Kelsen Mendonça de Vasconcelos[1]
RESUMO: A lei nº. 11.340/06 (lei Maria da Penha) inovou o ordenamento jurídico infraconstitucional pátrio no sentido de conferir meios jurídicos penais para a proteção da mulher em face da agressividade de pessoas, com os quais conviva ou haja convivido, mas sempre no afã de reduzir o índice de violência doméstica que se instalou no país. A Constituição Federal, em seu art. 5º, I, dispõe que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Trata-se de norma de cunho programático que busca conferir tratamento isonômico entre os sexos distintos. Sucede que homens e mulheres, pela lei da natureza, são desiguais em vários sentidos. Na maioria das vezes a mulher, por sua condição peculiar, fica desamparada. O tipo de violência que mais se afigura comum é a doméstica, familiar, bem como em qualquer relação íntima de afeto, ou seja, a mulher sendo agredida pelo cônjuge (ou companheiro), ascendente, descendente ou irmão. Por conta do silêncio peculiar ao seio do lar, os fatos violentos lá ocorridos ficam difíceis de serem comprovados, logo, a parte hipossuficiente (mulher) resta prejudicada. Pensando em coibir a agressividade no ambiente familiar, foi editada (no ano de 2006) a lei nº. 11.340, que vem trazer ao ordenamento jurídico mecanismos que enrijecem a legislação penal e processual penal para esse fato típico. A lei sob comento, além de dispor sobre temas conexos, alterou a legislação penal e processual penal mais sensivelmente criando os seguintes mecanismos: afastamento dos institutos da lei nº. 9.099/95; impedimento ao estabelecimento de penas de multa e de “cestas básicas”; definição exata do que é violência doméstica e familiar contra a mulher; estabelecimento de medidas protetivas à mulher diversas da prisão; criação de novo requisito para a concessão da prisão preventiva e tratamento diferenciado para desistência da representação em crimes de ação penal privada e pública condicionada. Portanto, embora a Lei nº. 11.340/06 não tenha criado um microssistema jurídico como são o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, conseguiu conferir às mulheres mais segurança e aos agressores a punição adequada.
Palavras-Chave: Violência Contra a Mulher, Lei Maria da Penha, Inovações.
ABSTRACT: The law no. 11.340/06 (Maria da Penha Law) innovated the legal infra parental in order to give criminal legal means for the protection of women in the face of aggression from people with whom lives or lived there, but always in the rush to reduce the rate of domestic violence who settled in the country. The Constitution, in its article 5, I, provides that “men and women have equal rights and obligations”. It is standard programmatic nature which seeks to confer isonomic treatment between the sexes separate. It turns out that men and women, by the law of nature, are unequal in many ways. Most often the woman, by his particular condition, is helpless. The kind of violence that seems most common is domestic and family, or a woman being assaulted by a spouse (or partner), parent, child or sibling. On account of the peculiar silence within the home, the violent events that occurred there are proven to be difficult, so the part weaker (woman) remains impaired. Thinking in curbing aggression in the family, was published (in 2006) the law no. 11.340, which brings the legal mechanisms to stiffen criminal law and criminal procedure for such fact. The law in addition to commenting on related issues have amended the criminal law and criminal procedure more sensitively creating the following mechanisms: removal of the institutes of law no. 9.099/95; impediment to the establishment of fines and “baskets”; exact definition of what is domestic and family violence against women, establishing protective measures for women various prison; creating new requirement for the granting of prison preventive and differential treatment for withdrawal from representation crimes prosecution public and private guests. Therefore, although the Law. 11.340/06 has not created a legal microsystem as are the Statute of Children and Adolescents and the Consumer Protection Code, could give women more security and appropriate punishment for the perpetrators.
Keywords: Violence Against Women, Maria da Penha Law, Innovations.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. 2.1 CONCEITO. 3 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI Nº. 11.340/06 12 3.1 NA LEGISLAÇÃO PENAL. 3.2 NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL. 4 PRISÃO PREVENTIVA E AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A violência no âmbito familiar é um problema social que não respeita limites de qualquer ordem, podendo ultrapassar as fronteiras do sexo, idade, classe social, raça, religião e grau de escolaridade, principalmente quando se trata de violência contra a mulher.
Manifestação antiga, a violência contra a mulher se faz presente em todos os estratos sociais, das mais abastadas às mais miseráveis, abrangendo um conjunto de relações sociais que tornam complexa sua natureza.
No Brasil, notadamente, há uma forçosa tendência de cuidar do problema como um fenômeno de menor importância e limitado ao âmbito interpessoal.
Todavia, os altos índices de casos de violência contra a mulher que vêm acontecendo, demonstram a necessidade premente de uma maior atenção para a questão.
Essa preocupação existe não apenas no Estado Brasileiro, bem como no restante do mundo, pôde ser observado pelas importantes convenções assinadas e ratificadas pelo Brasil, tais como a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (ONU) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (OEA).
Nesse contexto, em data de 07 de agosto de 2006, foi publicada a Lei nº. 11.340, cognominada de “Lei Maria da Penha”, em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006. Foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio com a finalidade de prevenir e punir de forma diferenciada os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, se caracterizado como eficaz proposta de mudança cultural e jurídica a ser implementada no sistema legal brasileiro.
A pressa em garantir uma proteção completa à mulher vítima de violência doméstica e familiar teve por consequência a confecção de um texto complexo e múltiplo para a Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), abarcando institutos previstos no ordenamento jurídico internacional, na Constituição da República Federativa do Brasil e em diversas normas infraconstitucionais.
A finalidade desta produção científica é examinar as principais inovações implantadas para o ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente no que se refere ao Direito Penal e Processual Penal, bem como averiguar alguns dos argumentos suscitados para aferir a constitucionalidade da referida lei.
Utilizamos como principais objetos de estudo para a confecção deste estudo o próprio texto da lei nº. 11.343/06, a Constituição da República Federativa do Brasil, o Código Penal Brasileiro, o Código de Processo Penal Brasileiro, a lei nº. 9.099/95 dentre outros diplomas legais e literaturas nacionais e internacionais.
Utilizando-se de uma pesquisa bibliográfica e mediante uma análise descritiva dos dispositivos legais alusivos às inovações, abordamos o tema abrangendo inicialmente a definição de violência doméstica e familiar contra a mulher e sua esfera de aplicação. Na sequencia, ingressamos no âmago do tema proposto ao trabalho, examinando as principais alterações trazidas pela “Lei Maria da Penha” na legislação penal e processual penal, analisando também alguns argumentos com relação à constitucionalidade suscitada por alguns doutrinadores. Trataremos também acerca da inaplicabilidade dos ditames da lei nº. 9.099/95 aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher (prevista de forma expressa pela lei nº. 11.340/06) e os questionamentos doutrinários a respeito de tal vedação.
Apesar de não ser um tema novo, a jurisprudência ainda titubeia quando se vê diante de alguns casos de violência doméstica e familiar e suas vicissitudes. Entretanto, não é nossa pretensão de esgotar o tema, nem de trabalhar todos os dispositivos da Lei, mas apenas analisar de forma sucinta e didática as novidades de maior relevância que esta norma legal implementou em nosso ordenamento jurídico, observando a importância e viabilidade de tais medidas em nossas condições sociais.
2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
De uma forma abrangente pode ser vislumbrado por violência o “emprego desejado de agressividade com fins destrutivos”, conforme leciona Jurandir Freire Costa em sua obra “Violência e Psicanálise” (1986, p.10).
Com espeque na legislação penal brasileira, a violência doméstica, ou no âmbito de uma relação íntima de afeto, denota atentar contra a integridade física do ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, prevalecendo-se o agente das relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade.
Dessa forma, nota-se que o sujeito passivo da ofensa abarca qualquer pessoa que faça parte do núcleo familiar, podendo ser crianças, idosos, mulheres e homens.
Sem embargo, o que neste momento interessa é a violência doméstica e familiar no diapasão da Lei “Maria da Penha” (11.340/06), cujo interesse se destina aos casos em que a violência é praticada contra a mulher.
A Convenção de Belém do Pará (1994), em seu art. 1º, estabelece que a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
Essa definição é valorosa na medida em que se refere à violência ocorrida no âmbito privado, evidenciando a violência doméstica praticada muitas vezes por parentes ou pessoas próximas da mulher.
Será baseado nesse enfoque que o presente trabalho desenvolverá o conceito de violência e familiar cometida contra a mulher à luz da Lei nº. 11.340/06.
2.1 Conceito
A definição de violência doméstica e familiar contra a mulher está exposto no próprio texto da Lei nº. 11.340/06:
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Do artigo citado devemos evidenciar alguns pontos relevantes.
Primeiro convém frisar que a Lei nº. 11.340/06 consolida um sujeito passivo próprio que se apresenta como sendo qualquer mulher que tenha sido vítima de agressão proveniente de violência doméstica e familiar. Entretanto, não estabelece um sujeito ativo específico, podendo o autor da violência doméstica ser tanto um homem quanto uma mulher.
Importante destacar o que explana o parágrafo único do artigo colacionado, o qual prescreve que as relações pessoais independem de orientação sexual, logo, depreende-se que as uniões homoafetivas entre mulheres estarão acobertadas pela lei.
A cabeça do artigo acima indicado aponta ação e omissão baseada no gênero. Dessa forma, pode ser entendido que o legislador definiu a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma violência de gênero.
Kronbauer e Meneghel tratam violência de gênero como:
[...] qualquer ato que resulta ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, inclusive ameaça de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade em público ou na vida privada, assim como castigos, maus tratos, pornografia, agressão sexual e incesto (2005, p.696).
A filósofa Marilena Chauí (1985) ao tratar a violência doméstica no âmbito das relações de gênero, vislumbrou a violência contra as mulheres como um resultado de dominação masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens quanto por mulheres, sendo a violência uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir.
Nesse prisma, a violência contra as pessoas do gênero feminino é uma das mais graves formas de discriminação em razão do sexo, ocasionando – por consequência – num ataque aos direitos humanos, na medida em que a conduta criminosa atinge sua liberdade e dignidade, causando-lhe danos físicos, sexuais e psicológicos.
Todavia, o requisito para que o ato ilícito seja considerado de violência doméstica e familiar contra a mulher, deve ele ser realizado numa das situações elencadas nos incisos do artigo 5º (doméstica, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto).
Dessa forma, considera-se que a violência contra a mulher será doméstica quando a conduta delitiva referida no caput ocorrer no ambiente de convívio permanente de pessoas, ainda que esporadicamente agregadas e com ou sem vínculo familiar ou afetivo entre si. Requer convivência contumaz e não se exige o parentesco ou relação de afetividade entre o agressor e a vítima. Assim sendo, podemos acreditar que esta definição abarca também os empregados domésticos, como sendo possíveis autores e vítimas de violência doméstica contra a mulher.
Com a finalidade de que a violência contra a mulher seja familiar, esse crime deve ser cometido entre pessoas que possuam laços familiares, podendo ser parentesco natural, por afinidade ou vontade expressa. Neste caso se faz necessária a existência de um vínculo familiar, ficando sem importância o aspecto objetivo de coabitação.
Relevante frisar que o inciso II do artigo 5º da lei nº. 11.340/06 conceitua família como sendo “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.
Por esse diapasão, nota-se que poderão ser causadores de violência familiar não apenas os cônjuges, companheiros ou amantes, mas também os pais, filhos, os padrastos, os enteados, os avós, os tios, os irmãos, os primos, dentre outros, pois, concordando com o que foi dito antes, o legislador não se importou com o gênero do agressor, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade.
Nesse contexto, de acordo com o que foi dito antes, podemos afirmar que um casal de mulher homossexual seria uma entidade familiar composta por seres que se consideram aparentados, unidos por afinidade e por um ato volitivo expresso.
A norma estabelece, ainda, que a violência contra a mulher poderá decorrer de qualquer relação afetiva íntima e, para que esta se configure, o agressor deve conviver ou ter convivido com a vítima, independentemente de coabitação, desconsiderando-se os vínculos domésticos e familiares.
Portanto, o legislador abrangeu tanto os casais de namorados e de noivos que não coabitam, como os ex casados ou ex companheiros, ao usar as terminações “conviva ou ter convivido”, reforçando o exposto alhures, que essas relações independem de orientação sexual, encampando casais hetero e homoafetivos.
Pelo exposto, podemos considerar que a violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer conduta com a finalidade de causar à mulher uma das seguintes consequências: morte, lesão, sofrimento físico, psicológico e danos moral ou patrimonial, desde que a ação ou omissão tenha sido praticada na unidade doméstica, no seio familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
3. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES INSERIDAS PELA LEI Nº. 11.340/06
O Brasil tem trabalhado bastante no sentido de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo – inclusive – assinado e ratificado importantes Convenções, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (ONU) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará,1994), organizada pela Organização dos Estados Americanos.
No ano de 2002, mediante a edição da Lei nº. 10.455, aditou-se o parágrafo único do art. 69 da Lei nº. 9.099/95 incluindo nele a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, referente ao afastamento do agressor do lar conjugal em casos de violência doméstica, a ser decidida pelo Juiz do Juizado Especial Criminal. Nos idos de 2004, com a publicação da Lei nº. 10.886, foi acrescentado no art. 129 do Código Penal um adendo, mais especificamente ao crime de lesão corporal leve, quando a infração penal é praticada com a qualidade de violência doméstica, majora-se a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses, bem como foi criado o décimo parágrafo do artigo 129, onde consta uma causa de aumento de pena (1/3) nos casos de lesão corporal grave, gravíssima e seguida de morte.
Apesar dos esforços legislativos, a violência doméstica persistiu em ampliar as estatísticas. O ordenamento jurídico brasileiro continuou necessitando de mecanismos eficazes para que essa proteção fosse garantida de forma plena.
Nesse caminho de trilhar uma proteção integral às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, o legislador, ao construir a Lei 11.340/06, outorgou algumas mudanças em nossa legislação infraconstitucional, sendo conveniente analisarmos nesse momento aquelas consideradas de maior importância.
3.1 Na Legislação Penal
A lei 11.340/06 trouxe três alterações nessa seara do ordenamento jurídico, as quais estão dispostas nos seus artigos 17, 43 e 44.
A primeira, alocada no art. 17, proíbe a aplicação de penas de “cesta básica” ou outras de prestação pecuniária ao agressor, bem como a conversão da pena em outra que seja o pagamento isolado de multa.
Ao tratar sobre “penas de cestas básicas ou outras pecuniárias” a lei está se referindo às restritivas de direitos previstas no art. 43 do código penal, que são aplicáveis em substituição das privativas de liberdade, conforme o disposto no art. 44 do mesmo código.
Analisando sistematicamente a vedação criada pelo artigo 17 da Lei nº. 11.340/06 e ao que está disposto no art. 44 do código penal, podemos compreender que tais penas restritivas de direito só substituirão as privativas de liberdade quando estas não forem superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou qualquer que seja a pena aplicada quando o crime for culposo (44, I, CP). Além disso, é necessário para a aplicação das penas restritivas de direito que o condenado não seja reincidente em crime doloso e as circunstâncias judiciais sejam favoráveis à substituição.
A bem da verdade, andou mal o legislador ao utilizar terminologias não técnicas no texto do art. 17 da lei nº. 11.340/06, uma vez que não existe previsão legal de pena de “cesta básica”, esta situação apenas ocorre quando na prestação pecuniária, ao invés de dinheiro, o juiz determina que o apenado cumpra a determinação mediante a dação de produtos ao órgão beneficiário.
Pretendeu o legislador com a edição desse dispositivo diminuir a sensação de impunidade que a prestação pecuniária causa ao infrator, vez que ele não se sentia pedagogicamente exortado quando era punido dessa forma.
As mesmas observações podem ser declinadas para a pena substitutiva de multa, na hipótese prescrita no § 2º do já mencionado art. 44 do CP. Logo, quando a pena de multa for aplicada como pena substitutiva, não será isoladamente e tampouco cumulada com pena de prestação pecuniária.
Todavia, necessário apontar que nos tipos penais em que há previsão de aplicar a pena de multa de forma alternativa, como, por exemplo, a prática do crime de ameaça (art. 147, CP), que comina pena alternativa de multa, combinando-se com as circunstâncias previstas no art. 59 do CP, que em seu inciso I possibilita ao juiz estabelecer dentre as penas cominadas a necessária e suficiente para reprovar e prevenir o crime, a pena de multa pode ser aplicada isoladamente (Nucci, 2013).
A segunda alteração na lei penal é a estabelecida pelo art. 43 do código penal, o qual aditou o texto do artigo 61, inciso II, alínea “f” do digesto penal, acrescentando a violência doméstica contra a mulher como circunstância agravante de qualquer crime previsto no ordenamento pátrio.
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:...
II - ter o agente cometido o crime:...
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;...
Necessário observar que nos casos em que o próprio tipo penal já fizer menção à violência doméstica e familiar contra a mulher, esta nova agravante é considerada como um bis in idem, logo, inaplicável.
A terceira e mais substancial mudança no direito penal material é a que se refere ao crime de Lesão Corporal Leve. O art. 44 da lei nº. 11.340/06 inovou o texto do §9º do referido artigo no quantum da pena, tendo reduzido a pena mínima de 6 (seis) meses para 3 (três) meses e aumentado a pena máxima de 1 (um) para (três) anos e acrescentou o §11, criando uma nova causa especial de aumento de pena, sendo esta apenas aplicável aos crimes praticados nas condições expostas no §9º.
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:(...)
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
(...)
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.
Com a mudança, o crime previsto no §9º não pertence mais ao rol dos crimes de menor potencial ofensivo (Lei nº. 9.099/95), pelo fato de sua pena ter extrapolado o limite de 2 (dois) anos para a pena máxima exigido pelo artigo 61 da referida lei.
3.2 Na Legislação Processual Penal
Neste ramo do ordenamento jurídico foi que a Lei nº. 11.340/06 concebeu a maior quantidade de inovações, justamente as de maior vanguarda para os fins aos quais ela se destina.
Será tratado neste tópico das mudanças que entendemos serem as mais relevantes e, para fins didáticos, em certos momentos será necessária a transcrição de alguns artigos da lei em comento.
A Lei nº. 11.340/06 dispõe, em seu art. 11, a garantia de proteção policial à mulher vítima de violência doméstica, diz ele:
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá,
entre outras providências:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder
Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco
de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou
do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
A garantia policial é um tipo de medida cautelar introduzida pela Lei nº. 11.340/06 e, levando em consideração a sua natureza, deve estar sempre escorada ao requisito “necessidade”, que se afigura fundamental à segurança da vítima. Assim, o encaminhamento da vítima aos órgãos médicos será procedido mediante garantia policial, bem como essa prerrogativa será utilizada quando for necessário o fornecimento de transporte para a retirada dos pertences da vítima do lar hostil.
Por “bens da vítima”, a doutrina mais atual informa que:
“são aqueles bens e objetos de uso exclusivo da vítima e necessários para a realização de suas necessidades cotidianas, tais quais os destinados à higiene pessoal, as peças do vestuário, os medicamentos, equipamentos de trabalho, materiais escolares e outros compatíveis com essa medida extrajudicial (NUCCI, 2013, p.73).”
Importante frisar que se os bens da ofendida estiverem em seu domicílio privativo, ou mesmo naquele coabitado com o ofensor, a realização da retirada dos bens não encontrará nenhum óbice na legislação, por exemplo, expedição de mandado de busca e apreensão. Todavia, quando o lugar em que os bens estiverem alocados pertencer exclusivamente ao sujeito agressor ou mesmo a terceiros, essa medida deverá ser precedida de autorização judicial, vez que o ambiente estará protegido pela inviolabilidade constitucional do domicílio (art. 5º, XI, CRFB), podendo também haver o consentimento de quem detenha a posse direta do local para a execução da medida.
Consoante o asseverado no inciso V do artigo acima citado, a autoridade policial que atender à mulher vítima de violência doméstica deverá informá-la dos seus direitos garantidos pelo Estado, importante essa garantia pelo fato de conferir segurança à ofendida para que noticie o fato criminoso de que foi vítima e confie ao Estado a punição do agressor.
Para tanto, é importante salientar que as polícias que trabalham diretamente com esse atendimento (Civil e Militar) tenham treinamento específico para tanto, vez que se trata de público sensível (na maioria das vezes com seus direitos mínimos vulnerados) e que merece que lhe seja dispensado o melhor tratamento possível.
Outra criação importantíssima foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher:
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária.
A lei determinou que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) são órgãos jurisdicionais integrantes da justiça comum dos Estados e do Distrito Federal, excluindo a vinculação deles a uma justiça especializada ou mesmo à justiça comum federal (o que só poderia ser feito por emenda à Constituição Federal).
Possui extensa lista de competências, tanto cível quanto criminal, demonstrando o intuito do legislador em proteger integralmente a mulher vitimizada, bem como conferir ao Juiz uma visão ampla de todos os aspectos que envolvem as causas dela provenientes, evitando a tomada de decisões contraditórias.
Ficou clara também a preocupação do legislador no sentido de facilitar o acesso à justiça pelas mulheres vítimas de violência familiar, tanto na problemática da competência jurisdicional quanto na elasticidade do horário de realização dos atos processuais.
A doutrina majoritária reputa fundamental a criação desses órgãos jurisdicionais, sob o argumento de que ele se serve a melhor atender a esse público que foi tão marginalizado ao longo da história. Todavia, existem doutrinadores que são contrários à criação desses juizados, nesse sentido, temos Leal,
A criação de um outro tipo de juizado, destinado apenas ao julgamento de questões resultantes da violência doméstica familiar, parece um verdadeiro despropósito, pois não leva em consideração a problemática de nossa realidade judiciária (2006).
Pode ser aceita a necessidade da criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas é forçoso reconhecermos que o modelo atual de justiça está acometido de vários problemas, dentre eles a falta de uma forma processual que dê maior vazão à demanda de casos. No entanto, há de se esperar vontade política do Estado para que seja criado o mais rápido possível essa estrutura, dando plena eficácia aos ditames da lei.
O Estado da Paraíba, representado pelo Tribunal de Justiça, já instalou dois Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, sendo um em Campina Grande e outro em João Pessoa. O primeiro começou a funcionar em 03 de outubro de 2011 e o segundo em 31 de janeiro de 2012[2].
O art. 33 da Lei nº. 11.340/06 criou uma norma de transição para os casos de violência doméstica que estão em curso quando da edição da norma, atribuindo às varas criminais competência transitória cível e criminal para julgar as causas de violência doméstica contra a mulher.
A Lei nº. 11.340/06 também tratou de forma profunda e polêmica acerca do direito de representação criminal por parte da vítima e a sua posterior retratação.
Em seu art. 16, a referida lei preleciona:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
A representação traduz a “manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante legal no sentido de autorizar o Ministério Público a desencadear a persecução penal” (FRANCO et al, apud, MIRABETE, 2003, p. 372).
O direito de representação só pode ser exercido no prazo de seis meses, contados do dia em que a vítima veio a saber quem é o autor do crime (art. 103, Código Penal). Até o recebimento da denúncia permite-se a retratação da representação. Após a recepção da peça vestibular penal a representação se torna irretratável, de acordo com o disposto no art. 102 do Código Penal e no art. 25 do Código de Processo Penal.
O legislador brasileiro, como de costume, não tem sido feliz na lógica na nomenclatura dos institutos jurídicos que têm trabalhado. Na lei nº. 11.340/06 não tem sido diferente. A lei se refere a “renúncia à representação”. Sucede que o instituto da renúncia está previsto no art. 107, V, do código penal como sendo umas das causas de extinção da punibilidade nos crimes de ação privada. Consiste na desistência do direito de ação por parte da vítima, não havendo que se falar em crimes de ação penal pública condicionada à representação.
A partir dessa atecnia na nomenclatura criou-se entre a doutrina penal uma discussão a respeito de o legislador ter criado um novo instituto processual penal, a renúncia à representação.
Para o douto Damásio Evangelista de Jesus (2006), o legislador empregou a terminologia renúncia no sentido comum de desistência. Considerando o autor que a expressão “antes do recebimento da denúncia” não significa hipótese de peça acusatória já recebida, mas apenas o termo final do prazo durante o qual a vítima pode desistir do prosseguimento da persecução penal, ou seja, enquanto não recebida a denúncia é admissível a desistência.
Em sentido contrário, o doutrinador Marcelo Lessa (2006) entende que o legislador ao se referir à “renúncia” quis dizer “retratação” da representação, prevendo como termo final para a retratação nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher o recebimento da denúncia, diversamente do que prevê o art. 25 do CPP.
No mesmo sentido está o entendimento de Cabette:
Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, derrogado o art. 25 do CPP, para alongar o tempo para a retratação (jamais renúncia), teria o legislador criado uma nova formalidade processual antes do recebimento da denúncia, qual seja, a oitiva da vítima para que se manifeste quanto a eventual retratação da representação anteriormente ofertada (2006).
Em complemento a esse raciocínio, Nucci (2013) informa que a formalidade insculpida no art. 16 abrange unicamente a ação penal condicionada à representação, sendo inadmissível o uso da analogia para estender tal regra aos crimes sujeitos à ação penal privada, pois ocasionaria uma analogia in malam partem, pelo fato de que nos casos de ação penal privada a vítima pode se valer de outros mecanismos, tais como o perdão (art. 52 do CPP) e a perempção (art. 60 do CPP), para afastar o réu da punibilidade.
Essa novidade reflete o desejo da sociedade em evitar, ou ao menos minimizar, as hipóteses de retratação, que geralmente tem nascedouro em ameaças e pressões do agressor ou de sua família para que a vítima “dê por encerrado” o processo e livre o acusado do processo.
Portanto, a vítima não poderá mais retratar-se perante a autoridade policial, somente podendo fazê-lo perante o juiz em audiência própria para isso, onde o contato pessoal do magistrado com a vítima poderá mensurar a espontaneidade da decisão dela em retratar-se.
Sendo seguida a corrente que advoga a tese de que o art. 16 da lei nº. 11.340/06 prevê uma espécie de retratação e que, neste caso específico, fica afastado o art. 25 do CPP, sendo aumentado o prazo para a retratação, o qual se expira com o recebimento da denúncia e não com o seu oferecimento.
4. PRISÃO PREVENTIVA E AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
A Lei nº. 11.340/06 incluiu, aditando o artigo 313 do código de processo penal, a hipótese de prisão preventiva do agressor em qualquer fase da persecução penal (seja inquérito policial seja processo penal), a qual será decretada de ofício pelo Juiz, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial, podendo o juiz revogá-la caso sobrevenha situação que não mais justifique a prisão.
Conforme Távora, a prisão preventiva,
é a prisão de natureza cautelar mais ampla, sendo uma eficiente ferramenta de encarceramento durante toda a persecução penal, leia-se, durante o inquérito policial e na fase processual, desde que presentes os elementos que simbolizem a necessidade do cárcere (2013, p.579).
O art. 312 do Código de Processo Penal determina as hipóteses para a decretação deste modelo de prisão e os pressupostos básicos para tanto,
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).
A prisão preventiva se qualifica por sua amplitude de aplicações, vez que os outros modelos (prisão temporária, prisão em flagrante delito e por sentença condenatória) têm aplicação mais restrita, dependendo de requisitos mais rígidos.
Os pressupostos básicos para a decretação da prisão preventiva são: prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria. Do primeiro pressuposto, temos que o crime deve estar com a sua materialidade devidamente comprovada, mediante a existência de elementos suficientes que a determine. Do segundo, há que ser individualizada a pessoa que cometeu o delito, consubstanciando-se a convicção da autoridade em elementos de provas que a indique.
A garantia da ordem pública pode ser considerada como uma forma de evitar que o agente continue delinquindo no transcorrer da persecução criminal.
Na hipótese de garantia da conveniência da instrução criminal tutela-se a livre produção probatória, impedindo que o agente destrua provas, ameace testemunhas ou comprometa de qualquer maneira a busca da verdade.
Em garantia de aplicação da lei penal, temos que se busca evitar a fuga do agente, impedindo o sumiço do autor do fato, que deseja se eximir da responsabilidade da prática do crime.
A hipótese de garantia da ordem econômica, entendemos ser uma forma de evitar que o criminoso, estando em liberdade, possa continuar a cometer crimes que exponha a ordem econômica a riscos.
O parágrafo único supramencionado traz uma hipótese de decretação da prisão preventiva que reflete a renovação do direito processual penal brasileiro, pois, de acordo com a norma constitucional, o indivíduo acusado do cometimento de um crime tem a garantia da presunção de inocência (ou não culpa), garantia essa que restringe a aplicação de atos de força do Estado contra a pessoa não condenada. Portanto, para evitar a imediata decretação da prisão preventiva, o legislador criou outras medidas cautelares que restringe de forma menos drástica os direitos do suspeito (art. 319, CPP), mantendo-o em liberdade.
O artigo 313 do Código de Processo Penal restringe as infrações que comportam a decretação da prisão preventiva, sendo necessário para o encarceramento cautelar medida de exceção, o legislador restringiu o cabimento da preventiva a uma gama restrita de delitos,
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
IV - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
Por questão didática, trataremos apenas acerca do regulamentado pelo inciso III, pelo fato de ter ligação direta com o tratado neste trabalho.
O douto Távora acerca dessa previsão legislativa afirma o seguinte:
...esta hipótese foi inserida pelo art. 42 da Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), no intuito de dar maior efetividade às medidas protetivas, disciplinadas nos artigos 22, 23 e 24 do referido diploma normativo... (2013, p.585).
A previsão do cabimento de prisão preventiva específica para os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher ensejou séria discussão na doutrina, pelo fato de uma parte da doutrina entender que apenas o inciso III daria escora à decisão e a outra parcela comunga entendimento de que é necessária a somatória desse fator com as outras hipóteses para decretação da prisão.
Nessa discussão, MOREIRA leciona que essa hipótese se revela “mais um absurdo e uma inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha. Permite-se que qualquer que seja o crime (doloso), ainda que apenado co detenção (uma ameaça, por exemplo), seja decretada a prisão preventiva, bastando que estejam presentes o fumus comissi delicti e que a prisão seja necessária para garantir a execução das medidas de urgência. A lei criou, portanto, este novo requisito a ensejar a prisão preventiva. Não seria mais necessária demonstração daqueles outros requisitos, garantia da ordem pública etc.” (MOREIRA apud TÁVORA, 2013, p.585.). Negando o autor que a preventiva não teria cabimento por esse fundamento.
Em contraponto ao entendimento acima transcrito, Távora ensina que “o desatendimento de uma medida protetiva, por via transversa, pode desaguar na necessidade da prisão, se enquadrável em uma das hipóteses de decretação do art. 312 do CPP. Se não for assim, o dispositivo é insustentável” (2013, p. 586).
Na jurisprudência encontramos guarida na decretação da prisão preventiva apenas pelo requisito do art. 313, III, do CPP, vejamos:
TJDFT - HABEAS CORPUS. PRISÃO POR DESRESPEITO À MEDIDA PROTETIVA. ORDEM PÚBLICA. ORDEM DENEGADA. 1. Evidenciada a hipótese prevista no artigo 313, inciso III, do Código de Processo Penal e havendo o descumprimento, por parte do paciente, das medidas protetivas estipuladas, demonstrada está a imprescindibilidade da sua custódia cautelar, especialmente a bem da garantia da ordem pública, dada a necessidade de resguardar-se a integridade física e psíquica da suposta vítima. 2. Acolhido parecer da d. Procuradoria de Justiça. 3. Ordem denegada. (TJDF; Rec 2012.00.2.001227-4; Ac. 567.344; Segunda Turma Criminal; Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos; DJDFTE 05/03/2012; Pág. 233)
Concernente ao entendimento da jurisprudência, vez que as medidas protetivas sem um fundo coercitivo perderiam o seu sentido. O agressor não teria pudor em desatender a uma ordem judicial deferitória de medida protetiva se soubesse que a nenhuma punição grave estaria ele passível.
Portanto, fazendo uma análise sistemática do dispositivo transcrito acima com as outras citações acerca do tema, podemos inferir que a prisão preventiva concebida pela Lei nº. 11.340/06 será cabível em qualquer crime doloso, independentemente da pena cominada, desde que tenha sido resultada de violência doméstica e familiar contra a mulher e que as medidas protetivas de urgência não sejam suficientes para tutela da vítima.
Exaurido o tema da prisão preventiva, passemos ao estudo das medidas protetivas de urgência, medidas essas essencialmente cautelares, que têm o escopo de garantir a integridade psicológica, física, moral e patrimonial da ofendida, podendo ser requisitada pela vítima, autoridade policial e pelo Ministério Público. Por manterem essa natureza cautelar, devem possuir os requisitos gerais impostos para a determinação destas, são elas: o fumus boni iuris e o periculum in mora, ou seja, a existência do direito para o qual se presta a medida e o fundado temor de que ocorra ao direito posto em juízo lesão de difícil ou impossível reparação (ROCHA, 2003).
Dentre as condutas que deverão ser adotados pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 12) se encontra o dever de remeter, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida para a concessão de medidas protetivas de urgência. A vítima deverá apresentar ao Delegado de Polícia um arrazoado relatando os motivos pelos quais necessita da concessão da medida, cabendo a este o encaminhamento do caso ao Juiz competente, explicitando as medidas de proteção cabíveis ao caso, podendo ser formalizado mediante ofício ou mesmo um formulário.
O magistrado ao se deparar com o expediente remetido pela ofendida terá o prazo de 48 horas para avaliar sobre as medidas protetivas aplicáveis ao caso (art. 18, I). As medidas poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado (art. 19, §1º).
As medidas estão dispostas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei sob comento e subdividem-se naquelas que obrigam o agressor e nas que protegem a mulher vitimada. Importante frisar que as medidas especificadas no rol de cada um desses artigos são meramente exemplificativas, não impedindo a aplicação de outras previstas na legislação em vigor. Poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, podendo ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre quando existir ameaça ou violação aos bens jurídicos tutelados pela norma em questão. Poderá o magistrado, a requerimento do parquet ou da ofendida, conceder novas medidas ou rever as anteriormente deferidas (art. 19, §§ 2º e 3º da Lei nº. 11.340/06).
Serão tratadas as medidas protetivas de urgência que tenham relação com o direito penal e processual penal, vez que esse é o tema em discussão, haja vista que a lei traz um rol extenso de medidas e que algumas não são relativas ao direito aqui discutido.
Determina o art. 22 da Lei nº. 11.340/06 quem ficando constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá deferir de pronto ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Depreende-se da leitura dos termos do art. 22 que as medidas previstas nos incisos I, II e III (a, b e c) são cautelares de natureza penal, sendo as demais de natureza civil.
Caso o agressor tenha registro de arma de fogo e seja detentor do seu respectivo porte, se estiver indiciado pela prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá, de imediato, suspendê-lo ou restringir o acesso a armas de fogo ao processado.
Em sendo o agressor integrante de algum órgão, corporação ou instituição, o juiz comunicará sua determinação contra o agressor, ficando o seu superior imediato responsável pelo cumprimento da medida, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação (art. 319 CP) ou de desobediência (art. 330 CP), dependendo do caso, conforme dispõe o § 2º do artigo em epígrafe.
O afastamento do lar ou domicílio se vê necessário para evitar que o agressor repita o ato de violência e vulnere mais um direito da vítima.
As medidas elencadas no inciso III supramencionado são fórmulas processuais de vanguarda, vez que restringe minimamente a liberdade do agressor e, em tese, traz maior segurança para a vítima. Essa é a tendência do Direito Processual Penal moderno, pelo fato de gerar menos impacto na vida dos envolvidos, pois o Estado não terá os custos de um preso, o agressor não terá sua vida seccionada e a vítima estará garantida em suas integridades física, psicológica e patrimonial.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a explanação feita em nosso trabalho, consideramos que a violência doméstica tornou-se um problema grave, a ponto do Estado precisar intervir nas relações individuais para tentar coibir tal prática. A solução encontrada pelo legislador, diante dos crescentes números da violência, foi a de criar um conjunto de conceitos e mecanismos – por meio da Lei nº. 11.340/06 – que se identifica pelo gênero, tentando concretizar a igualdade formal descrita em nossa Constituição Federal.
Observamos também que seguindo a temática de algumas convenções internacionais, o legislador criou um conceito mais amplo possível de violência doméstica e familiar com a finalidade de não excluir nenhuma das relações desse tipo do seu âmbito de abrangência, sendo considerada agressora a mulher na relação homoafetiva e considerada vítima a mulher no seio da relação de trabalho doméstico.
O legislador, para dar eficácia à proteção pretendida, alterou o vetusto Código Penal e inovou a legislação processual penal. No primeiro, aumentou os limites de algumas penas, impediu a concessão de algumas penas restritivas de direitos e acrescentou a violência doméstica contra a mulher como circunstância agravante de qualquer crime previsto no ordenamento pátrio. No segundo, onde a inovação foi mais perceptível, criou procedimentos para o atendimento e proteção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, previu a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar e dificultou a retratação nos crimes de ação penal pública condicionada à representação.
A lei também inovou o Código de Processo Penal, criando uma nova hipótese de cabimento de prisão preventiva, qual seja para dar efetividade às medidas protetivas de urgência anteriormente deferidas e desrespeitadas pelo autor. A doutrina entendeu não ser cabível apenas essa hipótese como suficiente para o encarceramento cautelar, todavia, a jurisprudência (entendendo ser uma forma de efetivação do espírito que a lei trouxe) vem aceitando esse único requisito para a restrição da liberdade dos agressores.
As medidas protetivas idealizadas pela lei analisada foram um marco na legislação processual penal, vez que evitam medidas de força desproporcionais e também não deixam impunes os agressores.
Portanto, embora a Lei nº. 11.340/06 não tenha criado um microssistema jurídico como são o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, conseguiu conferir às mulheres mais segurança e aos agressores a punição adequada.
6. REFERÊNCIAS
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_______ Código (1940). Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
_______ Código (1941). Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941.
_______ Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995.
_______ Lei nº. 11.340, de 07 de agosto de 2006.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: A Questão dos Crimes Culposos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 de setembro de 2006. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8909. Acesso em: 15 de julho de 2013.
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SOUZA, Luiz Antônio e Kumpel, Vitor Frederico. Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher Lei 11.340/2006. São Paulo. Método, 2007.
[1] Professor orientador.
Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública. Especialização em Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Yuri Givago Araújo. Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e as inovações penais e processuais penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 fev 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52659/lei-no-11-340-06-lei-maria-da-penha-e-as-inovacoes-penais-e-processuais-penais. Acesso em: 23 dez 2024.
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