RESUMO: A presente pesquisa tem por finalidade a investigação do conteúdo material da culpabilidade, terceiro substrato do crime, buscando, por meio de um processo de revisão bibliográfica, a compreensão evolutiva do seu conceito. Para tanto, investigar-se-ão, de início, as circunstâncias do surgimento das teorias da culpabilidade no âmbito das ciências criminais, centralizando-se o estudo na Teoria Psicológica da culpabilidade; posteriormente, analisar-se-á a Teoria Psicológico-Normativa, e, ao final, estudar-se-á a Teoria Normativa Pura da culpabilidade, perquirindo-se, em todos os casos, as alterações efetivadas por tais teorias na estrutura dogmática do crime.
Palavras-chave: Culpabilidade. Teoria Psicológica da Culpabilidade. Teoria Psicológico-Normativa da Culpabilidade. Teoria Normativa Pura da Culpabilidade.
RESUMEN: El presente artículo científico tiene por finalidad la investigación del contenido material de la culpabilidad, tercer sustrato del crimen, buscando, por intermedio de un proceso de revisión bibliográfica, la comprensión evolutiva de su concepto. Para eso, se investigarán de inicio las circunstancias del surgimiento de las teorías de la culpabilidad en el ámbito de las ciencias criminales, centralizándose el estudio en la Teoría Psicológica de la culpabilidad; a continuación, se analizará la Teoría Normativa y al final se estudiará la Teoría Puramente Normativa de la culpabilidad, analizándose, en todos los casos, las alteraciones efectuadas por estas teorías en la estructura dogmática del crimen.
Palabras clave: Culpabilidad. Teoría Psicológica de la Culpabilidad. Teoría Normativa de la Culpabilidad. Teoría Puramente Normativa de la Culpabilidad.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A Teoria Psicológica da Culpabilidade; 2 A Teoria Psicológico-Normativa da Culpabilidade; 3 A Teoria Normativa Pura da Culpabilidade; 4 O conceito e o fundamento material da Culpabilidade sob o prisma da Teoria Normativa Pura; Conclusão; Referências.
Por meio de uma apreciação sensitiva do ambiente externo, observa-se que inúmeros fatos se desenlaçam a todo instante, percebendo-se a existência tanto de acontecimentos produzidos sem intervenção humana quanto de situações concretizadas por meio de sua ação. Dentre a variedade de fatos realizados pelo homem, alguns são taxados pela sociedade de criminosos enquanto outros não recebem tal alcunha, mantendo-se alheios ao sistema de repressão e de controle social estruturado por meio do Direito Penal. Nesse contexto, por intermédio da Teoria Geral do Delito, estudam-se os atributos necessários à demarcação de um fato como infração penal[1], reconhecendo-se, no arcabouço conformacional do crime, um geminado juízo de desvalor, o primeiro incidente sobre certa obra humana, e o segundo, sobre o autor do referido ato; a este conceito se lhe atribui a designação culpabilidade; àquele, injusto penal.[2]
Nesse sentido, a despeito de Juarez Cirino dos Santos, seguindo parcela da doutrina alemã, compreender o injusto penal como um ente conceitual essencialmente unitário[3], a maioria[4] dos doutrinadores brasileiros o desconjunta nos elementos da tipicidade e da antijuridicidade, os quais, somados à culpabilidade, formam a concepção tripartida do delito.[5] A culpabilidade é, portanto, ao lado da tipicidade e da antijuridicidade, um dos elementos conformadores do conceito analítico ou anatômico do crime, passando a escorreita compreensão dessa espécie de fato humano pela análise de cada um de seus elementos.
Sem se adentrar, todavia, à análise dos atributos da tipicidade e da antijuridicidade, o presente artigo tem por finalidade a investigação do conteúdo material da culpabilidade, terceiro substrato do crime, buscando-se, por meio de um processo de revisão bibliográfica, a compreensão evolutiva do seu conceito. Para tanto, investigar-se-ão, de início, as circunstâncias do surgimento das teorias da culpabilidade no âmbito das ciências criminais, centralizando-se o estudo na Teoria Psicológica da culpabilidade; posteriormente, analisar-se-á a Teoria Psicológico-Normativa e, ao final, estudar-se-á a Teoria Normativa Pura da culpabilidade, perquirindo-se, em todo caso, as alterações efetivadas por tais teorias em relação à estrutura dogmática do crime.
Segundo Cezar Roberto Bitencourt, a antijuridicidade e a culpabilidade encontravam-se inicialmente imersas sob o mesmo manto organizador da então vigente noção de crime, somente tendo a culpabilidade passado a se enquadrar como um elemento autônomo do delito com o desenvolvimento da dogmática jurídico-penal ocidental a partir de meados do século XIX.[6] Conforme as lições do citado professor, mesmo antes de atingir esse grau de importância dentro da teoria geral do delito, a concepção de culpabilidade já havia ganhado distantes traçados de estruturação teórica no período da concretização do Direito Penal italiano da Baixa Idade Média, tendo passado pelos ideais de Direito Natural de Puffendorf, até desembocar em sua sistematização conceitual contemporânea, iniciada por Adolf Merkel e por Binding.[7]
Nesse contexto, foi precisamente com a decadência da concepção natural de culpabilidade que se tornou possível o aparecimento da Teoria Psicológica, a primeira das clássicas teorias da culpabilidade a ser sistematizada:
Na segunda metade do século XIX, a teoria da liberdade de vontade entra em franco declínio, tornando insustentável o conceito de culpabilidade do Direito Natural, abrindo, assim, a oportunidade para o surgimento da concepção psicológica da culpabilidade, característica da atitude do positivismo de orientação fática.[8]
Encontrando seu fundamento no positivismo científico do século XIX[9], a Teoria Psicológica utilizava, como alicerce conceitual, o entendimento causal de Liszt e de Beling sobre a ação, considerando ser o delito dividido em duas estruturas bem delineadas, uma de caráter externo ao agente, composta pelo fato típico e pela antijuridicidade, e outra de âmbito interno, a culpabilidade, que consistiria no vínculo psicológico entre o fato e o seu autor.[10] Desse modo, assumindo o conceito mecanicista da ação, o qual estabelecia que a conduta, integrante do aspecto objetivo do delito, poderia ser inicialmente definida um movimento humano modificador do mundo exterior, a Teoria Psicológica exigia, para a justificação da responsabilização do causador de tal alteração, a existência do componente subjetivo representado pela ligação essencialmente psicológica entre o fato exteriorizado e o seu agente realizador.[11]
Sobre o tema, o professor Miguel Reale Jr. assevera:
De acordo com a teoria causal da ação, o resultado é fruto de um movimento muscular dominado pela força psíquica que o impele. Seriam, então, dois elementos diversos e que distintamente devem ser analisados: o elemento exterior, causador do resultado, em virtude do qual a ação é juridicamente relevante; e o elemento interior, que torna a ação atribuível a alguém. É a separação total entre a realização da vontade e o conteúdo da vontade. [...] A teoria tradicional considera a culpabilidade como vínculo psicológico que une o autor ao delito e em razão do que é responsável pelo mesmo.[12]
Para o referido modelo de sistematização do delito, consubstanciar-se-ia o vínculo psicológico entre o fato e o seu autor no dolo, denotativo da consciência e da vontade de produzir o resultado, e na culpa, denotativa de negligência ou de imprudência, formando-se, com tais conceitos, a culpabilidade. Segundo tal compreensão, portanto, o aludido substrato possuiria como espécies apenas o dolo e a culpa, aos quais se deveria acrescer ainda um pressuposto de aferição, a imputabilidade.[13]
Acerca do assunto, Rogério Sanches Cunha aduz:
A teoria psicológica é aplicável apenas no âmbito do causalismo e sustenta, em resumo, que a culpabilidade consiste na relação psíquica entre o autor e o resultado, na forma de dolo ou culpa, sendo seu único pressuposto a imputabilidade.[14]
Ratificando a compreensão exposta, de modo a designar a imputabilidade não como um elemento, mas sim como uma condição de aferição da culpabilidade, o professor Miguel Reale Jr. a define como a aptidão do agente de entender o caráter antijurídico do fato e de determinar-se em conformidade com esse entendimento:
A imputabilidade ‘como capacidade de entender o caráter criminoso do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento’ é condição da culpabilidade, cujo conteúdo se exaure no dolo e na culpa.[15]
No mesmo sentido, com base na Teoria Psicológica, Ronaldo Tanus Madeira descreve a imputabilidade como um pressuposto de existência do liame psicológico do agente com o injusto penal por ele praticado, devendo-se-lhe outorgar a consideração jurídica, portanto, de condição de culpabilidade:
Um doente mental jamais poderá agir com dolo ou culpa, porque, sem a capacidade psíquica para a compreensão do ilícito, não há nenhuma relação psíquica relevante para o Direito Penal, entre o agente e o fato. Sem a imputabilidade, não se perfaz a relação subjetiva entre a conduta e o resultado. Não se pode falar em dolo ou culpa de um doente mental. O dolo e a culpa, como formas de exteriorização da culpabilidade em direção à causação do resultado, pressupõem a imputabilidade do agente.[16]
Desse modo, deve-se reconhecer que a Teoria Psicológica, com base no positivismo científico do século XIX[17], rechaçava a existência de qualquer elemento axiológico no conceito de culpabilidade, considerando-a como o elemento subjetivo fundamentalmente psicológico responsável pela congregação do fato humano exteriorizado e de seu agente, sendo a imputabilidade um mero pressuposto lógico de sua aferição, e não um de seus elementos estruturantes.
Empós inicial êxito, a Teoria Psicológica restou sobrepujada pela Teoria Normativa ou Psicológico-Normativa da Culpabilidade, a qual teve como principais elaboradores Reinhard Frank, James Goldschmidt, Berthold Freudenthal e Edmund Mezger.[18] Concretizou-se, nesse momento, a revolução científica engendrada pela metodologia neokantiana, ou (re)valorativa, na concepção clássica do delito, nela se incluindo estruturas de natureza normativa.[19] O professor Miguel Reale Jr., decompondo a progressão axiológica realizada sobre a então acepção da culpabilidade, assevera que Reinhard Frank inseriu, em seu conceito, a necessidade de aferição da reprovabilidade do agente pela ação perpetrada, estabelecendo uma primeira compreensão não puramente psicológica para o terceiro substrato do delito:
O primeiro jurista a inserir, na estrutura do delito, a normatividade da culpabilidade foi Frank. Para Frank a culpabilidade não se restringe à verificação da existência de liame psicológico, ou de ausência de diligência, mas exige, além desses elementos, o da reprovabilidade.[20]
Conforme os ensinamentos de Miguel Reale Jr., a partir do baldrame conceitual de culpabilidade edificado por Reinhard Frank, que vislumbrou a reprovabilidade em sua formulação estrutural, Berthold Freudenthal estatuiu a exigibilidade de outra conduta como o fundamento material para a aferição da censurabilidade comportamental do agente[21]:
Considera Freudenthal que a culpabilidade é reprovação ao agente, por ter agido contra o direito, quando poderia não o ter feito. A culpabilidade é a reprovação por ser exigível um comportamento diverso e é pela análise do poder do agente que se realiza o juízo de reprovação.[22]
A Teoria Psicológico-Normativa, portanto, foi responsável por fazer da culpabilidade um conceito mais abrangente que o até então estabelecido pela Teoria Psicológica, trazendo para junto do dolo e da culpa, antes espécies únicas da culpabilidade, o componente introduzido por Freudenthal para a aferição da reprovabilidade da conduta perpetrada pelo agente: a exigibilidade de outra conduta.[23] A Teoria Psicológico-Normativa transformou ainda a compreensão dogmática da imputabilidade, antes mero pressuposto de reconhecimento da culpabilidade, elencando aquela dentre os elementos conformadores desta.[24] O terceiro substrato do delito, desse modo, passou a ser constituído pelo elemento psicológico do agente, dolo ou culpa, e por dois elementos normativos: a exigibilidade de conduta diversa e a imputabilidade.
Ademais de propiciar a multiplicação dos elementos do referido substrato, a Teoria Psicológico-Normativa demudou a estruturação material do dolo, parcela subjetiva da culpabilidade, inserindo-lhe um novo componente, a consciência atual da ilicitude, elemento de natureza puramente normativa.[25] Aflorou-se então a suplantação da concepção puramente psicológica do dolo, conceituado como consciência e vontade de produzir o resultado, pela sua acepção híbrida, com o acréscimo da consciência atual da ilicitude do fato, mantendo-se a sua localização estrutural no terceiro substrato do crime [26]:
Enfim, a partir desta teoria normativa, dolo e culpa deixam de ser considerados como espécies de culpabilidade [...] Passam a constituir, necessariamente, elementos da culpabilidade, embora não suficientemente. [...] o dolo que era puramente psicológico, passa a ser também um dolo normativo, o dolus malus, constituído de vontade, previsão e consciência da ilicitude, os dois primeiros elementos psicológicos, e o último, normativo.[27]
De fato, se, sob o fundamento da teoria vigente no período clássico, o dolo possuía somente elementos psicológicos (consciência e vontade de produzir o resultado), com o advento da Teoria Psicológico-Normativa, o dolo, tornando-se híbrido, passou a ser composto também por um elemento de natureza axiológica autorizador da reprovabilidade do agente, a consciência atual da ilicitude do fato. Rogério Greco, elucidando o conceito de dolo híbrido a partir do reconhecimento conjunto dos seus elementos psicológicos e normativos, outorga-lhe a alcunha dolus malus:
De mera relação psicológica entre o agente e o fato, a culpabilidade passou a constituir-se de um juízo de censura ou reprovação pessoal, com base em elementos psiconormativos. [...] Dolo seria a vontade e a consciência de realizar o fato proibido pela lei [...] O dolo passou a ser entendido como dolus malus, exigindo-se para a sua caracterização, além da vontade de realizar o fato típico, o conhecimento sobre a ilicitude do fato.[28]
Efetivamente, segundo a acepção de culpabilidade determinada pelos padrões axiológicos da Teoria Psicológico-Normativa, mostrar-se-ia criminalmente incensurável o indivíduo que agisse sem a compreensão racional da antijuridicidade ou da ilegalidade de sua conduta. O dolo, portanto, junto aos demais elementos introduzidos pela referida teoria no terceiro substrato do delito, passou a compor o núcleo material de censurabilidade do comportamento típico e antijurídico do agente. Nesse contexto, em virtude das alterações de viés axiológico concretizadas na gênese estrutural do conceito de culpabilidade do Classicismo então vigente, a Teoria Psicológico-Normativa deu início ao cognominado Sistema Neoclássico, o qual, ainda atrelado às bases do Causalismo Mecanicista[29], somente seria suplantado pelo afloramento do Sistema Final da Ação de Hans Welzel.
Segundo Rogério Greco, Hans Welzel, estremecendo as bases da dogmática criminal mecanicista vigente à sua época, reconheceu a inteligência humana como fator de determinação causal dos acontecimentos produzidos pelo homem.[30] De fato, ao admitirem a ação penalmente relevante como mero ato voluntário gerador de modificação exterior, os sistemas clássico e neoclássico abdicavam de utilizar a racionalidade consequencial humana como elemento estruturante de sua definição.
Sobre o tema, Rogério Greco assevera:
Conforme bem destacou Paz Aguado, ‘Welzel abandonou o pensamento abstrato e logicista próprio da teoria neoclássica para investigar a essência real da ação humana’. Redefiniu o conceito de ação de um ponto de vista ontológico, quer dizer, buscando as estruturas reais do ser. A ação, agora, não é concebida como mero ato voluntário que venha causar uma modificação no mundo exterior. Conforme observou Fernando Galvão [...] Welzel passa a analisar o delito utilizando-se como ‘pressuposto o fato de que a causalidade é obra da inteligência humana’.[31]
Efetivamente, tratando-se o ser humano de ente racional e mostrando-se-lhe intelectivamente possível a realização da previsão dos resultados advindos de seus comportamentos, observa-se que o artefato orientador de suas ações não pode ser outro que não a própria finalidade por ele almejada. Nesse sentido, segundo Hans Welzel, o homem somente obraria, causando modificações no mundo exterior, por lhe terem sido lógica e previamente aferíveis, ainda que minimamente, as consequências dos determinantes causais por si próprio perpetrados:
A ação humana é exercício de atividade final. A ação é, por isso, acontecer ‘final’, não somente ‘causal’. A finalidade ou o caráter final da ação se baseia em que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, estabelecendo, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, a consecução desses fins. Em virtude de seu saber causal prévio, pode dirigir os distintos atos de suas atividades de tal modo que oriente o acontecer causal exterior a um fim e assim o determine finalmente. Atividade final é um agir orientado conscientemente ao fim, enquanto que o acontecer causal não está dirigido ao fim, senão que é resultante dos componentes causais existentes em cada caso. Por isso a finalidade é vidente, a causalidade, cega.[32]
Com a superação dos sistemas mecanicistas da ação pela doutrina finalista de Hans Welzel, ao demover-se conceitualmente o elemento subjetivo, antes alocado na culpabilidade, para a estrutura conformacional da conduta típica, abriu-se o caminho teórico para a reformulação analítico-estrutural do terceiro substrato do delito, originando-se a denominada Teoria Normativa Pura da Culpabilidade. De fato, com o deslocamento da finalidade do agente para o núcleo do injusto penal e com a consequente extração da culpabilidade de todas as suas estruturas psicológicas, mantiveram-se, na estrutura deste substrato, somente os elementos normativos condicionantes da reprovabilidade do comportamento humano, o que explica o título de Teoria Normativa Pura.[33]
Ademais de tanto, cumpre salientar que, no deslocamento da finalidade do agente da culpabilidade para a conduta típica, o componente normativo do dolo (a consciência da ilicitude do fato) restou mantido no terceiro substrato do crime, volvendo o referido elemento subjetivo a se revelar genuinamente naturalístico, porquanto constituído, ao contrário da culpabilidade, exclusivamente de elementos psicológicos.[34] Relatando as movimentações estruturais ocorridas no conceito analítico de crime, Rogério Greco assevera:
A teoria finalista modificou profundamente o sistema causal. A começar pela ação, como vimos, que agora não mais podia dissociar-se da sua finalidade. Toda conduta humana vem impregnada de finalidade, seja esta lícita ou ilícita. Partindo dessa premissa, o dolo não mais podia ser analisado em sede de culpabilidade. Welzel o transportou para o tipo, dele afastando sua carga normativa, isto é, a consciência sobre a ilicitude do fato. O dolo finalista é um dolo natural, livre da necessidade de se aferir a consciência sobre a ilicitude do fato para a sua configuração. Na verdade, o elemento subjetivo foi conduzido para a ação. É através da ação que percebemos a finalidade do agente. A adequação da conduta ao modelo abstrato previsto pela lei penal (tipo) somente pode ser realizada com perfeição se conseguirmos visualizar a finalidade do agente.[35]
Sendo assim, sob o domínio do Finalismo de Hans Welzel e da consequente compreensão estrutural de culpabilidade delineada pela Teoria Normativa Pura, deve-se reconhecer, no terceiro substrato do crime, a existência de três estruturas constitutivas: a exigibilidade de conduta diversa, núcleo da censurabilidade, a potencial consciência da ilicitude, mantida no terceiro substrato apesar do deslocamento do componente subjetivo para a ação típica, e a imputabilidade, representativa da capacidade de reprovabilidade.
Nesse contexto, reconhecendo somente elementos normativos na conformação da culpabilidade, Rogério Sanches Cunha lhe estabelece uma concepção de natureza axiológica, definindo-a como o “juízo de reprovação que recai na conduta típica e ilícita que o agente se propõe a realizar”[36]. Segundo a sua compreensão, não se constituindo em mero pressuposto de aplicação da sanção criminal, mas sim em um elemento do arcabouço conceitual analítico do delito, a culpabilidade deve ser considerada um juízo de censura incidente sobre o autor de um injusto penal:
A culpabilidade deve ser tratada como terceiro substrato do crime, com seu juízo de reprovação extraído da análise sobre como o sujeito ativo se situou e posicionou diante do episódio com o qual se envolveu.[37]
Em reforço à compreensão exarada, André Carlos e Reis Friede conceituam a culpabilidade como o “juízo de reprovação pessoal que recai sobre a conduta daquele que praticou um injusto penal”[38], não se revelando aferível criminalmente a censurabilidade de comportamentos atípicos ou lícitos. De fato, como afirma Francisco de Assis Toledo, a incidência concreta do juízo de exprobração pessoal “pressupõe a existência de um ilícito penal, pois não é pensável um juízo de reprovação endereçado ao comportamento lícito, reto”[39].
Aprofundando o tema, Cézar Roberto Bittencourt define a culpabilidade como a “reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao direito, embora tivesse podido atuar de modo diferente de como o fez”[40]. O referido substrato, portanto, representa um juízo de desvalor juridicamente determinado e incidente sobre alguém que age ilicitamente a despeito de poder assim não agir, fundamentando-se a reprovabilidade do agente nessa possibilidade de atuação diversa decorrente de sua liberdade de ação, ou seja, fundamentando-se a reprovabilidade do agente em seu livre-arbítrio.[41]
Proveniente das teses desenvolvidas pela Escola Clássica, a Teoria do Livre-Arbítrio estabelece que o homem é moralmente livre para escolher seu modo de agir perante os fatos da vida em sociedade, fundamentando-se a responsabilidade penal do indivíduo em sua própria responsabilidade moral.[42] Explicando a utilização do livre-arbítrio como baldrame material da reprovabilidade criminal e, consequentemente, da punibilidade do autor de um injusto penal, o professor Antônio Moniz Sodré de Aragão assevera:
Este livre arbítrio é que serve, portanto, de justificação às penas que se impõem aos delinquentes como um castigo merecido, pela ação criminosa e livremente voluntária. Só é punível o que é moralmente livre e, por conseguinte, moralmente responsável, porque só estes podem ser autores de delitos. Se o homem cometeu um crime, deve ser punido porque estava em suas mãos abster-se ou, se o quisesse, praticar ao invés dele um ato meritório.[43]
Segundo a lição destacada, portanto, a efetivação do juízo de admoestação depende da possibilidade de ação diversa por parte do agente do comportamento desvirtuado, reprimindo-se aquele que, por livre vontade, pratica o injusto penal. Deveras, não estando a não realização da conduta típica e antijurídica sob o campo decisório do indivíduo, deve-se-lhe negar, pela concretização do ato, a exprobração criminal, obstando-se a inflição de sanções morais ou institucionais ao agente. Nesse contexto, tendo por base a Teoria Normativa Pura, deve-se precisar a definição de culpabilidade como o juízo de reprovação pessoal incidente sobre aquele que realiza um comportamento típico e antijurídico a despeito de possuir a liberdade de agir de outro modo, em conformidade com o Direito.
Em busca da compreensão do conteúdo material da culpabilidade, terceiro substrato da formação analítica do crime, realizou-se, no presente artigo, uma investigação bibliográfica acerca da evolução histórica de seu conceito. Inicialmente, observou-se o surgimento da Teoria Psicológica, que, tendo por base o conceito causal-naturalista ou mecanicista de conduta, exigia, para a justificação da responsabilização penal do autor de um fato típico e ilícito, a existência uma ligação psicológica entre o fato exteriorizado e o seu agente realizador, sendo esse liame subjetivo, representado pelo dolo e pela culpa, a própria culpabilidade.[44]
Posteriormente, em decorrência da influência de ideais neokantianos ou (re)valorativos sobre as ciências sociais, observou-se o surgimento da Teoria Psicológico-Normativa, incluindo-se, na culpabilidade, estruturas de natureza axiológica[45], como a reprovabilidade do agente.[46] O terceiro substrato do delito, então, passou a ser constituído pelo elemento psicológico do agente, dolo ou culpa, e pelos elementos normativos definidores da sua reprovabilidade, a exigibilidade de conduta diversa e a imputabilidade.
Finalmente, a partir da superação do sistema mecanicista da ação pela doutrina finalista de Hans Welzel, com a extração dos elementos subjetivos, dolo e culpa, da culpabilidade para o fato típico, observou-se o surgimento da Teoria Normativa Pura da Culpabilidade, mantendo-se, em sua estrutura, somente os elementos normativos condicionantes da reprovabilidade do comportamento humano: a exigibilidade de conduta diversa, a potencial consciência da ilicitude, e a imputabilidade.
Nesse contexto, tendo por base a construção histórica que acarretou o surgimento da Teoria Normativa Pura, estabeleceu-se uma compreensão não psicológica de culpabilidade, precisando-se o seu conceito como o juízo de reprovação pessoal incidente sobre aquele que realiza um comportamento típico e antijurídico a despeito da possibilidade de agir em conformidade com o Direito, fundamentando-se a sua reprovabilidade no livre-arbítrio.
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[1] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Espanhol/Português. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 01.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Espanhol/Português. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 01-03
[3] DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 6. ed. atualizada e ampliada. Curitiba: ICPC. 2014, p. 79.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 172
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 438.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 436
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Espanhol/Português. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 348
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 160
[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. P .161
[10] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 382
[11] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 125
[12] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 124
[13] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 161-162
[14] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral, volume único. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 273
[15] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 124
[16] MADEIRA, Ronaldo Tanus. A estrutura jurídica da culpabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 86.
[17] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 161
[18] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 163-166
[19] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 163-166
[20] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 131
[21] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 131-136
[22] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 135-136
[23] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 166
[24] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 166
[25] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 166
[26] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 166
[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 166
[28] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 384-386
[29] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 273
[30] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 386-387
[31] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 386-387
[32] WELZEL, Hans Apud: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 387
[33] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Espanhol/Português. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 322
[34] BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. p. 143.
[35] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 387-388
[36] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral, volume único. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 271
[37] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral, volume único. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 272
[38] CARLOS, André, FRIEDE, Reis. Teoria Geral do Delito: Primeiras Lições. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora. 2015, p. 285.
[39] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 310
[40] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000. Espanhol/Português, p. 323
[41] BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000. Espanhol/Português, p. 01-03.
[42] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 379
[43] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três escolas penais. p. 72 APUD: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p 380
[44] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 125
[45] BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 163-166
[46] REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 131
Servidor Público. Atuou como advogado de março de 2013 a junho de 2019. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. Aprovado nos concursos públicos de Promotor de Justiça do estado de Rondônia, de Defensor Público dos estados de Santa Catarina, de Alagoas e do Espirito Santo, de Consultor Legislativo da Câmara Municipal do Recife, de Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, de Analista Processual do Ministério Público do estado do Rio de Janeiro e de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do estado do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRAXEDES, Thiago Castro. O conceito material da culpabilidade: do vínculo psicológico à reprovabilidade. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52633/o-conceito-material-da-culpabilidade-do-vinculo-psicologico-a-reprovabilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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