CARLOS EDUARDO ROMEIRO PINHO[1]
(Orientador)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar os mecanismos previstos em lei para a resolução da crise urbanística que muitos municípios brasileiros enfrentam. A concentração da titularidade dos imóveis urbanos em nome de poucos faz com que os menos abastados consubstanciem o seu direito constitucional de moradia à revelia dos procedimentos elencados pela lei. Nesse viés, surge o problema das ocupações irregulares. A Constituição Federal e as leis infraconstitucionais trazem previsões no sentido de atenuar tais irregularidades, que repercutem na esfera pública municipal, quer impondo ações, quer prescrevendo a contemplação em programas de governo.
Palavras-Chave: Desapropriação Judicial Indireta; Município; Responsabilidade; Moradia; Políticas Púbicas.
ABSTRACT: This article aims to analyze the alternatives for solving the urban crisis that many Brazilian municipalities face. The concentration of ownership of urban properties in the name of a few people makes the less well-off consubstantiate their constitutional right to live in violation of the procedures set forth by law. In this bias, the problem of irregular occupations arises. The Federal Constitution and the infraconstitutional laws provide regulations to mitigate such irregularities, which have repercussions in the municipal public sphere, either by imposing actions or by prescribing contemplation in government programs.
Keywords: Indirect Judicial Expropriation; Municipality; Responsibility; Home; Public policy.
1. Introdução
A matriz de todo estudo acerca do sistema jurídico em algum ponto irá repousar no constitucionalismo. Essa escola visa, dentre outros, estudar a existência de direitos fundamentais do cidadão em face do Soberano, por meio de artifícios legislativos promovidos pelo próprio estado. Desde os tempos mais remotos até os dias de hoje, percebe-se o aprimoramento das garantias do cidadão frente à ação estatal.
De acordo com a brilhante lição de Canotilho (2002, p.51), o constitucionalismo seria “a teoria [...] que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”.
Essa ideologia passou por vários momentos durante a história. Do século XVIII até o início do século XX, com o constitucionalismo clássico, o Estado somente tinha incumbência de assegurar direitos mínimos, como a garantia da ordem e segurança públicas. Outros deveres, como questões econômicas e sociais, eram deixados a cargo da iniciativa privada.
A Constituição norte-americana de 1787 e a francesa de 1791 (que teve como preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), movimento este deflagrado durante o Iluminismo e concretizado como uma contraposição ao absolutismo reinante [...] Podemos destacar, nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, os seguintes valores: [...] absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo. (LENZA, 2014, p. 68).
Após a Primeira Guerra Mundial, esse modelo perdeu força por conta do caos deixado pelo conflito bélico, que instaurou uma tremenda crise humanitária, acentuando as desigualdades sociais. Foi nesse contexto de desprestígio do liberalismo econômico outrora existente que o estado avocou para si as funções desempenhadas por setores não públicos.
A economia tornou-se também uma questão do Estado e consequentemente uma questão constitucional (‘Constituição económica`). E ao lado dos direitos de liberdade individuais, típicos do primeiro Constitucionalismo, entram na Constituição os direitos colectivos e os direitos a prestação do Estado (direitos económicos, sociais e culturais). (MOREIRA, 2001, p. 315)
Com isso, surgiram os direitos fundamentais de segunda geração, que não se contentavam com um comportamento passivo do poder público, exigindo dos entes encarregados de cumprir programas de governo mais ação prestacional.
Tanto tempo se passou e ainda nesta década, aqui em terras brasileiras, infelizmente, há mais simbolismo que política pública de promoção dos direitos fundamentais. As medidas governamentais, a despeito de existirem, ainda são muito tímidas, se confrontadas com os mecanismos previstos pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Dentre tantos, o direito à moradia está inserido diretamente no Título dos Direitos Fundamentais, e nas entrelinhas dos fundamentos e objetivos traçados pela República.
Para se ter uma ideia, é comum ver no interior do Brasil o problema da crise urbanística - que hoje já era para ter sido extirpado do contexto social e jurídico.
A dimensão continental do território brasileiro não pode ser a única justificativa dada a esse desequilíbrio na zona urbana. É bem certo que, além desse motivo, esse problema advém da concentração de imóveis urbanos na titularidade de poucos, combinado com a deficiência de ações efetivas em volta do assunto.
Diante desse cenário, os cidadãos com mais vulnerabilidade social ocupam imóveis, de maneira não inteligente e precária, com a intenção de satisfazer um direito constitucional de moradia e de subsistência.
Em situações em que não cabe a usucapião urbana, o único remédio seria a desapropriação judicial indireta, que conforme será visto, exige, dentre outros, o pagamento de uma justa indenização por parte dos possuidores. Entretanto, na impossibilidade financeira de indenizar o proprietário registral, a quem ficaria a tarefa? Ou essas pessoas (proprietários e possuidores) devem ser jogadas à própria sorte?
O objetivo desse estudo é analisar o comportamento social frente a ausência de um direito fundamental que é o de moradia, destacando uma pretensa responsabilidade do poder público ainda principiante nessa temática. O pressuposto metodológico é uma pesquisa bibliográfica na literatura sobre constitucionalismo, políticas públicas de realização de direitos sociais, e responsabilidade da municipalidade.
2. Função Social da Propriedade
A expressão função social vem do latim functio, que significa cumprir algo, desempenhar um dever ou uma atividade, o papel a ser cumprido por um determinado modelo jurídico (FARIAS; ROSENVALD, 2008, 307).
Partindo desse conceito, entende-se que a função social seja uma cláusula em aberto, que, no caso concreto, deva ser interpretada pelo aplicador do direito à luz de valores históricos e sociais de um determinado grupo de pessoas.
De acordo com as lições de Francisco Cardozo Oliveira (2006, p. 242), a propriedade que recebe uma função social transcende a relação proprietário x coisa:
A função social integra a essência da propriedade de modo que, na modernidade, passou a constituir-se em garantia da tutela jurídica do direito de propriedade. [...] A função social enriquece a propriedade, porque confere ao exercício dos poderes proprietários valor que ultrapassa a ralação entre o proprietário e a coisa. A funcionalização valoriza a utilidade individual e coletiva proporcionada pelo uso do bem, direcionado para o objetivo finalístico traçado pelo ordenamento jurídico. O conceito de propriedade não se completa sem que considerada a função social.
Este artigo não tem a pretensão de criar muitas delongas sobre o princípio da função social propriamente dito; apenas expor que ele é decisivo no momento de o julgador definir quem dá a melhor posse para uma propriedade.
Não dá para se usar como fundamentação única o princípio da função social para se obter algum provimento (administrativo ou jurisdicional), mas não se deve perder de vista que aquele que não atende a esse princípio perde as garantias judiciais e extrajudiciais de proteção da posse
3. O direito constitucional à moradia e à sua regularização
O preâmbulo da Constituição da República de 1988, embora seja desprovido de cogência normativa direta, guia o intérprete e aplicador do direito (especificamente o gestor público municipal) na tarefa cotidiana de lidar com a lei. Assim, o Estado Democrático só se faz presente quando incentiva e materializa o exercício dos direitos sociais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Na mesma linha, os artigos 1º e 3º da CRFB/88 preveem, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e, entre seus objetivos, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais. Toda a legislação infraconstitucional deve seguir esse parâmetro. Entender de outro modo viola, sem sombra de dúvida, a Lei Fundamental instituidora do Estado Constitucional Democrático.
A Constituição da República, ao erigir o princípio da dignidade da pessoa humana a status de postulado fundamental, incumbiu aos três poderes constituídos a observância do mínimo existencial necessário a uma existência digna de cada cidadão.
Não é por outra razão que o legislador constituinte muniu a pessoa humana de direitos fundamentais, como, por exemplo, a moradia. Diferentemente não faria o legislador ao editar o Código Civil e o Estatuto da Cidade.
A constitucionalização do direito à moradia torna a habitação em um estado de bem-estar do ser humano, de acordo com a expressão do 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948:
Artigo 25°
1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
2.A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social.
Do mesmo modo também ficou disposto no item 8 da 2ª Conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II), promovida em 1996 pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Istambul, na Turquia, a qual determina aos países signatários que confiram proteção normativa constitucional adequada e efetiva ao direito de moradia, dentre outros:
8. Nós reafirmamos nosso compromisso com a total e progressiva realização do direito a moradias adequadas, conforme estabelecido em instrumentos internacionais. Com essa finalidade, deveremos procurar a participação dos nossos parceiros públicos, privados e não-governamentais, em todos os níveis, para a garantia legal de posse, proteção contra discriminação e igual acesso a moradias adequadas, a custos acessíveis, para todas as pessoas e suas famílias.
Nesse contexto de intenções normativas, em 2000, sobreveio a Emenda Constitucional nº 26, que positivou o direito social de moradia, em consonância, tanto com o sistema internacional de direitos humanos, quanto com a necessidade de garantia do mínimo existencial e digno da pessoa humana conferida pela Magna Carta.
A institucionalização do direito à moradia representou uma nobre tentativa do legislador constituinte derivado de implementar a igualdade e a liberdade materiais. Não só isso, a reforma constitucional teve o objetivo de proteger a pessoa contra as necessidades de ordem material e temporal e, notadamente, de promover a redução das desigualdades sociais.
Inovação tamanha é reflexo de uma nova visão universal de que o individuo é merecedor de uma vida digna, sendo assim, o direito à moradia, assim com tantos outros, é requisito para que se alcance a vivencia plena. E dada a sua importância, é fácil de subtrair que esse direito esteve, desde a promulgação da Constituição, implícito devido a estar diretamente entrelaçado com o princípio da dignidade humana. (PINHEIRO, 2008)
É obrigação estatal a conformação do direito à moradia com os princípios e interesses verificados na CRFB-88, sempre se guiando pelo postulado da supremacia constitucional e da força normativa de seu texto. Assim, cabe ao ente político, seja direta ou indiretamente, fomentar programas sociais de habitação, que facilitem o acesso à moradia ou que, ao menos, torne regular aquelas sobre as quais incide o precariedade. Para Sarlet, essa seria uma tentativa de dignificar o cidadão titular desse direito.
É importante mencionar que sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries e sem a certeza de que jamais terá a sua propriedade posta em xeque, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, por vezes, não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida com dignidade. (2008, p. 45)
Na regra constitucional de repartição de competência, o interesse tem um aspecto de baliza quanto as políticas públicas implementadas, bem como nos investimentos para a promoção dessas metas. É por esse motivo que o município, em se tratando de direito à moradia e sua regularização, certamente é a pessoa política de maior importância. Isso porque, além de ser um interesse local a redução do déficit habitacional e a regularização das propriedades urbanas, é a municipalidade que está mais próxima do cidadão.
Cabe ao Estado, e insta salientar a maior importância do ente municipal, garantir a máxima efetividade desse direito fundamental, seja através da criação de normas que universalizem o acesso à moradia, seja a partir da formulação de políticas que subsidiem a aquisição dos imóveis urbanos.
A máxima efetividade das normas constitucionais representa para Barroso “a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social” (2003, p. 316).
Com efeito, é tarefa do intérprete e aplicador conferir à norma uma interpretação e aplicação que lhe garanta maior eficácia no mundo dos fatos, com vistas a garantir os mandamentos constitucionais.
4. A diferença entre a desapropriação judicial indireta e outros institutos
A desapropriação judicial indireta, que é o foco deste trabalho, decorre da ocupação de um determinado imóvel por considerável número de pessoas, sem qualquer procedimento expropriatório que antecede a indenização, tal qual acontece no direito administrativo.
Na esfera pública, quem ocupa é a Fazenda Pública; na modalidade em comento, não é o poder público, mas sim, como dito, um grupo de pessoas.
Carvalho Filho, para elucidar seus ensinamentos em relação à diferenciação de ambos os institutos, prefere chamar a desapropriação judicial indireta de “expropriação social”.
Não obstante ser clássico o instituto da desapropriação como forma de expropriação processada pelo Estado, o vigente Código Civil criou instituto de expropriação – até agora não conhecido – em que a iniciativa cabe aos particulares. Dispõe o art. 1.228, § 4o, que nasce o direito à expropriação (acarretando a perda do imóvel), indenizando-se o proprietário ao final, quando: (a) a posse seja de considerável número de pessoas; (b) seja ela ininterrupta e de boa-fé por mais de 5 anos; (c) tenham os posseiros realizado obras e serviços considerados pelo juiz de relevante interesse social e econômico. (2018, p. 962)
O administrativista vai mais além, no sentido de diferenciar com riqueza os institutos, com uma brilhante lição.
Não se identifica com a desapropriação clássica por ser promovida por particulares, e não pelo Estado. (CARVALHO FILHO, 2018)
Para Rosenvald e Farias, “a desapropriação é judicial, pois pela primeira vez no direito brasileiro quem determinará a privação do direito de propriedade não será o poder executivo ou o legislativo, mas o poder judiciário” (2008, p. 43).
Nesse contexto, o instituto da desapropriação judicial indireta consubstancia a função social da posse, insculpida nos parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil de 2002, podendo ser oposta tanto contra particulares como contra o poder público.
Em suma, enquanto a desapropriação indireta é tema atinente ao direito administrativo, a desapropriação judicial indireta é matéria pertencente ao direito civil.
Apesar de se assemelhar, o apossamento de bem particular pelo poder público sem o devido processo legal de desapropriação (desapropriação indireta) descamba em uma desapropriação nula. Nesse caso, nega-se ao proprietário a faculdade de reivindicá-lo, só cabendo a indenização por perdas e danos. Isso porque a Lei das Desapropriações (Decreto-lei 3.365, de 21.06.1941), em seu artigo 35, estabelece que “os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação”.
Para a doutrina de direito administrativo o traço diferenciador principal é o estado como protagonista do esbulho e da eventual indenização a ser paga ao proprietário registral.
Desapropriação indireta é o fato administrativo pelo qual o Estado se apropria de bem particular, sem observância dos requisitos da declaração e da indenização prévia. Observe-se que, a despeito de qualificada como indireta, essa forma expropriatória é mais direta do que a que decorre da desapropriação regular. (CARVALHO FILHO, 2018)
Já a desapropriação em comento (desapropriação judicial indireta), guarda as mesmas características, porém, por se tratar de um instituto de direito civil, não será a Administração que irá expropriar e eventualmente indenizar, e sim considerável número de pessoas. Quer-se falar com isso que, após o cumprimento de todos os requisitos elencados pela lei, o magistrado arbitrará uma indenização a ser paga pelos ocupantes ao proprietário do imóvel, a fim de que seja feita a transferência registral.
Art. 1.228. [...]
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
[...]
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. (BRASIL, 2002) (grifou-se)
Vendo o dispositivo, há, também, uma falsa aparência com o instituto da usucapião especial urbana coletiva, previsto no Estatuto das Cidades. Contudo, o conflito não existe, pois a usucapião exige que as pessoas sejam de baixa renda, não possuam outra propriedade, além de dispensar a boa-fé. Isto sem mencionar que enquanto essa é forma de aquisição originária da propriedade, aquela é forma de aquisição derivada.
De uma leitura da Lei 10.257/2001, percebe-se que a diferença, ainda que tênue, existe:
Art. 10 - As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
[...]
§ 2º - A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis. (BRASIL, 2001) (grifou-se)
Vale ressaltar, ainda, que, ao contrário da usucapião, a desapropriação judicial indireta requer o pagamento de indenização ao proprietário registral, como condição sem a qual o imóvel não se transfere.
A capacidade econômica das pessoas ocupantes para arcar com o pagamento do justo preço pode, a depender do caso, ter consequências no erário municipal.
5. Os efeitos do instituto civilista no ente municipal
A princípio, o tema abordado nesse trabalho, visto de uma maneira superficial, poderia não guardar relação com o direito público municipal. Contudo, uma análise mais esmiuçada leva a conclusão de que o Poder Público está submetido a alguns ditames do direito privado.
Sem muitos esforços, pode-se encontrar atividades da Administração submetidas ao direito privado. Ora, o Código Civil, grande baluarte das relações entre particulares, deve ser obedecido pelo Estado, visto que, constitucionalmente, é estabelecido o princípio da legalidade.
Somado a isto, existem inúmeras passagens dentro do texto constitucional, e no seu preâmbulo, que não só orientam como obrigam o gestor público, no cumprimento de políticas públicas, a erradicar a pobreza, as desigualdades sociais e a marginalização e assegurar a dignidade da pessoa humana, sem prejuízo de outros mandamentos.
O cidadão está submetido a três ordens matrizes, a saber: Constituição da República, Constituição dos respectivos Estados e Lei Orgânica municipal. O agente político, de qualquer esfera da federação, ao montar sua equipe para cumprir o programa apresentado ao eleitor, não deve fazer preterição por nenhuma região.
Entretanto, é consabido que o cidadão que mora na periferia de um interior, por não saber como opera e se organiza o Estado, irá cobrar, instintivamente, do poder que mais se aproxima da sua comunidade, ou seja, o Município. Isto porque a sede está a poucos quilômetros de distância do munícipe, os agentes encarregados de cumprir, traçar e aprovar as metas muitas vezes são vizinhos do povo. Ademais, não há na cultura dos brasileiros o interesse por saber como funciona a atividade estatal, o que são órgãos, “o que é” e “o que faz” a administração direta/indireta.
Some-se a isso o fato de que o ente municipal, em tese, pode conhecer cada pedaço do seu território melhor que a União ou o Estado Federado (por exemplo), o que facilita o mapeamento do déficit habitacional e da irregularidade registral, tarefa que, sem dúvida, é mais difícil de ser executada pelas outras pessoas políticas. Empiricamente, fala-se que para tratar um problema é preciso, antes de tudo, diagnosticá-lo.
Nesse contexto, e até por uma questão de efetividade e de descentralização, a municipalidade, acaba por se encarregar, na maioria das vezes, de realizar a política pública de habitação e regularização registral.
De uma intelecção mínima, e até pelas pesquisas realizadas, são famílias pobres que, ao arrepio das formalidades impostas pela lei, assenhoram-se de propriedades sem a devida destinação social dos seus proprietários.
Uma reportagem publicada pelo Portal R7, em 21 de dezembro de 2011, aponta que mais de 11 milhões de brasileiros vivem em ocupações irregulares, segundo dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):
Em 2010, mais de 11,4 milhões de brasileiros viviam em aglomerados subnormais, conceito que inclui ocupações irregulares conhecidas como favelas ou invasões. Os dados, divulgados nesta quarta-feira (21) pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), compõem o Censo 2010.
O número representa 6% da população do Brasil (de cerca de 190 milhões de pessoas). De acordo com o levantamento, quase a metade (49,8%) dos 3,2 milhões de domicílios particulares situados nesses locais estava na região Sudeste - sendo 23,2% em São Paulo e 19,1% no Rio de Janeiro.
A região Nordeste surge na sequência, com 28,7% desse total.
Levando em consideração que a indenização é paga pelos possuidores que ocupem área extensa por mais de cinco anos com finalidade produtiva, paira no ar uma dúvida: e se essas pessoas não tiverem recursos suficientes, ou quiçá nenhum, para indenizar o proprietário? Estariam submetidas à insegurança eterna de terem tão somente o domínio da área?
Há uma corrente na comunidade jurídica que entende que o poder público pode sofrer os efeitos do art. 1.228, § 5º do Código Civil. Mas o tema não é tão pacificado: existe uma forte celeuma.
À luz de uma interpretação autêntica, a desapropriação judicial indireta para Barbosa e Pamplona Filho (2015) deve ser suportada pela Administração:
Pouco provável que fosse a intenção do legislador que os possuidores, já tendo realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante, por mais de cinco anos, como se proprietários fossem, ainda tenham que desembolsar valores para a aquisição efetiva de tal propriedade.
O enunciado 308 da Jornada de Direito Civil, consagra a ideia que, em se tratando de população de baixa renda e com a finalidade de moradia, a indenização por desapropriação judicial indireta deve ser paga pelo poder público. A exigência é que o Ente seja devidamente inserido no processo judicial e que haja, por óbvio, o respectivo deslocamento de competência:
308 - Art. 1.228: A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropriação judicial (art. 1.228, § 5º) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil.
O que se quer dizer é que se a demanda recair sobre um imóvel localizado na zona urbana é necessário incluir o Município no polo passivo, e o feito será processado e julgado na Vara da Fazenda Pública do Poder Judiciário estadual. Só haverá competência da justiça federal se o imóvel estiver localizado na zona rural ou, ainda, se o imóvel for pertencente à União, e mesmo assim, na fase de execução da sentença.
A polêmica ainda recai sobre mais uma consequência que pode atingir o ente municipal, conforme entendem Barbosa e Pamplona Filho citando Mônica Carvalho (2015):
Parece que o ônus será do Município em que localizada a área, haja vista que o comando do plano diretor da cidade é da competência exclusivamente municipal. Há uma corresponsabilidade na tolerância da ocupação de terrenos com a criação de verdadeiras favelas, nascidas de invasões pelos que não têm moradia.
Nesse sentido, a regra constitucional estampada no art. 182 que impõe ao Poder Público Municipal o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
No mesmo diapasão, a norma inserida no art. 39 do Estatuto da Cidade, ao estatuir que a propriedade urbana atende à sua função social quando cumprir as exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Não se pode olvidar que a desapropriação administrativa prevista no art. 8o. do mesmo diploma legal é efetuada pelo Poder Público Municipal como cumprimento de seu poder-dever de realizar o adequado ordenamento da cidade.
Diferentemente da usucapião, que não pode incidir sobre bens públicos, esses autores, pelas razoes já declinadas, entendem que a desapropriação judicial indireta pode recair sobre os bens públicos dominicais, justamente porque não há a prescrição aquisitiva; há contraprestação, pois a propriedade vai ser transferida mediante o pagamento da justa indenização.
Para que aconteça a alienação de bens públicos dominicais devem ser obedecidas as exigências legais. Isto é, os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial não são alienáveis enquanto conservarem tal qualificação, somente após a edição da lei que declara a desafetação (passando a categoria dos bens públicos dominicais) é que podem ser alienáveis.
Dentro dessa perspectiva, podem surgir duas circunstâncias: ou o imóvel público já está desafetado e o juiz fixa a indenização; ou o magistrado espera o poder legislativo editar a lei que desafeta o bem público de uso comum/especial.
Processualmente falando, a sentença que fixar o valor da indenização não tem o condão de transferir a propriedade. O enunciado 241 da Jornada de Direito Civil estabeleceu que enquanto a indenização não for paga, não se pode efetivar o registro:
241 - Art. 1.228: O registro da sentença em ação reivindicatória, que opera a transferência da propriedade para o nome dos possuidores, com fundamento no interesse social (art. 1.228, § 5º), é condicionada ao pagamento da respectiva indenização, cujo prazo será fixado pelo juiz.
Destarte, é importante frisar que a terra particular e a terra pública desafetada, abandonada ou devoluta, que não recebem utilização e não cumprem a sua destinação, não podem, sob qualquer pretexto, dificultar o acesso à moradia.
6. Considerações Finais
Com base nos argumentos apresentados, resta claro que todo programa de governo deve prever a promoção do direito à habitação regular, sem se esquecer dos problemas urbanísticos como a registrabilidade dos imóveis dentro do território municipal.
Falar da importância do direito à propriedade sem contemplar a regularização registral dos bens imóveis, significa perpetuar um paradoxo jurídico e social, que põe em xeque a afirmação da existência do cidadão.
É claro que essa meta não pode ser emergencial, porque nem todos os entes municipais têm recursos para executar em um exercício financeiro as ações necessárias para atenuar esse grave problema. Isso porque tais iniciativas cuidam de um tema bastante denso, que requer estudo multidisciplinar e, principalmente, arrecadação tributária.
Convém ressaltar que isso deveria fazer parte de todo programa de governo submetido à aprovação popular.
Já passou da hora de a interpretação acerca do regime jurídico público ser redimensionada, contemplando os fundamentos, objetivos e princípios erigidos em caráter constitucional. Felizmente, a ideia de que os bens públicos são intocáveis está aos poucos perdendo espaço quando ocorrem situações como a apresentada nesse artigo.
A Justiça, enquanto poder constitucional, não é uma extensão do Poder Legiferante, muito menos do alto escalão da prefeitura: quem tem que planejar é o gestor; quem têm de criar mecanismos legislativos e realizar fiscalização orçamentária-financeira são os vereadores.
Os poderes instituídos em cidades pequenas precisam abandonar essa cultura de buscar o poder pelo poder. Quando essa prática secular for rompida, será possível dar um passo no sentido de definir instrumentos e condições necessárias para a legalização da posse das terras urbanas invadidas.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Supremo Tribunal Federal, o direito à moradia e a discussão em torno da penhora do imóvel do fiador. In: FACHIN, Zulmar (coord.). 20 anos de Constituição cidadã. São Paulo: Método, 2008.
[1] Advogado. Professor orientador, graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, professor da Universidade do Estado de Pernambuco - Campus Petrolina.
Formado em Direito pela Faculdade de Petrolina (FACAPE) e especialista em Direito Público Municipal pela mesma IES. Advogado militante na área de Direito Público. Professor de Direito da FACAPE (2018-2019), Uninassau (2020) e UniFTC (2022). Juiz Leigo no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (2019).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDRADO, Bruno Rafael Paixão. A desapropriação judicial indireta e seus efeitos na municipalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52571/a-desapropriao-judicial-indireta-e-seus-efeitos-na-municipalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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