forma que o registro de tais uniões não significa o reconhecimento por parte do ordenamento jurídico ou a equiparação de tais uniões aos efeitos do casamento civil. Além disso, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) trouxe a alegação de que a Constituição Federal não apresenta rol taxativo acerca das formas de constituição de família, posto que “estende sua tutela a qualquer família, sem cláusula de exclusão nem de hierarquia”.
A respeito de tal temática, é importante destacar, primeiramente, a autonomia e independência da atividade notarial no Brasil. Registre-se que a tarefa do notário, conforme o o art. 6º da Lei n. 8.935/1994, é “formalizar juridicamente a vontade das partes e intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo”.
Dessa forma, oficializar uma união pela escritura pública de um vínculo poliafetivo, não implica declarar como casados os integrantes de uma relação de poliamor, posto que somente o Poder Judiciário poderia reconhecer efeitos jurídicos aos contratos de tais uniões, tendo a escritura efeito meramente declaratório, prestando-se apenas como prova de uma convivência triangular, por exemplo.
Com relação aos princípios do Direito de Família, não se verifica qualquer afronta que possa considerar inconstitucional a lavratura de tal registro, inclusive, tendo-se em vista o Pincípio da Monogamia, posto que este que este sequer fora contemplado pela Constituição Federal e, portanto, deve ser ponderado com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Outra questão debatida, seria a proibição legal acerca do estabelecimento de uniões paralelas ou, até mesmo da bigamia, porém, conforme já explicado, o registro da união poliafetiva não se trata de casamento e, portanto, não há que se falar em bigamia, a não ser que um de seus integrantes tenham contraído matrimônio com mais de uma pessoa ou possua registro de união estável com mais de uma pessoa; do contrário, nada impede que três pessoas, sem qualquer impedimento legal, constituam uma união, seja ela regulamentada ou não pelo ordenamento jurídico.
Da mesma forma, não se confunde a união poliafetiva com as uniões paralelas, às quais dão ensejo concubinado-adulterino, posto não se tratar da hipótese em que uma pessoa vive ao mesmo tempo com outras suas, em residências distintas, mas de uma união em que mais de duas pessoas, com o consentimento de todas, se relacionam e compartilham do mesmo afeto, residindo conjuntamente.
Para finalizar, ainda que não seja o objetivo do presente artigo discorrer acerca do reconhecimento da união poliafetiva como entidade familiar, é importante destacar as palavras do Ministro Luiz Fux no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277:
“O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”.
Portanto, não há que se falar em inconstitucionalidade na lavratura de escritura pública de vínculo poliafetivo, uma vez que inexiste qualquer afronta aos dispositivos previstos na Constituição da República, tendo em vista que tal escritura pública tem caráter exclusivamente declaratório, de constituição de prova, não conferindo a essas uniões a equiparação ao casamento. A par disso, não se verifica nenhum impedimento legal à realização de tal registro pelos cartórios brasileiros.
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Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Tayna Alves de. Uma análise sobre a constitucionalidade do registro de uniões poliafetivas no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52402/uma-analise-sobre-a-constitucionalidade-do-registro-de-unioes-poliafetivas-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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