LUIZA ALVES CHAVES: Advogada. Mestranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense. (Coautora)
Resumo: O presente artigo trata da problemática social enfrentada pela sociedade moderna, sob os prismas da questão social e da nova questão social, as quais impedem uma melhoria na coesão social. Marcada pela vulnerabilidade e pela exclusão, com significativas diferenças de poder aquisitivo entre as classes sociais, a sociedade moderna atrai a atuação estatal tendente a amenizar as distorções materiais nela existentes, implementando políticas do Estado Providência ou Estado de Bem-Estar Social.
Palavras chave: questão social; coesão social; exclusão social; e vulnerabilidade.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A questão social versus a nova questão social. 2. Bem estar social e coesão social. Considerações finais. Referências Bibliográficas.
Com a Revolução Industrial e o desenvolvimento das relações de trabalho, evidenciou-se uma nova relação a qual se estabeleceu entre o capital e o trabalho. Esta relação proporcionou a criação de uma dicotomia entre a classe dos trabalhadores e dos detentores de meios de produção diante da exaustiva exploração a que estes submetiam aqueles. A esse embate entre capital e trabalho se deu o nome de questão social.
Esse estado de coisas não se desfez ao longo do tempo e permanece existindo na sociedade moderna, de maneira atenuada, mas marcada pela elevada desigualdade social, e grandes disparidades de poder aquisitivo entre as classes sociais. Diante da exclusão social, o Estado passou a se preocupar com mecanismos de proteção social, que passaram a ser implementados de modo a amenizar aquelas disfunções. O Estado de Bem Estar Social é um desses mecanismos.
O Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State é notoriamente conhecido como aquele que provê diversos benefícios e serviços para os indivíduos, atuando como um agente da promoção da igualdade social e da organização econômica. Nesta organização política, o Estado se torna responsável por regulamentar todos os aspectos sociais, econômicos, e políticos do país.
O Welfare State, expressão utilizada pelos ingleses para designar o Estado de Bem-estar é bem mais recente que a expressão Estado-Providência. Esta última, segundo referências históricas encontradas em Rosanvallon, foi usada em 1860, por Émile Ollivier, deputado republicano francês, ao criticar o aumento das atribuições do Estado, na esteira de uma concepção em voga na época, subordinada a uma filosofia social que só reconhecia o interesse particular de cada indivíduo e o interesse geral[1].
Num modelo assim organizado, o Estado experimenta acréscimo às suas atribuições tradicionais e passa assumir posição de prestador de serviços públicos e de proteção à população, ao reverso do modelo liberal, calcado na ideia de um Estado abstencionista, assegurando o gozo dos direitos fundamentais de liberdade e propriedade.
O desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social decorre da ampliação do conceito de cidadania advinda das crises econômicas e políticas enfrentadas durante o século XX, como forma de expurgar pretensões totalitárias e como alternativa ao socialismo. No âmbito do Welfare State, todos os indivíduos possuem direitos sociais, os quais são indissociáveis de sua existência, tendo, portanto direito a certos bens e serviços que devem ser garantidos pelo Estado. Dentre esses direitos, está a educação, a garantia de renda mínima, bem como a assistência médica gratuita, dentre outros.
Todavia, este modelo encontrou diversos problemas em sua implementação, diante dos elevados custos necessários para a disponibilização dos serviços de forma gratuita para toda a população. No Brasil, a situação não foi diferente, sendo complicado afirmar a existência de um Estado de Bem-Estar Social implementado ao longo de nossa história.
Fato é que no Brasil vivencia-se atualmente um agravante da situação, com a precarização cada vez maior dos serviços disponibilizados à população, diante dos sistemáticos cortes de repasses financeiros efetuados pelo governo. Para piorar o cenário, é evidente a nova questão social apontada por Rosavallon existente na sociedade brasileira, diante da reforma trabalhista implementada resultante da aprovação da Lei 13.467/2017, a qual trouxe uma maior flexibilização e precarização das relações de trabalho.
Diante da existência da questão social, e de outras problemáticas sociais na comunidade brasileira, verifica-se que estas se transformam em obstáculos à coesão social, seja diante da ausência de igualdade de resultados ou de oportunidades, a população não vê seus anseios e necessidades atendidos de forma satisfatória. Deve-se ressaltar ainda que diante da imensidão territorial de nosso país, a situação se agrava, já que cada região, cada estado, cada cidade pode ter a sua própria formulação de coesão social, por ter necessidades próprias daquele local, o que dificulta a implementação de mecanismos universais de proteção social.
A identificação e a utilização do termo questão social teve início a partir da distinção entre o setor econômico e social, ganhando força com o desenvolvimento da sociologia. Conforme leciona Montaño:
A expressão "questão social" começa a ser empregada maciçamente a partir da separação positivista, no pensamento conservador, entre o econômico e o social, dissociando as questões tipicamente econômicas das "questões sociais" (cf. Netto, 2001, p. 42). Assim, o "social" pode ser visto como "fato social", como algo natural, a-histórico, desarticulado dos fundamentos econômicos e políticos da sociedade, portanto, dos interesses e conflitos sociais. Assim, se o problema social (a "questão social") não tem fundamento estrutural, sua solução também não passaria pela transformação do sistema[2].
Embora esta distinção tenha se operado e a questão social tenha passado a habitar o campo da sociologia, tal não significa que ela afigura-se como elemento estranho à influência de influxos econômicos e políticos. Em verdade, a questão social deita suas bases em razões de matizes econômicos e políticos, como resultado da interação dialética entre ambos. Nesse sentido:
A “questão social” é separada dos seus fundamentos econômicos (a contradição capital/trabalho, baseada na relação de exploração do trabalho pelo capital, que encontra na indústria moderna seu ápice) e políticos (as lutas de classes). É considerada a “questão social” durkheimianamente como problemas sociais, cujas causas estariam vinculadas a questões culturais, morais e comportamentais dos próprios indivíduos que os padecem[3].
Esses fundamentos de ordem econômica e política desempenharam papel decisivo no surgimento da questão social. É que se convencionou entre os estudiosos do tema que apenas com o surgimento do Estado Moderno, e sobretudo com a revolução industrial, o mundo ocidental passou a reunir as condições necessárias ao estabelecimento da relação trabalho-capital e, por consequência, ao surgimento da questão social.
Essas condições, de caráter político e econômico, consistiam, em apertada síntese, na formação de uma poderosa classe produtora desejosa de que seus interesses fossem protegidos pelo Estado, associada a uma generalizada insatisfação, por parte deste grupo, com a marginalização política destes interesses. O Estado revelara-se, então, incapaz de atender aos anseios de um grupo que, afinal, era o responsável pela manutenção de sua riqueza, e, por isso, precisava ser reformulado.
Apenas com o sepultamento do Estado Moderno e com o surgimento do Estado Contemporâneo, portanto, é que se adota um modelo de organização social confessadamente forjado nos interesses dos detentores dos meios de produção. Nesse modelo, a atividade produtiva, embora detida pelas classes dominantes, era materialmente executada pela classe dominada, a quem ficava reservada condições abusivas de trabalho e todos os reveses sociais e econômicos daí decorrentes. Nessa mesma linha:
Tendo como pano de fundo os processos de urbanização e industrialização na sociedade capitalista da Europa no transcurso do século XIX, poderíamos afirmar que a “questão social” deve ser entendida como conjunto de problemáticas sociais, políticas e econômicas que se geram com o surgimento da classe operária dentro da sociedade capitalista. Ela relaciona-se necessariamente no continente europeu à ordem burguesa; ou seja, refere-se ao processo de desenvolvimento do próprio capitalismo[4].
É o cenário de evidente exclusão e desigualdade social, decorrente do embate entre os interesses da classe dominada com os da classe dominante, a que se denomina “questão social”. As condições de pactuação e execução do trabalho neste período inicial do Estado Contemporâneo deram azo a toda sorte de insatisfações relacionadas, sobretudo, a ausência de garantias mínimas estabelecidas em benefício daqueles que não dispunham de nada senão da própria força laboral, mal remunerada, ilimitadamente exploradora e responsável pela perpetuação de mazelas sociais.
A questão social, assim, seria a expressão do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e do seu ingresso no cenário político da sociedade, com a exigência de seu reconhecimento pelo empresariado e pelo Estado, cujo núcleo problemático cinge-se, em síntese, na regulamentação e organização da força de trabalho assalariada (PASTORINI).
Nesse contexto, a exploração do trabalho pelo capital ocasiona a acumulação da riqueza gerada pelo trabalhador nas mãos dos detentores dos meios de produção, criando desigualdade econômica e a separação da sociedade em classes antagônicas. Os trabalhadores, apesar de inseridos no mercado de trabalho, não possuíam os recursos necessários ao gozo de uma vida minimamente digna, nem para a aquisição de bens e serviços, por eles mesmos produzidos ou executados.
Assim, a pobreza e a miséria, expressões mais representativas da desigualdade característica da questão social, passam a ser visualizadas como um problema de distribuição do mercado. Isso porque a concentração de renda impedia ou dificultava sobremaneira o acesso dos trabalhadores ao mercado de consumo e, assim, ao mesmo tempo em que havia elevado contingente de mão de obra, inexistia uma massa de consumidores ampla o suficiente para absorver os bens e serviços ofertados na sociedade (MONTAÑO).
A despeito de algumas incursões políticas – Constituição Mexicana de 1917, Constituição de República de Weimar, de 1919, New Deal, nos Estados Unidos da América etc – tendentes a amenizar o quadro de pobreza e exclusão social que se apresentava entre os trabalhadores do início do século XX, a situação precária a que eles eram submetidos experimentou algum agravamento a partir do segundo pós-guerra, com a expansão do modelo capitalista de produção (MONTAÑO):
Assim, a atual estratégia neoliberal de “enfrentamento” da pobreza é diferente da concepção liberal clássica (até o século XVIII — onde se pensa a causa da miséria como um problema de carência, respondendo a ela com a organização da filantropia), é distinta da perspectiva pós-1835 (século XIX — que, a partir da constituição do proletariado como sujeito e de suas lutas desenvolvidas particularmente entre 1830-48, pensa o pauperismo como mendicância e como crime, tratando assim dela com repressão e reclusão), é diferente da orientação keynesiana (século XX até a crise de 1973 — que considera a “questão social” como um “mal necessário”, produzido pelo desenvolvimento social e econômico (ou como um insuficiente desenvolvimento), internalizando a “questão social” e tratando-a sistematicamente mediante as políticas sociais estatais, como direitos, por meio do fornecimento de bens e serviços)[5].
Com efeito, o modelo de produção capitalista está estruturado sobre bases exclusivistas, propiciando a produção e o acúmulo de riquezas por parte de quem detém o capital por meio da utilização da força de trabalho, contratada e executada nos limites mínimos de dignidade ou até abaixo deste. Isso significa que, embora o trabalhador participe de forma decisiva na produção da riqueza, esta não se converte à sua titularidade ou benefício; produz, mas não para si.
Assim, em sociedades pré-capitalistas a pobreza é o resultado (para além da desigualdade na distribuição da riqueza) do insuficiente desenvolvimento da produção de bens de consumo, ou seja, da escassez de produtos (ver Netto, 2001, p. 46). Contrariamente, no modo de produção capitalista a pobreza (pauperização absoluta ou relativa, conforme caracteriza Marx, 1980, I, p. 747 e 717) é o resultado da acumulação privada de capital, mediante a exploração (da mais-valia), na relação entre capital e trabalho, entre donos dos meios de produção e donos de mera força de trabalho, exploradores e explorados, produtores diretos de riqueza e usurpadores do trabalho alheio[6].
A intervenção estatal, contudo, não se revelou de todo insuficiente. Isso porque, desde o século XIX os países europeus passaram a notar a necessidade de atuação do poder público no sentido de operar pequenas correções nas dificuldades advindas pelo modelo de produção, prática que se espalhou pelo ocidente (ROSAVALLON). No entanto, a preocupação com a ideia de um Estado-Prestacional ou Estado-Providência, como tem sido denominado, voltava-se mais ao objetivo de conter a eclosão de revoltas sociais e ampliar o mercado de consumo, do que com o estabelecimento de uma igualdade substancial.
A partir da década de 1970 iniciou-se o desenvolvimento de pesquisas acerca da existência de uma dita nova questão social, originada do acúmulo de problemas da sociedade pós-moderna, como o acentuado desemprego e a exclusão social e econômica, decorrentes do agigantamento do Estado Providência e de falhas na gestão deste. Trata-se de período em que, uma vez mais, as questões atinentes aos direitos sociais passam a ocupar a centralidade dos esforços estatais:
O surgimento de uma nova questão social traduz-se pela inadaptação dos antigos métodos de gestão do social, como testemunha o fato de que a crise do Estado Providência, diagnostificada no fim dos anos 1970, mudou de natureza, iniciando uma nova fase a partir do princípio da década de 1990. Além dos problemas lancinantes de financiamento, e das disfunções sempre onerosas dos aparelhos estatais, são discutidos os princípios fundamentais da organização da solidariedade e a própria concepção dos direitos sociais[7].
Os estudiosos da nova questão social acreditam que o contexto de desigualdade do século XIX e início do XX foi superado pelo Estado Providência. Contudo, a adoção e a falta de planejamento deste modelo político-econômico teria sido responsável pelo surgimento de novos problemas, identificados sob o nome de nova questão social. Nesse cenário, o desenvolvimento tecnológico aparece como causa principal do aumento do desemprego e oportuniza a precarização das condições de trabalho.
A precarização, resultado da reestruturação internacional do capitalismo nas últimas décadas, segundo o autor, conduz a uma desestabilização dos estáveis que contribui para aumentar a vulnerabilidade social. Esse crescimento da vulnerabilidade (que seria produto da degradação das relações de trabalho e das proteções correlatas) supostamente estaria indicando a presença de uma “nova questão social”[8].
A precarização consistiria num dos mais evidentes reflexos da nova questão social, ante o aumento do desemprego como circunstância favorável ao desenvolvimento de novos modelos de pactuação do trabalho, tendentes e restringir direitos. Esses novos modelos podem ser bem exemplificados nas figuras da terceirização do trabalho, contrato por tempo determinado, jornadas parciais e, sobretudo, à genérica admissão do discurso da flexibilização de direitos como instrumento apto a garantir o emprego:
Ora, o debate sobre a questão social não pode ignorar este pano de fundo em que as características do trabalho estão profundamente transformadas. Estando estreitamente associada ao esboroamento da sociedade salarial e aos fenómenos de desemprego e de precarização, a exclusão não corresponde apenas a situações individuais, mas a “uma angústia colectiva face ao risco de perda do emprego e das regalias sociais” (Paugam, 1997, p. 35). Como sustenta Bourdieu (1988), hoje a precariedade está em toda a parte, agindo directamente sobre aqueles que toca (e que deixa sem condições de se mobilizarem) e indirectamente sobre todos os outros, pelo medo que suscita e que é metodicamente explorado pelas estratégias de precarização, como a introdução do princípio da flexibilidade[9].
Neste novo estado de coisas, também, a exclusão parece se operar não decisivamente pelo estabelecimento de um modelo estatal voltado aos interesses do capital, mas por dificuldades circunstanciais advindas de políticas públicas malsucedidas, insuficiência dos serviços de assistência social e uma enorme dificuldade de inclusão social e econômica de determinados grupos de pessoas. Nesse sentido, constatou-se que:
Na década de setenta, a sociedade francesa rendeu-se a uma constatação: a pobreza persiste, apesar do crescimento econômico. Nesse contexto, a noção de exclusão aparece para designar os inadaptados sociais (deficientes físicos, pessoas inválidas, doentes mentais, crianças abandonadas, menores delinquentes, suicidas, alcoólatras), enfim, indivíduos marcados por dificuldades de sociabilidade ou a-sociais. A esses também se juntavam outras categorias, como vagabundos, antigos delinquentes, prostitutas que não conseguiam encontrar trabalho, e também milhares de famílias das bidonvilles11 – que não encontravam trabalho e viviam de expediente[10].
O problema da superação da dificuldade de inclusão destes indivíduos não teria sido adequadamente enfrentado pelo Estado. Ao reverso de se adotarem políticas de ampliação da qualificação profissional, teria sido objeto de preferência do poder público a assunção de que grupos como os acima definidos estariam irremediavelmente excluídos da sociedade, razão por que seriam considerados inválidos sociais:
A categoria da “invalidez social” foi inventada nos anos 1980, da mesma forma como se inventou a categoria do “desemprego” no fim do século XIX: para administrar populações que não se conseguia mais inserir normalmente na sociedade[11].
A ideia de invalidez, tal como tem sido recepcionada, provoca reações estatais não no sentido de solucionar a causa da exclusão social ou da invalidez, mas no de garantir a subsistência, em patamares mínimos, àqueles que por um infortúnio ou por condições pessoais encontram-se alijados da participação social e econômica. Portanto, para solucionar problemas característicos do Estado-Providência, adota-se, curiosamente, medidas próprias deste mesmo modelo de organização, tal como faz o Brasil, com a implementação do programa bolsa-família.
O Bem Estar Social é a organização política que irá se preocupar em assegurar à sociedade uma qualidade mínima de vida, fornecendo serviços sociais básicos, sistema de transferência de renda, mecanismos jurídicos de proteção ao individuo, dentre outros bens e serviços.
A Coesão social, por sua vez, diz respeito à eficácia com que os serviços e mecanismos implementados pelo Estado irão atuar, de modo a minimizar a exclusão social. Uma sociedade será coesa, portanto, quando apresentar mecanismos eficazes para promover a inclusão social, diminuindo as desigualdades sociais existentes.
A coesão social refere-se, pois, tanto à eficácia dos mecanismos instituídos de inclusão social como aos comportamentos e apreciações de parte dos sujeitos que conformam a sociedade. Esses mecanismos incluem, entre outros, o emprego, os sistemas educacionais, a titularidade de direitos e as políticas que fomentam a eqüidade, o bem-estar e a proteção social. Já os comportamentos e as apreciações de parte dos sujeitos abrangem âmbitos tão diversos quanto a confiança nas instituições, o capital social, o sentido de pertencimento e solidariedade, a aceitação de normas de convivência e a disposição para participar em espaços de deliberação e em projetos coletivos[12].
De modo resumido, pode-se dizer que “a coesão social é definida como a dialética entre mecanismos instituídos de inclusão e exclusão social e as respostas, percepções e disposições dos cidadãos diante do modo como tais mecanismos funcionam[13]”. Uma sociedade coesa pode ainda ser aferida pelo sentimento de pertencimento dos cidadãos àquela comunidade, já que aquele cidadão preterido, que não tem direitos reconhecidos ou garantidos, pode não se sentir como parte integrante da comunidade.
Assim, é possível inferir que a coesão social se refere tanto à eficácia dos mecanismos instituídos de inclusão social como aos comportamentos e avaliações dos sujeitos que fazem parte da sociedade. Entre esses mecanismos, destacam-se o emprego, os sistemas educacionais, a titularidade de direitos e as políticas para promover a igualdade, o bem-estar e a proteção social[14].
Aqueles indivíduos que não se sentem como parte integrante da comunidade, que são excluídos dos instrumentos e mecanismos de proteção social a fim de apaziguar a desigualdade econômica, podem ser considerados como indivíduos desconectados da sociedade, e, portanto, caracterizar uma exclusão social existente.
A desfiliação faz com que os indivíduos não estejam mais inscritos nas formas coletivas de regulação, de proteção social, o que os torna “indivíduos portadores de carências”, desde econômicas até simbólicas. Têm-se, então, indivíduos desconectados da sociedade, salientando-se, porém, que esse conceito refere-se a processos feitos de rupturas e pertencimentos e não a uma situação estática. Castel (2003) distingue três zonas de variação da coesão social: 1. Uma zona de integração social que não apresenta dificuldades reais; 2. Uma zona de vulnerabilidade onde se acumulam precariedade de empregos e fragilidade de suportes relacionais; 3. Uma zona de exclusão onde estão concentrados os indivíduos mais fragilizados[15].
Uma sociedade em que os indivíduos tenham um mínimo de bem estar compatível com o desenvolvimento alcançado por aquele país será uma sociedade coesa, já que garantirá a integração social destes indivíduos, que não estarão à margem da sociedade.
Também se aproxima da noção de coesão social a de integração social, entendida como o processo dinâmico e multifatorial que possibilita às pessoas participar do nível mínimo de bem-estar compatível com o desenvolvimento alcançado em um determinado país. Essa definição opõe a integração à marginalização[16].
A coesão social é um conceito mais amplo do que a equidade, porém relaciona-se à equidade, já que esta diz respeito à existência da igualdade de oportunidade e da igualdade de resultados. A igualdade de oportunidades nada mais é do que a garantia de que todos os cidadãos possuam o mesmo direito garantido, ao passo que a igualdade de resultados equivale a garantir a efetividade dos direitos para todos os cidadãos.
De modo exemplificativo, podemos colocar a questão do direito a saúde pública no Brasil, que é garantida constitucionalmente de forma gratuita a todos os cidadãos brasileiros, existindo portanto uma igualdade de oportunidades. Todavia, não há uma igualdade de resultados ao passo que na realidade parte da população não tem o direito na prática, devido a falta de investimentos públicos e inexistência de hospitais com capacidade para toda a população.
Fato é que em diversas cidades pequenas do interior do Brasil, a população se vê sem acesso a hospitais e a alguns procedimentos básicos, como exames e medicamentos que não são disponibilizados pela rede pública de saúde. O mesmo exemplo pode ser dado com o direito à educação, já que apesar de existir uma igualdade de oportunidades com sua previsão constitucional, não há uma igualdade de resultados, já que é de conhecimento público e notório que em algumas cidades rurais crianças precisam caminhar quilômetros ou se dirigir a outras cidades para receber o ensino escolar básico.
A igualdade de oportunidades encontra na educação um dos seus mecanismos privilegiados. Isso porque, mesmo em uma sociedade com grandes lacunas salariais e de renda, é possível conseguir maior eqüidade aumentando-se a igualdade de oportunidades entre os filhos de famílias dos estratos alto, médio e baixo para que tenham acesso a melhores postos de trabalho no futuro. Uma distribuição melhor de ativos simbólicos (entre outros, conhecimentos e habilidades) feita hoje facilita a melhor distribuição de ativos materiais (rendas, bens e serviços) no futuro, o que permite reverter a reprodução da pobreza entre gerações[17].
Um Estado de Bem-Estar Social irá buscar a coesão social, já que irá tentar garantir toda a assistência necessária para a população. Todavia, esse bem estar proporcionado para a comunidade não será o mesmo, havendo grandes diferenças entre as cidades, os estados e até mesmo países. Afinal, o bem estar de uma cidade com população majoritária rural, não será o mesmo bem estar de uma cidade onde a maior parte da população é urbana, tendo em vistas que suas necessidades não são as mesmas.
A coesão social será então buscada pelo governo de bem estar social, através de diversas ferramentas, dentre elas por meio da implementação de políticas públicas, sejam estas para proporcionar bens e serviços gratuitos para a população, ou ainda para garantir algum sistema de transferência de renda.
Como assinalado nas seções anteriores, a coesão social é uma relação dinâmica entre fatores objetivos e subjetivos que se relacionam entre si. A política pública pode exercer importante influência na coesão social mediante a ampliação das oportunidades produtivas, o fomento do desenvolvimento de habilidades pessoais, a conformação de redes mais inclusivas de proteção contra vulnerabilidades e riscos, e uma gestão eficiente das finanças públicas. Também em todas essas áreas um esforço sério e perseverante deve ser empreendido, a fim de dotar de plena legitimidade as instituições da democracia[18].
As políticas públicas implementadas pelo governo funcionarão como instrumentos de proteção social, a fim de se equalizar as disparidades econômicas existentes entre as classes sociais e promover a coesão social.
Conforme exposto nos tópicos anteriores, a questão social é um problema existente na realidade moderna, seja considerada apenas como a questão social “originária”, a problemática social gerada pela dicotomia entre capital e trabalho, ou ainda que se considere a nova questão social, como a precarização das relações de trabalho com a constante flexibilização dos contratos de trabalho e formas de empregos.
Ao mesmo tempo, percebe-se que a coesão social de uma comunidade será determinada por diversos fatores, dentre eles a equidade, aqui considerada como igualdade de oportunidades e igualdade de resultados. Neste diapasão, a existência da questão social caracterizada pelos elevados níveis de desemprego, e uma mão de obra reserva abundante para barateamento dos salários, formaria um obstáculo para a coesão social, e consequentemente ao sentimento de pertencimento dos indivíduos à sociedade.
Para Castel, a vulnerabilidade social traria em seu bojo a precariedade do trabalho e, ao mesmo tempo, a ausência dos suportes de proximidade, dos suportes sociais geradores de confiança. Desta forma, a questão social seria caracterizada por uma inquietação quanto à capacidade de manutenção da coesão social[19].
Da mesma maneira, a aferição da existência da nova questão social, com a consequente precarização das relações de trabalho, e a configuração de elevadas desigualdades sociais entre as classes, sem que haja instrumentos eficazes para promover a inclusão social será também um obstáculo para que a sociedade tenha um bom nível de coesão social.
Tal seria a “nova questão social”, ou seja, a crise do caráter integrador que o trabalho pode proporcionar, ocasionando a perda da coesão social e sofrimento dos indivíduos que não acessam mais um lugar na organização social através do trabalho. Desta forma, desemprego e precarização seriam as marcas da nova questão social. Como já mencionado, três processos marcariam o quadro no qual essa nova questão social se desenvolve: a desestabilização dos estáveis, a instalação da precariedade e o déficit de lugares[20].
Percebe-se assim que tanto a questão social quanto a nova questão social ensejariam o bloqueio na busca pela coesão social. Fato é que “o indivíduo hoje é vulnerável, uma vulnerabilidade gerada pelo afrouxamento dos mecanismos de proteção social[21]”, este estado vulnerável do indivíduo é decorrente das questões sociais existentes, as quais agravam as desigualdades sociais.
Cabe ao Estado, portanto, buscar novos mecanismos eficazes de promoção à inclusão social. Porém tais instrumentos devem se atentar para a superação das questões sociais, a fim de descaracterizá-las como um obstáculo à coesão social, podendo proporcionar um maior sentimento de pertencimento à comunidade, bem como uma maior equidade entre os indivíduos.
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[1] NOGUEIRA, 2001, p. 90
[2] MONTAÑO, 2012, p. 271)
[3] MONTAÑO, 2012, p. 274
[4] PASTORINI, 2004, p. 104.
[5] MONTAÑO, 2012, p. 277
[6] MONTAÑO, 2012, p. 279
[7] ROSAVALLON, 1998, p.23.
[8] PASTORINI, 2004, p. 65
[9] FERREIRA, 2008, p. 582
[10] IVO, 2010, p. 22
[11] ROSAVALLON, 1998, p. 102
[12] CEPAL, 2007, p.24
[13] CEPAL, 2007, p. 25
[14] FERRELLI, 2015, p. 01.
[15] ZIONI, 2006, p. 22/23.
[16] FERRELLI, 2015, p. 02
[17] CEPAL, 2007, p.70
[18] CEPAL, 2007, p.63
[19] WERLANG; MENDES, 2013, p. 749
[20] WERLANG; MENDES, 2013, p. 750
[21] WERLANG;MENDES, 2013, p. 751
Advogada. Mestranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense - UFF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Mylena Devezas. A questão social como obstáculo à coesão social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52597/a-questao-social-como-obstaculo-a-coesao-social. Acesso em: 23 dez 2024.
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