1 Introdução
O presente texto tem por desiderato analisar as consequências decorrentes da modificação da Lei Complementar 123/2006, promovidas pela Lei Complementar 147/2014, fundamentalmente no que se refere ao regime favorecido de contratações de microempresas e empresas de pequeno porte em que o contratante seja o poder público.
Cumpre pontuar, de plano, que a presente análise terá como elemento central o sistema de contratação pública, no qual essas normas foram inseridas. Desse modo, todo o pressuposto da presente análise parte da premissa de que as normas foram inseridas dentro de um sistema normativo que regula a contratação pública, sendo as normas de favorecimento um “microssistema” próprio que deve ser analisado e interpretado a luz dos princípios que orientam esse sistema maior.
Não se ouvida que é possível uma visão diversa, contudo, no estudo presente, optou-se por partir da premissa que as normas insertas na Lei Complementar 123/2006 passam a integrar o conjunto de normas que regulam a temática das contratações.
Assim, em que pese não se propor qualquer hierarquia entre as normas, mas tendo-se em mente que os princípios de um ordenamento jurídico devem ser utilizados como vetores hermenêuticos, necessário ter em mente que são os princípios gerias das contratações públicas que orientam a hermenêutica realizada sobre as normas que se passam a analisar. [1]
Estabelecida essa premissa básica, sem a qual toda a argumentação que se irá adotar doravante perderá sentido, pode-se passar a análise do objeto do presente estudo.
2. As inovações da LC 147/2014 no sistema de contratações públicas
Ponto importante que é necessário deixar assentado é que, já na redação original da LC 123/2006, havia previsão da realização de licitações cuja participação era limitada a microempresas e empresas de pequeno porte.
Em sua redação original, contudo, o art. 48 da LC 123/2006 previa que a realização de licitações com participação limitada constituía uma faculdade do administrador.
A inovação trazida pela LC 147/2014 foi transformar o que era uma faculdade em uma obrigação. O que antes constituía uma possibilidade torna-se, com o advento novel norma, um dever.
Como já apontado, a norma da LC 123/2006 traz em seu microcosmo um regime de favorecimento das microempresas e empresas de pequeno porte, e esse favorecimento ocorre nos mais diversos campos, seja no regime tributário, seja na seara contábil, seja no que se refere ao fomento desse nicho de mercado por meio da obrigatoriedade do poder público realizar a contratação de empresas que tenham essa qualificação.
Dispensáveis profundas considerações para que se possa ter clara a evidente justeza dessa medida, uma vez que a competição de uma empresa de pequeno porte, qualquer que seja sua área de atuação, com grandes conglomerados implicaria na anulação da atuação daquelas.
E é nesse contexto que a nova redação do artigo 47 da LC 123/2006, promovida pela LC 147/2014, parece bem-vinda, uma vez que permite que as contratações públicas tenham uma segunda função (além evidentemente do atendimento das necessidades públicas), sejam utilizadas como fomento de um nicho de mercado.
Para tanto, a nova legislação previu que as contratações públicas devem ser disputadas apenas por microempresas e empresas de pequeno porte quando o valor estimado da contratação for de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), consoante dispõe o art. 48, I, da LC 123/2006.
Necessário observar que a norma em questão previu uma hipótese em que é obrigatória a limitação dos potenciais competidores no certame, em face de uma condição ou qualidade pessoal do interessado.
Nesse mesmo sentido, o inciso III do mesmo artigo previu que nas contratações cujo objeto tenha natureza divisível, deverá a administração estabelecer uma cota de 25% do objeto a ser contratado de microempresas e empresas de pequeno porte.
Necessário pontuar que a redação da norma do inciso III acima referido não indica que ele seria aplicável apenas às contratações cujo valor fosse superior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), apenas trazendo como elemento caracterizador dessa hipótese a divisibilidade do objeto.
Contudo, a aplicação prática da norma acabou resultando numa incidência em certames cujo valor supere a alçada do inciso I do art. 48.
Consequentemente, a aplicação usual que se vislumbra ao caso é a de que: nas contratações de valor estimado de até R$ 80.000,00 ter-se-á uma disputa limitada a microempresas e empresas de pequeno porte. Superado esse valor, e sendo o objeto divisível, ter-se-á que realizar um recorte de até 25% do objeto a ser contratado, para que, relativamente a essa cota, a competição fique limitada a microempresas e empresas de pequeno porte.
Desde a entrada em vigor da norma modificadora (LC 147/2014) não houve grande celeuma quanto a forma de aplicação do dispositivo legal, sendo a jurisprudência igualmente bastante parca.
Eis que, em agosto de 2018, o TCU, apreciando o relatório de auditória nos autos do processo 016.935/2017-9, relator Min. Walton Alencar Rodrigues, no acordão 1819/2018, manifestou o entendimento de as normas dos incisos I e III do art. 48 da LC 123/2006 não tinham que ser aplicadas de forma conjunta.
Em termos mais claros, o TCU manifestou entendimento de que a cota para participação exclusiva de microempresas e empresas de pequeno porte prevista no inciso III do art. 48 da LC 123/2006 não estava limitada a R$ 80.000,00, valor limite para licitações exclusivas.
E é especificamente sobre esse tema que se passará, doravante, a analisar qual seria a hermenêutica que melhor se adequa ao sistema normativo que regulamenta as contratações públicas.
3. Breves considerações sobre o sistema jurídico das contratações públicas
A despeito de não serem novas, mas nunca se deve deixar de atentar para as lições de Hely Lopes, que apontava em sua clássica obra que “licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse”[2].
Importante ter em mente que o insígne professor refere-se a proposta mais vantajosa. Em sua lição o foco da administração não é a aquisição mais barata, mas sim aquela, repete-se “mais vantajosa”.
Com relação a essa vantajosidade, outro doutrinador de escol, Justen Filho, assevera:
(...) o preço representa o fator de maior relevância, em princípio, para seleção de qualquer proposta a licitação sempre visa à obtenção da melhor proposta pelo menor custo possível. Esse fator “menor custo possível” é comum em toda e qualquer licitação; as exigências relativas à qualidade, prazo, etc., podem variar caso a caso, porém, quando se trata do preço, a Administração Pública tem o dever de buscar o menor desembolso de recursos, a fazer-se nas melhores condições possíveis[3]
Modernamente pode-se apontar que o fator preço, nas contratações públicas tem, a despeito de sua enorme importância, sido substituído pela melhor compra, entendida como o melhor produto possível pelo valor mais adequado.
Dentro desse entendimento de que o preço pura e simplesmente não pode ser o fator único de consideração no momento da contratação, é que se insere a realização do fomento de um nicho de mercado nas contratações públicas, tal como previsto na LC 123/2006.
Um outro aspecto ou característica do processo licitatório decorre do princípio da impessoalidade.
Conforme lição de Maria Silvia di Pietro decorre do princípio da impessoalidade o fato de que todos os potenciais licitantes “devem ser tratados igualmente, em termos de direitos e obrigações”[4].
Em conformidade com esse princípio é vedado a administração limitar a competitividade do certame, devendo ser admitido que todo aquele que tenha interesse em participar do certame possa nele competir.
Para os fins do presente trabalho esses são os dois princípios que devem permanecer mais avivados na memória, fundamentalmente para que se possa realizar o adequado cotejo entre as normas do sistema licitatório e aquelas destinadas ao fomento das atividades das microempresas e empresas de pequeno porte, realizando ainda uma análise da jurisprudência do TCU, referida alhures.
4. Uma análise das normas da LC 123/2006 à luz da sistemática das aquisições públicas
Tendo sido fixadas as premissas apontadas nas linhas acima, pode-se, doravante, intentar uma análise mais acurada daquilo se pode apontar como interpretação das normas do regime de tratamento favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte e as normas que orientam o processo licitatório.
Num primeiro momento, há que se apontar a anuência ao entendimento do TCU plasmado no acordão 1819/2018 quanto a possibilidade de o estado pagar mais caro para a aquisição de um mesmo produto quando o vendedor se enquadrar como microempresa ou empresa de pequeno porte.
Nessa situação a compra mais vantajosa para a administração não será observada apenas pelo valor do item.
Como abordado anteriormente, há que se apontar como contratação mais vantajosa aquela que conjugue o melhor produto ao menor preço, isso no caso de uma compra usual.
Contudo, a norma da LC 123/2006 aponta que, tendo em vista o interesse público da realização de fomento de um determinado nicho de mercado, no caso as microempresas e empresas de pequeno porte, a melhor contratação será aquela realizada de empresa que assim se qualifique, observados os demais requisitos legais.
Observe que nas situações regulamentadas pela Lei supra referida insere-se um requisito adicional para a aferição da vantajosidade – no caso enquadrar-se o contratado enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte.
Observado esse requisito, alternativa não resta senão anuir ao entendimento manifestado pelo TCU no já referido acordão de que o valor contratado de uma microempresa ou empresa de pequeno porte, seja em licitações de competitividade restrita a elas (hipótese do art. 48, I da LC 123/2006), seja quando contratado em cotas de item disputada exclusivamente por essas empresas (art. 48, III, da mesma Lei) sejam superiores àqueles ofertados por grandes empresas.
Por outro lado, relativamente ao outro entendimento manifestado, de que inexistiria limite de valor para o estabelecimento das cotas, parece necessário uma atenção especial.
4.1 Acerca da necessidade de limitação do valor das cotas reservadas a microempresas e empresas de pequeno porte
Por certo o entendimento manifestado pelo TCU no acordão 1819/2018 é de que a aplicação do disposto no art. 48, III, da LC 123/2006 – que estabelece a cota de participação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte não possui qualquer limite de valor, devendo corresponder apenas a 25% do objeto licitado.
Tal entendimento não parece consentâneo à melhor hermenêutica.
De plano importante repisar, tal como apontado nas primeiras linhas desse texto, que essa norma se insere dentro de um sistema maior, que regulamenta as contratações públicas.
Na verdade, tem-se no caso uma norma que, num primeiro momento, regulamenta exatamente essa espécie de contratação e o faz para, de modo concomitante, estabelecer um regime favorecido de contratação para um determinado tipo de empresa.
Ora, se a primeira finalidade da norma é orientar as contratações públicas, por certo que sua interpretação deve ser feita em atenção a esse desiderato, observando as linhas mestras, os princípios, que orientam todas as normas desse sistema.
Dessa constatação tem-se a evidente conclusão de que a interpretação desse dispositivo deve seguir o mesmo vetor hermenêutico que orienta a aplicação de qualquer outra norma que aborde o tema das contratações públicas.
Importante observar, tal como apontado linhas acima, que a aplicação das normas que orientam a contratação pública deve levar em conta princípios como da igualdade e da vantajosidade.
É exatamente ao se utilizar como filtro hermenêutico[5] esses princípios que se conclui que o entendimento do TCU não se mostra adequado.
No que se refere a norma do art. 48, III, da LC 123/2006 tem-se presente regulamentação, repete-se uma vez mais, a respeito de contratação pública, estabelecendo-se que nas aquisições de objetos divisíveis deverá a administração estabelecer uma cota de até 25% que somente podem ser disputada, no certame, por microempresas e empresas de pequeno porte.
Tal como já apontado, e igualmente a norma do inciso I desse mesmo artigo, necessário ter em mente que o que aquela norma regula é uma limitação da competitividade no processo licitatório.
Observadas as normas sobre esse prisma necessário reconhecer que há, na situação presente, então dois diplomas normativos que regulam a mesma matéria, qual seja a limitação do espectro de potenciais participantes de um processo licitatório.
De logo há que se reconhecer que não se verifica qualquer antinomia entre os dois dispositivos, posto que o inciso I trata de contratações cujo valor dentro de uma alçada ao passo que o inciso III regula as contratações com atenção a natureza do que objeto que a administração pretende adquirir, no caso bens divisíveis.
Importante asseverar que é evidentemente possível que pretenda a administração adquirir um bem divisível e o valor estimado da contratação seja igual ou inferior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Nessa situação, à toda evidência, necessário reconhecer que restará campo de atração da aplicação do inciso I do art. 48.
A aplicação prática das normas foi feita no sentido de que, em se tratando de bens de natureza divisível, o inciso III incidirá somente nos casos em que o valor estimado da contratação superar o limite do inciso I, de modo que quando o valor estimado da contratação superar R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) deverá a administração estabelecer uma cota de participação exclusiva de até 25% do objeto.
Nas licitações cujo valor seja de até R$ 320.000,00 (trezentos e vinte mil reais) não se terá qualquer problema ou dúvida, a administração separa do objeto licitado a cota de 25% do objeto e realiza um certame em duas etapas: a primeira com disputa ampla, nela participando qualquer empresa interessada, e a segunda – a cota – cuja participação estará limitada a microempresas e empresas de pequeno porte.
O problema surge quando, em razão do ganho de escala, e mesmo das grandes demandas que possui a administração, se estiver diante de um objeto de valor estimado em, tal como é comum, milhões de reais.
A título de exemplo, basta imaginar uma licitação para aquisição de material usualmente (e infelizmente) bastante gasto ainda na administração, o papel. Imagine-se uma licitação para aquisição da demanda anual de papel de um estado da federação, estimada em R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reis).
A aplicação isolada do art. 48, III, da LC 123/2006 implicaria a necessidade de estabelecimento de uma cota de R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais).
Na situação posta acima haveria então um certame cujo universo potencial de participantes limita-se a empresas enquadradas como microempresas e empresas de pequeno porte.
Ocorre que esse tipo de certame tem suas balizas fixadas no inciso I do art. 48 da mesma lei, que por seu turno apontou que os certames cuja disputa seja limitada a esse tipo de empresa tem um valor máximo possível, no caso R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Desse modo, a conclusão a que se chega não pode ser outra senão que a aplicação da norma do inciso III do art. 48 da LC 123/2006, que prevê uma cota de participação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte deve ser aplicada com atenção ao limite de valor fixado no inciso I do mesmo artigo.
A corroborar esse entendimento possível ainda valer-se da análise literal da norma, que estabelece que a cota de participação exclusiva será de até 25%. Ora não é nova a lição de que a lei não traz expressões inúteis.
A utilização da preposição “até” indica a ideia de uma gradação, um limite, que pode ir de 0,1% até os 25% do objeto. Nessa situação seria possível indagar a quem competiria realizar essa gradação.
A dúvida poderia ser respondida de imediato: a administração. Mas o problema dessa resposta é que o proceder administrativo não pode ser feito ao bel-prazer do agente público, o princípio da legalidade não permite ao agente público uma atuação fora de parâmetros legais, e exatamente por causa disso que o ilustríssimo professor Celso Antônio Bandeira de Mello sempre defendeu que ao agente público não são conferidos poderes, mas sim poderes-deveres, ou mesmo deveres-poderes[6].
Ainda nessa senda, também não poderia o agente público fixar um patamar ao seu juízo subjetivo, inferior ao limite legal, porquanto haveria eventual “direito” das empresas que pudessem participar do certame das cotas de que, ausente previsão legal, haveria que se assegurar o fomento na sua potencialidade máxima, esse inclusive é o que se extrai do entendimento manifestado no acórdão 1819/2018 do TCU.
Ocorre que, analisando a questão de forma mais acurada, sob o prisma de que essas normas regulam o processo licitatório, há que se reconhecer a necessidade de existência de um parâmetro limitador, por isso o legislador utilizou a preposição “até”, porque a cota não deve ser sempre de 25% (vinte e cinco por cento) do objeto.
Se fosse para não haver limite, sendo sempre a cota equivalente a 25% (vinte e cinco por cento) do objeto então teria a norma sido redigida “cota de 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação”, mas não, a utilização da preposição, tal como referido, aponta para uma necessidade de que haja alguma gradação, tal como já apontado.
E aqui parece o ponto central da questão, não podendo relegar essa gradação ao agente público, para que o fizesse de forma subjetiva, a forma objetiva prevista na própria norma vem bem a calhar, posto que a mesma Lei Complementar estabelece um limite, desta vez de valor, para as licitações em que a competição seja limitada a microempresas e empresas de pequeno valor.
Observe-se que essa aplicação conjunta tem o nítido condão de tornar aplicável ao caso concreto as duas normas que regulamentam o instituto (no caso a realização de um certame com disputa limitada a microempresas e empresas de pequeno porte), posto que restará estabelecida uma cota do objeto para disputa apenas entre essas empresas e o valor dessa cota estará dentro do limite legalmente admitido para restrição da competitividade.
Em que pese não se ter no presente caso um conflito de normas, mas a situação fronteiriça que se observa no caso faz recordar as lições de um dos maiores juristas da atualidade, o Prof. Humberto Ávila, que em sua excelente obra Teoria dos Princípios[7] postula que a aplicação das normas (mesmo as chamadas normas-regra) devem levar em conta a proporcionalidade, devendo serem aplicados de acordo com a sua máxima potência e devendo observar os ditames da concordância prática.
Logo, a fim de não tornar letra morta a disposição do inciso I, a aplicação do inciso III, ambos do art. 48 da LC 123/2006, deverá levar em consideração, como elemento limitador, a alçada fixada no primeiro para a restrição da competitividade.
Nesse aspecto encaixa-se como luva a clássica lição e Juarez Freitas que há muito leciona que “uma consciente interpretação tópico-sistemática do Direito Administrativo jamais poderá ser isolacionista ou hipertrofiar esta ou aquela diretriz, destituída da necessária conexão com a inteireza do sistema, na sua vocação teleológica para abertura, unidade plural e reposição das partes do conjunto”[8].
Como já referido essas normas integram um sistema que regulamenta as contratações públicas, de modo que a aplicação de uma não pode ser feita com excludência de outra ou das demais normas que regulamentam o tema.
Ainda, importante lição deve ser trazida de uma das mais clássicas obras sobre o tema, da genialidade da pena do Prof. Eros Grau, que leciona: “Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele - do texto - até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum.”[9]
Todas essas lições indicam que é necessário que as normas objeto da presente análise devem ser aplicadas em conjunto, de modo que a gradação do percentual previsto em lei para a cota de “até” 25% do objeto licitado, prevista no art. 48, III, da Lei 123/20006, deve levar em consideração como limite o valor fixado no inciso I do mesmo artigo.
Assim, caso se estivesse diante de uma licitação com valor estimado em R$ 150.000,00(cento e cinquenta mil reais) a cota para participação exclusiva haveria de ser de R$ 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos reais), equivalentes a 25% do objeto. Por outro lado, sendo o valor estimado da contratação de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), o valor estimado para a cota deveria ser R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), equivalentes a 10% (dez por cento) do objeto – dentro da margem legal de “até” 25%.
Por certo que no segundo exemplo ambas as normas restaram atendidas, vez que, a um só tempo, foi prevista uma cota do objeto licitado para disputa exclusivamente entre microempresas e empresas de pequeno porte e essa cota não superou o limite legal para licitações em que haja restrição da competitividade.
Ainda, importante repisar que essa proposta de aplicação conjunta dos dispositivos tende a assegurar a inexistência de qualquer subjetividade por parte da fixação do agente público responsável pela realização do certame, sendo um critério objetivo e fiscalizável.
Por fim, importante pontuar que, dado o reconhecimento de que o valor unitário a ser contratado por meio da cota pode ser superior àquele obtido na participação ampla tal interpretação ainda tende a assegurar a máxima efetividade ao desiderato último de qualquer processo de compra a ser realizado pela administração, apontado nas primeiras linhas do texto, a compra mais vantajosa.
Por certo, as finalidades inerentes ao microssistema de tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte não podem se sobrepor ao resultado útil do processo licitatório.
É dizer, há que se realizar o fomento do nicho específico do mercado sem que isso torne a contratação desvantajosa. E sobre esse ponto deve-se ainda recordar que há expressa disposição legal vedando a utilização desse tratamento favorecido quando não for vantajoso para a administração[10].
Por certo a própria LC 123, em seu art. 49, III, aponta a necessidade de existência de vantajosidade na contratação para que se possa falar em mantença do tratamento favorecido, de modo que somente se terá presente essa vantajosidade se houver o proposto limite para as cotas.
Conclusões
Assim, em suma, há que se reconhecer a necessidade de uma interpretação sistemática dos dispositivos da Lei 123/2006, que estabeleceram normas para regulamentar contratações públicas, devendo a interpretação dessas normas ser feita em consonância com os princípios que orientam essa matéria.
Outrossim, deve haver concordância harmônica na aplicação dessas normas, não sendo possível cogitar-se aplica-las dissociadas, nem do sistema complexo de normas que regulamentam e orientam as contratações, tampouco uma das outras.
Desse modo, necessário reconhecer que o entendimento do TCU contido no acordão 1819/2018 de que a cota para participação exclusiva de microempresas e empresas de pequeno porte prevista no art. 48, III da LC 123/2006 não estaria limitada a alçada de R$ 80.000,00 prevista no inciso I do mesmo artigo não se mostra adequado.
A interpretação sistemática das normas acima referidas somente pode levar a conclusão de que o inciso I estabeleceu um limite legal para que qualquer processo de aquisição a ser licitado com participação limitada a microempresas e empresas de pequeno porte não pode ter valor superior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Levando isso em consideração, e diante da evidencia de que o inciso III do mesmo art. 47 da LC 123/2006 estabelece um certame em que somente podem concorrer empresas que sejam qualificadas como microempresas e empresas de pequeno porte, resta mais que evidente que há que se apontar que essa cota, além de não poder corresponder a mais de 25% (vinte e cinco por cento) do objeto, não poderá ter seu valor estimado superior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Interpretação diversa teria o nítido condão de anular a própria vantajosidade do certame, além de implicar em evidente anulação da efetividade da norma do inciso I, o que não se coaduna com a melhor doutrina, conforme apontado ao longo do texto.
Por fim, não se pode deixar de referir que a própria LC 123/2006 estabelece a possibilidade de o ente federativo estabelecer norma com tratamento mais favorável, por exemplo ampliando o limite para licitação com participação limitada a microempresas e empresas de pequeno porte.
Nessa situação há que se apontar que o seria variável o valor da alçada, o que não comprometeria a forma de aplicação conjulgada das normas proposta no presente texto.
Referencias bibliográficas
CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo. Saraiva. 2006.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
JUSTEN FILHO, Marçal Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 11. Ed. São Paulo: Dialética, 2005.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 27. Ed. São Paulo: Atlas, 2013.
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional – Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1999.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do direito. 4. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
[1] Cunha, Sergio Sérvulo da. Princípios Constitucionais. p. 191.
[2] Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. p. 235.
[3] Justen Filho, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 11ª edição, São Paulo: Dialética, 2005, p. 435-436.
[4] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 27. Ed. .p. 382.
[5] SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional – Construindo uma nova dogmática jurídica.
[6] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
[7] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4. Ed. p. 94.
[8] FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 3. Ed. p. 240.
[9] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do direito. 4. Ed. p. 121.
[10] Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:
(...)
III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; (grifei)
Advogado, ex-servidor do Tribunal de Justiça-MA, aprovado em diversos concursos públicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EVANDRO PIRES DE LEMOS JúNIOR, . O regime favorecido para as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte nas contratações públicas - uma leitura sistemática das normas previstas na LC 123/2006 que preveem a realização de licitações com participação exclusiva de microempresas e EPP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52698/o-regime-favorecido-para-as-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-nas-contratacoes-publicas-uma-leitura-sistematica-das-normas-previstas-na-lc-123-2006-que-preveem-a-realizacao-de-licitacoes-com-participacao-exclusiva-de-microempresas-e-epp. Acesso em: 23 dez 2024.
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